Em nome do pai
Publicado em: 20 de agosto de 2018Tenho da minha primeira infância algumas poucas fotos, mas suficientes para me fazer crescer supondo que nasci numa família nuclear, bastante convencional, perturbada apenas pela morte precoce do pai. Rodeados pelo silêncio, esses poucos momentos registrados se tornaram eloquentes e deixaram como herança uma narrativa satisfatória em que a morte, apesar de trágica, pôde mascarar formas menos aceitáveis de ausência. Nada naquelas imagens permitia ver uma figura paterna desfocada, seus movimentos inconstantes, nem as ramificações tortuosas de uma árvore genealógica que ainda é difícil desenhar. Muito antes dos aplicativos, a pose já era uma forma de tratamento não só das imagens, mas das feridas geradas pela imperfeição da realidade.
Se eu fosse um artista, talvez soubesse lançar essas fotografias na busca das respostas que elas agora demandam. O que está ao meu alcance é pensar essas questões num espectro cultural mais amplo, isto é, a partir do modo como os afetos familiares se problematizam nas imagens que habitam outras tantas casas.
Nos álbuns, a fotografia não apenas mostra, mas performa uma família. Ela integra um universo de ritos – o casamento, o batizado, mas também a viagem de férias, o almoço de domingo – que visa garantir a estabilidade dessa estrutura. É certo que essa tradição não tem hoje a mesma eficácia, não apenas porque o álbum de família deu lugar a novas formas de circulação de imagens, mas porque nosso tempo investe numa profunda desmontagem de todos os valores que, um dia, pareceram definitivos. Aprendemos a suspeitar da fidelidade da fotografia ao real, do mesmo modo que nos desapegamos das formalidades que garantiam a fidelidade da família aos seus bons retratos.
A fotografia dos álbuns não é nem verdadeira nem falsa, ela é apenas bem ajustada a uma expectativa que está dada, que pode não se cumprir, ou que pode se desgastar. Em sua motivação, a fotografia é agenciamento: fingindo mostrar o que somos, ela nos lembra daquilo que nos comprometemos a ser. É nessa condição de contrato que o álbum de família é exposto. Em seu desfecho, essa mesma fotografia pode se tornar sintoma: a cicatriz que resta dos sonhos amputados ao longo do tempo. Por isso, mais cedo ou mais tarde, o álbum tende a ser guardado a certa distância do olhar.
O que resta entre esses extremos? Entre o anseio de um futuro prometido e o recalque de um passado traumático? Também entre a suposta verdade e a suposta mentira da imagem? Ou entre a nostalgia e o desprezo dos ritos familiares? Entre a fixidez dos antigos retratos, tão bem acomodada a valores que pareciam eternos, e a nova fluidez das selfies nas timelines, tão eficaz na gestão dos vínculos que sucessivamente se constroem e se dissolvem? Entre tudo isso, a imagem ainda tenta dizer algo sobre a família, sobre suas ruínas, seus pavimentos soterrados e suas muitas outras formas de reedificação.
No inconformismo da arte a fotografia se reinventa e, mesmo diante do esfacelamento dos paradigmas modernos que garantiam sua credibilidade, ela encontra caminhos para se manter contemporânea. Não tanto porque ressurge em novas bases tecnológicas, porque assume aspectos híbridos, ou porque deixa de se parecer com a fotografia da tradição. Mas porque ajuda a desvelar seus códigos, porque se engaja nas dúvidas que provocam sua própria crise, isto é, participa da crítica de si mesma.
Com pequenos deslocamentos produzidos pelo gesto de apropriação, ela revela as doses de violência que garantiam a estabilidade da pose familiar. Com a simples comparação de suas recorrências, ela se interroga sobre personagens mal acomodados ou que sequer encontraram seus lugares diante da câmera. E o que mais interessa aqui: ela dá forma aos muitos modos de uma família não se conformar à tradição de seus retratos. Esse é um dos ajustes com o qual se compromete um universo de experiências recentes com a fotografia: permitir que ela agencie também a diversidade e a complexidade de sentimentos que, em suas singularidades, as histórias familiares podem suscitar.
Dialogando com movimentos afetivos ambíguos, a fotografia pode revelar no âmbito da família o que resta de vínculo mesmo quando as distâncias parecem intransponíveis, assim como pode apontar o que se mantém de dissidência nos movimentos de reaproximação. Como exemplo, podemos revisitar dois livros que têm em comum o fato de serem pontuados por cartas de despedidas que, no entanto, equivalem a gestos muito distintos.
Em O suicídio de meu pai (2014), livro bastante conhecido do público brasileiro, André Penteado traz uma carta assinada por Zé Octávio que, como o título antecipa, aponta para uma ruptura definitiva. Ela não está endereçada diretamente aos filhos mas, entre as justificativas que apresenta e as providências que solicita, relembra um afeto que pode não ter sido suficientemente comunicado a eles: “Quero que nossos filhos (…) entendam que sempre foram benvindos e muito me emocionei com a chegada deles nas diferentes épocas da minha vida. Sempre os amei e meu desejo é que consigam realizar suas vidas, com mais objetividade do que eu”.
A carta surpreende pela escolha de palavras demasiadamente contidas para o desfecho trágico que anuncia. Não se trata de indiferença. Esse parece ser o esforço possível de organizar o caos que motiva tal decisão e que, inevitavelmente, será herdado por aqueles que ficam.
A resposta de André nos chega por meio da fotografia. Não há apelos dramáticos: a dor aparece em formas discretas, dissolvidas numa coleção de cenas banais que se transformam em metáforas da morte. Em seguida, numa aproximação lenta e delicada aos elementos que compõem o funeral. Por fim, num ritual muito peculiar de reencontro: o artista se fotografa vestindo cada uma das peças que restaram no guarda-roupa de seu pai. A expressão que André assume nesses autorretratos também é serena. A construção da cena é sistemática, quase científica. As roupas não lhe vestem bem. Mas, apesar da distância que se impõe entre o filho e o pai, o encontro que a fotografia promove é verdadeiramente corporal.
Por sua vez, Roger Guaus traz no livro L’inassolible (O inatingível – 2012) a carta que seu pai, Manel, lhe dedica no momento em que o filho deixa a casa da família para construir seu próprio destino. No texto, reconhecemos uma figura paterna afetuosa, que busca aparar as arestas acumuladas pela relação, e que demarca com essa despedida o desejo de que sempre haja um caminho de volta: “Vivemos quase vinte e sete anos juntos e passamos momentos bons e maus. Os bons, não é preciso enumerá-los já que deixaram boas recordações; dos maus só quero te dizer que sou consciente de que foram por minha culpa, reconheço minhas “neuras” e é por isso que te peço que saiba me perdoar”.
Roger retribui o esforço do pai revisitando suas lembranças familiares, mas não deixa de abrir dentro delas o espaço para o destino que escolheu: sua nova casa, seus amigos, sua namorada, e a fotografia que, em algum momento desse percurso, ele abraça como profissão (quero ser fotógrafo, diz a legenda de um autorretrato em que aparece no espelho com a câmera). Não muito distinto do que seria um álbum de família de qualquer época, Roger Guaus constrói aqui um tributo a seus pais. Mas que anuncia delicadamente senão uma ruptura, ao menos uma superação: o filho reivindica para si a responsabilidade de reorganizar e dar continuidade a essa narrativa. Se a publicação da carta no livro demonstra uma escuta plena aos desejos e conselhos do pai, as imagens demarcam um lugar de fala ou, mais precisamente, um lugar de memória que, de agora em diante, pertence ao filho.
A família desenhada pelos álbuns oculta feridas pessoais, mas também históricas. Porque a moral que orienta os indivíduos não está inscrita apenas em seus corpos, nem mesmo num corpo doméstico, mas numa estrutura de poder que implica recalques coletivos e muito duradouros. Por isso, localizar na pose tradicional aquilo que ela nega e inventar para a imagem formas de agenciar afetos não nomeados pela tradição equivalem também a um gesto político.
O francês Bruno Boudjelal ainda não era fotógrafo e tampouco se reconhecia na paisagem da Argélia, quando iniciou a jornada pelo território de sua família paterna, que resultou no livro Disquiet Days (Dias intranquilos – 2009). Sua mãe, uma francesa de classe média, foi expulsa de casa quando sua família descobriu que ela havia engravidado de um soldado argelino, em pleno período da guerra que culminou na independência da Argélia. Quando ele nasce, em 1961, seu pai não está presente. E mesmo que sua família francesa tenha decidido lhe dar seu nome, Bruno Sombret – como foi batizado – é deixado numa instituição que abrigava filhos ilegítimos. O que vem a seguir está pouco explicado, mas é possível supor pelo diário que serve de introdução ao livro que a criança foi restituída ao convívio com seu pai. Nesse movimento de reencontro, Bruno recupera seu sobrenome árabe ao passo que seu pai adota um prenome francês.
Bruno conhece a Argélia em 1993, que vive então uma dura guerra civil. Ele se torna fotógrafo enquanto procura, entre paisagens de conflito e rostos amistosos, uma identidade que esteve sob risco de ser apagada. O acolhimento que encontra em sua família argelina ressalta ainda mais a rejeição experimentada em sua infância e a distância com essa origem que ainda se impunha no nome de seu pai: “Todos me falavam de Lemaouche, mas eu não tinha coragem de dizer a eles que, hoje, ele chamava a si mesmo de Jean-Claude. Mesmo quando eu era jovem, eu nunca havia escutado o verdadeiro nome de meu pai. Foi apenas no dia em que precisei de uma cópia de minha certidão de nascimento que descobri por acaso seu verdadeiro nome”.
As regras que definem uma boa fotografia de família não lhe são suficientes, na mesma medida em que não bastam as concessões que lhe permitiram usufruir de um nome francês. É com um extenso conjunto de fotografias borradas, obscuras e fragmentárias que realiza ao longo de muitas viagens pelo território argelino que ele irá traçar a história que lhe foi negada.
A artista brasileira Aline Motta também empreende uma jornada em busca de suas origens. Encarando traumas pulsantes ao longo de algumas gerações, seu percurso de volta para essa casa ancestral se revela incerto e cheio de bifurcações. Numa das ramificações familiares de Aline há uma dor histórica: tataravós presos à escravidão. Depois, há uma bisavó nascida no “ventre livre” de uma família ainda escravizada. E há uma avó com quem Aline conviveu. Mas não há nessa narrativa a figura de um bisavô. Sua jornada começa a ser desenhada quando sua avó lhe diz o nome de seu pai, o bisavô de Aline, e pede a ela que não o esqueça. A artista narra na vídeo-instalação que integra a série Pontes sobre abismos (2017): “O pai da minha avó Doralice se chamava Enzo. Enzo era o filho do patrão. Filho do patrão da casa onde sua mãe, minha bisavó, trabalhava. Ele nunca a reconheceu como filha. Eu encontro seu nome procurando em jornais antigos. Ele aparece muitas vezes na coluna social, é muito popular”.
Há aí uma história de poder e submissão que ainda lateja na pele de Aline, assim como na pele de tantas outras tantas pessoas, mas que não lateja como deveria numa consciência histórica coletiva. Temos preferido caracterizá-la como uma narrativa alheia, pertencente a um passado já resolvido pelos livros. Produzir imagens que revelam as marcas desse tempo no presente é um gesto político.
Aline expande sua busca e decide percorrer com o corpo sua genealogia. Levando consigo retratos de personagens familiares diversos, mas também deixando-se conduzir por eles, ela chega ao Rio de Janeiro, a Minas Gerais, também a Portugal e a Serra Leoa. Pelos retratos, ela promove o reencontro dessas paisagens com olhares que, um dia, foram sensibilizados por elas. E assim a artista compreende o modo como ela é visada pelo seu passado. Os três primeiros lugares estão bem mapeados pelas histórias contadas por sua família. O quarto, Serra Leoa, é apenas uma hipótese que nasce do esforço de não reduzir uma parte importante de sua identidade a uma África genérica. Se não há ali uma origem precisa, pelo menos, Aline encontra no destino que elege uma forte acolhida de pessoas que se reconhecem na fisionomia de sua bisavó.
O nascimento de um filho ou de uma filha não configura de imediato a existência de uma família. Mas inaugura uma ascendência que, mais cedo ou mais tarde, poderá ser reivindicada, e que produzirá tanto mais questões quanto menos ela se resolva no relato de um álbum clássico de família. Essa herança não é por si mesma um privilégio ou uma desgraça, mas é uma história que invariavelmente se inscreve no sujeito. Os afetos implicados não se resumem às formas simplistas do amor ou do ódio, mas são viscerais o bastante lançar o sujeito numa longa viagem pelo imaginário familiar. Algumas vezes, também por territórios distantes.
Entre a pose rigorosa dos antigos álbuns e as performances singulares dessas outras fotografias de família, a imagem se liberta de sua função de recalque. Ela ainda é agenciamento: não mais de um compromisso com a tradição, mas da busca daquilo que essas formalidades não permitiram dizer ou mostrar. E ainda é sintoma: não apenas dos sonhos mutilados e depositados no fundo de um guarda-roupa, mas de uma sensibilidade aguda, exposta à flor da pele, que permite experimentar um espectro muito amplo e ambíguo de afetos familiares. Em vez de exigir um personagem estático diante da câmera, essa fotografia lança o corpo a um movimento.///
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Os livros O suicídio de meu pai, de André Penteado, O inatingível, de Roger Guaus, e Dias intranquilos, de Bruno Boudjelal, estão disponíveis na biblioteca do IMS-Paulista. Uma fotografia da série Pontes sobre abismos, de Aline Motta, integra neste momento a mostra Histórias Afro-Atlânticas, no Instituto Tomie Ohtake (SP).
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica (www.iconica.com.br).
Tags: álbum de família, fotografia contemporânea, fotolviros