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Gursky nas altura$

Dorrit Harazim Publicado em: 29 de novembro de 2013
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Funcionários da Sotheby’s carregam “Paris, Monparnasse”, de Andreas Gursky, no dia do leilão. Imagem Reuters/divulgação

O catálogo do leilão da Sotheby’s londrina de 17 de outubro anunciava obras de arte contemporânea. O chamariz da capa estampava não a reprodução de uma obra de artista plástico, mas a foto de uma fotografia. Acertaram no chamariz: Paris, Montparnasse do alemão Andreas Gursky foi arrematada por U$ 2,3 milhões, valor quatro vezes maior que o alcançado na mesma noite por Triple Dollar Sign, de Andy Warhol. Já houve tempos em que qualquer artefato com a assinatura do grão-mestre da pop art e fotografias sequer frequentariam o mesmo leilão.

Foi no início do século 20 que a fotografia começou a buscar seu reconhecimento como forma de arte. Um dos ardorosos defensores da causa foi Alfred Stieglitz, que durante anos fotografou com obsessão sua mulher, a pintora Georgia O’Keeffe, criando um arquivo pessoal extraordinário. Stieglitz morreu em 1946, muito antes dos museus começarem a garimpar nessa seara. Ele teria se deliciado em constatar que duas fotos da série que fez em 1919 – um nu e um detalhe das mãos de O’Keeffe – foram arrematadas  em 2006 num concorrido leilão da Christie’s por U$ 1,5 milhão cada.

Quando a augusta National Gallery de Londres fez uma seleção de três megaexposições para 2012, ano olímpico em que a cidade quis mostrar por que é a capital mundial de todas as artes, a instituição abriu um precedente em seus quase 200 anos de existência. Escolheu um mestre da luz, o inglês William Turner, um mestre do Renascimento, o veneziano Ticiano, e, pela primeira vez, abrigou uma exposição de fotografia. Com a mostra “Seduced by Art: Photography Past and Present”, procurou explorar a relação da fotografia com a pintura, inclusive a dos grandes mestres, e suas possibilidades como arte. Fez contracenar obras do britânico Martin Parr com um clássico de Thomas Gainsborough, aproximou intervenções fotográficas de vanguarda a obras de Degas, Ingres e Constable, e permitiu a convivência, por três meses, de peças de vídeo experimentais com clássicos de sua portentosa coleção.

Foi uma fresta a se entreabrir numa majestosa fortaleza. Há décadas, a fotografia já arrombara as portas de museus de arte moderna do mundo todo, começando pelo pioneiro MoMA de Nova York, e mesmo instituições mais clássicas, como o Metropolitan Museum. Era inevitável, portanto, que passasse a movimentar o mercado como arte. Daí os leilões.

Neste terreno, a obra do alemão Gursky tem se mantido nas alturas. Além de Paris, Montparnasse, arrematado em outubro último, cinco fotos da série Bolsa de Valores (Chicago I e III, Hong Kong, Tóquio e Kuwait), haviam sido vendidas quatro meses antes por U$ 8,6 milhões. O díptico 99 Cents, em fina dissintonia com o título, fora leiloado por U$ 3,3 milhões em 2007. E a plácida paisagem Rhein II, que alcançara estonteantes U$ 4,3 milhões dois anos atrás – maior preço jamais pago por uma obra fotográfica –, também é de sua autoria.

Se comparado ao preço mais alto já pago por uma pintura – U$ 260 milhões para Os Jogadores de Cartas, de Paul Cézanne, adquirido dois anos atrás pela família real do Catar numa negociação privada –, Rhein II foi arrematado por meros 0,01% desse valor. Mas é bom sempre ter em mente que a própria natureza da fotografia, ao contrário das outras artes, é feita de cópias.

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Embora os delírios, interesses e ciclotimias do mercado de arte tenham vida própria, independente do que seria o valor artístico de uma obra, Andreas Gursky pode ser considerado o retratista de seu tempo. “Suas fotografias fazem um balanço da paisagem pós-capitalista, em busca dos marcadores que definem nosso cotidiano”, definiu o responsável pelo departamento de arte contemporânea da Sotheby’s, que de capitalismo entende bastante.

Gursky, quando indagado sobre o que busca através da fotografia, é mais direto: “Nunca me interessei pelo indivíduo, apenas pela espécie humana e pelo seu ambiente”. Sempre trabalhou movido pela convicção de que “a realidade só pode ser mostrada através de sua reconstrução”. E sabe que sua obra monumental (já pela dimensão física das imagens) não existiria sem os recursos tecnológicos e de manipulação digital da fotografia moderna.

De forma metódica, desapaixonada e intencionalmente distante, Andreas Gursky, de 65 anos, retrata a paisagem urbana na qual vivemos. De suas imagens de vastos espaços construídos pelo homem, mesmo quando repletos de pessoas, emana sempre um abissal vazio.

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Formado pela mesma Academia de Arte de Düsseldorf que diplomou, entre outros, Joseph Beuys e Anselm Kiefer, Gursky foi treinado no método Bernd e Hilla Becher de distanciamento na fotografia. Aprimorou-se em fotografar máquinas industriais e arquitetura.

Aos poucos, o aluno Andreas foi alargando seu olhar para retratar a paisagem da sociedade urbana. Passou a captar o mundo do lazer (Piscina de Ratingen), as massas anônimas em locais de trabalho (Bolsa de Valores, Siemens), os prédios onde se vive em escaninhos (Paris, Montparnasse), a abundância do consumo barato (99 Cents) e tudo o mais que coubesse no seu manifesto de sete palavras: “Persigo uma meta – a enciclopédia da vida”.

Não surpreende que ele tenha encontrado inspiração no Montparnasse, o maior edifício residencial parisiense. Com seus 750 apartamentos que abrigam em média 2 mil residentes, foi inaugurado em 1964, e é exemplo do modernismo do pós-guerra e da arrancada do desenvolvimento urbano da época.

Ao contrário das linhas sinuosas do edifício Copan de São Paulo, projetado por Oscar Niemeyer para aproximadamente o mesmo número de moradores e que Gursky também fotografou, a estrutura do gigantesco Maine-Montparnasse II é retangular. E a forma como essa interminável fachada alongada está retratada em Paris, Montparnasse em nada se assemelha à maneira como ela foi de fato fotografada. Nem poderia sê-lo, por uma simples impossibilidade física – a visão de Gursky teria sido bloqueada pelos prédios adjacentes. Assim, o que se vê na imagem leiloada por U$ 2,3 milhões é a realidade reconstruída pelo artista.

Para obter o resultado desejado, Gursky subiu ao topo de um hotel situado do lado oposto do Montparnasse, fez duas fotos da fachada, fundiu-as laboriosamente numa imagem única e dela eliminou toda profundidade. Concluiu a edição com cortes secos nas duas extremidades.

O resultado é uma vasta fachada ortogonal absolutamente plana de um edifício que parece não ter fim. É quase uma composição linear abstrata que, para alguns críticos, lembra quadros de Mondrian.

Paralelo ao gigantismo da composição à distância, a altíssima resolução possível na moderna fotografia digital permitiu a Gursky captar, também, os microdetalhes de cada centímetro do painel. Basta olhar o quadro mais de perto para surgirem, nos sombreados das janelas, pedaços de existências ali vividas – o canto de uma mesa, uma dama de blusa vermelha, o encosto de uma poltrona, duas cortinas azuis, a cúpula de um abajur, um pedaço de estante. E nisso reside o fascínio maior dessa paisagem urbana perfurada de janelas atrás das quais aparece uma miríade de instantâneos de existência individual. Não há invasão nem voyeurismo no olhar do fotógrafo que faz do seu distanciamento um ponto de partida. Andrea Gursky não se interessa pelo indivíduo.

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Detalhe de “Paris, Monparnasse”, de Andreas Gursky. Imagem Sotheby’s/divulgação

 

Paris, Montparnasse, de 1992, representa um marco na obra de Gursky por ser uma de suas primeiras fotos manipuladas com recursos digitais. “A partir dela”, contou mais tarde, “passei a fazer uso consciente das possibilidades de processamento eletrônico”.

Exemplos não faltam e são de natureza variada. A foto mais célebre da série da Bolsa de Valores de Chicago é uma laboriosa fusão de uma dúzia de frames de ângulos diferentes. Em 99 Cents, a imagem da mercadoria refletida no teto é produto de uma colagem digital. As cores das fotos do alemão não são propriamente realistas. Gursky ora homogeneíza a palheta para criar um efeito repetitivo sobre os objetos (ou pessoas) retratados, ora acentua as diferenças. A construção da realidade pelo artista também pode exigir a remoção total de elementos indesejados, como aponta Stefan Beyst, estudioso da história da arte moderna – para produzir o efeito hiper-realista de um rio virgem atravessando uma natureza intocada, Gursky eliminou todo traço de industrialização de Rhein II.

As imagens monumentais do fotógrafo, algumas das quais medem cinco metros, exigem equipamento e logística complexos, de produção cara. Várias fotos foram feitas do alto de gruas ou de helicóptero, e o trabalho para imprimir na escala e qualidade desejadas representa um desafio adicional.

Disputada em leilões ao lado de peças de Andy Warhol, Jeff Koons ou Damien Hirst, a produção fotográfica do alemão de Düsseldorf já mereceu uma robusta retrospectiva no MoMA de Nova York, no Reina Sofia de Madri , no Centre Pompidou de Paris e no museu de Arte Contemporânea de Chicago, entre outros.

Sabe-se agora que pelo menos uma de suas obras já tem lugar garantido no museu do Louvre de Abu Dabi, a ser inaugurado em 2015. ///

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.