Dennis Hopper, últimas fotos
Publicado em: 13 de julho de 2015
Ninguém diria que os dois se tornariam inseparáveis, vivenciariam juntos momentos de desarmada simplicidade e juntos registrariam o passar do tempo e da vida. Embora parecessem pouco afeitos um ao outro, entenderam-se às mil maravilhas.
O “ele” desta história é o ator marrento de Juventude transviada, o diretor cult de Easy Rider – sem destino e a figura igualmente mítica na vida real Dennis Hopper (1936-2010). E “ela”, no caso, é a câmera Instamatic da Kodak , toda simples, certinha e dócil, que veio ao mundo em 1963 para facilitar a vida das pessoas.
Hopper ocupou o posto de profeta da contracultura dos anos 1960 desde o primeiro filme em que atuou. Seu papel ao lado de James Dean e Natalie Wood foi pequeno. Já o tamanho de seu temperamento difícil nada tinha de acanhado nem de ficcional. A cada novo papel, arrumava nova encrenca durante as filmagens, inclusive com George Stevens em Giant. Decidido a não ser domado, Hopper despediu-se de Hollywood sem nem deixar saudades e rumou para Nova York.
Ali o caubói rebelde nascido numa empoeirada cidade do Kansas foi acolhido sem reservas e pode juntar sua criativa combustão interna à cultura transgressora de Nova York. Para se ter um retrato vívido do que foram aqueles tempos e aquela tribo basta ler a descrição feita por Terry Southern, o roteirista de Easy Rider, de como conheceu Hopper em 1965.
Southern fora visitar Allen Ginsberg e Peter Orlovsky no apartamento do casal no East Village. Encontrou Orlovsky cantando e tocando bumbo na sala enquanto o autor do Uivo mais célebre da literatura universal tentava escrever alguma coisa numa das paredes. Havia enrolado um caderno de resenhas do New York Times em formato de canudo e o empunhava como se fosse uma caneta, usando um pote de mel como tinta. Mais adiante, uma jovem nua postada de cócoras ao lado de um ventilador jogava pétalas de rosas e pelos de cachorro em direção à ventania.
Hopper, por sua vez, transitava pelo salão registrando tudo com uma Nikon F 35mm. Ninguém parecia se incomodar. Tampouco ele, escreveu recentemente o editor John Leland do Lens Culture, deve ter percebido que aquela cena corriqueira dos tempos psicodélicos poderia ter saído de um de seus filmes de ficção.
Dennis Hopper descobriu a fotografia nos anos 1950 e a ela se entregou dos 18 aos 31 anos com a seriedade e compulsão que negou à carreira de ator.
O valor documental somado à qualidade técnica e linguagem pessoal que ele imprimiu à obra fotográfica resultaram num expressivo retrato dos anos que misturaram Hell’s Angels, hippies e Harlem, direitos civis, drogas e rock’n’roll. Trata-se quase de um diário visual do artista, belíssimo por sinal, com uma série de penetrantes retratos em preto e branco dos seus parceiros de inquietude.
Do convívio com Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein e Andy Warhol herdou um aguçado gosto por obras de arte e para sorte dos herdeiros teve o bom senso de adquirir bons quadros sempre que a sobriedade e a conta bancária permitiam. Ao morrer tinha pendurada nas paredes de casa uma coleção avaliada em US$ 300 milhões para repartir entre os quatro filhos de seus cinco casamentos (um deles durou apenas oito dias). A coleção anterior igualmente valiosa, que sumiu no tempestuoso vendaval do primeiro divórcio, incluía uma peça do esquivo Banksy intitulada No futuro todo mundo será anônimo por quinze minutos.
Disfuncional numa vida de picos de fúria e com a carreira sob constantes solavancos, Hopper concentrou na fotografia atributos que de resto sempre ficavam à deriva, como zelo, disciplina, foco, empenho. Foi o domínio da luz com uma Nikon que o habilitou a enfeitiçar plateias mundiais como diretor estreante de Easy Rider, o magnético road movie de 1969 em que a memorável dupla de motoqueiros sem destino (ele e Peter Fonda) revela a América profunda.
O triunfo e a adulação decorrentes do filme foram grandes demais para Hopper, que tinha então apenas 33 anos. Ele trocou a Nikon pelos antigos demônios e abandonou para sempre a carreira de fotógrafo que lhe rendera presença em cobiçados acervos de museus como o Metropolitan e o MoMa de Nova York.
Até recentemente conhecia-se apenas as cerca de 400 imagens por ele selecionadas para sua grande mostra individual no Centro de Arte de Fort Worth, Texas, em 1970. Essa mesma seleta pinçada de um material bruto de mais de 18 mil negativos, com ampliações originais numeradas pelo autor quatro décadas antes, resultou numa esmerada mostra na Royal Academy of Arts de Londres em 2014, quatro anos após a morte do artista.
Passou a década seguinte afastado de Los Angeles, rejeitado pelos estúdios de Hollywood. Foi encontrar nirvana em Taos, um sonolento povoado fincado no sopé das montanhas Sangre de Cristo, no estado do Novo México, que conhecera procurando locações para as filmagens de Easy Rider e pelo qual se encantara.
Não fosse Francis Ford Coppola arrancar Hopper do auto-exílio social em 1979, elencando-o para o papel do fotojornalista ensandecido de Apocalyse Now que se auto-explode com dinamite de propósito, ele talvez não teria vivido até os 74 anos. Nem morrido de câncer como tantos bípedes convencionais, cercado do carinho dos filhos. Embora no cinema ainda desempenhasse papéis de indomável – foi um sádico em Veludo azul, um técnico alcoólatra em Hoosiers, um vilão em Speed –, Dennis Hopper amansara na maturidade.
E o embrião desse desarmamento interior pode ser conferido nas 96 páginas de Drugstore Camera , o livro que Hopper talvez nunca imaginou ver publicado. As imagens nele reunidas datam do período abissal pós Easy Rider, quando o ator-diretor fora buscar refúgio d’alma em Taos e havia aposentado em definitivo a fotografia como arte.
Lançado no fim de maio de 2015, portanto cinco anos após sua morte, Drugstore Camera estava sendo aguardado como joia rara por colecionadores e curiosos, admiradores e críticos. Fora anunciado que todas as imagens constantes do novo livro eram não apenas inéditas, como haviam sido descobertas só recentemente por Marin Hopper, a filha responsável pelo acervo do pai, e pelo curador Walter Hopps. Haviam permanecido invisíveis e intocadas numa caixa de fundo de baú, identificada como “pessoal” por Hopper 35 anos atrás.
É aqui que “ela”, a Instamatic, entra em cena. Todas as fotos do livro póstumo foram tiradas pelo auto-ejetado da sociedade com uma câmera que se tornara sinônimo do consumismo de massa tão desprezível aos olhos dos rebeldes sem causa nem destino da tribo de Hopper.
Desde 1900 , quando introduziu no mercado americano a Brownie de US$ 1, a Kodak perseguia a meta de George Eastman de tornar a fotografia universal e acessível. Em 1963, com o lançamento da espantosa e amigável Instamatic, o fabricante alcançou um patamar até então inimaginável. Nos 24 primeiros meses vendeu mais de 7 milhões delas. Em menos de uma década, 50 milhões de pessoas empunhavam uma Instamatic, sobretudo mulheres e adeptos bissextos da fotografia que descobriam as delícias de registrar cenas familiares.
O segredo da câmera estava embutido no nome: ela não exigia destreza nem cuidado, um só movimento bastava para inserir o filme e num instante a Instamatic estava pronta para captar imagens. Sua inovação tecnológica era um cartucho selado que continha o filme e substituía o tradicional rolo de 35mm que tanta insegurança e humilhação gerava em neófitos. O usuário de ocasião encontrava dificuldade já ao inserir o rolo na máquina, pois a extremidade do filme teimava em se enroscar ou não se encaixar corretamente. Também era comum abrir o compartimento do filme antes de rebobiná-lo, inutilizando as fotos já batidas.
Com a Instamatic não havia risco de enguiço algum nem necessidade de procurar um ambiente sem luz para poder abrir a tampa da máquina. Tudo podia ser feito às claras. E com uma só mão. O filme estava hermeticamente enclausurado dentro do seu cartucho Kodapack, semelhante aos cartuchos de tinta das impressoras de hoje , permitindo que a dócil câmera fosse manuseada por qualquer um, sem medo ou saber.
O que fazia então uma Instamatic nas mãos talentosas de Dennis Hopper em Taos no final dos anos 1960, início dos 1970? Tudo. E nisso reside o interesse maior do material publicado em Drugstore Camera. Ao contrário da esplêndida seleta reunida em The Lost Album, o livro anterior também póstumo que expôs o seu domínio absoluto sobre a arte de fotografar, a qualidade do que ele produziu com a Instamatic é decepcionante para quem ansiava por algo magistral.
No conjunto trata-se de fotos lavadas de definição grosseira, castigadas pela idade. Algo como uma gravação musical da era anterior ao hi-fi. A temática é frequentemente banal. Não fossem os enquadramentos e o olho perceptivo de Hopper para algumas cenas, as imagens agora reveladas poderiam ter sido feitas por qualquer estreante na fotografia.
Ainda assim o seu valor é considerável por retratarem o estado interior do ator naquele período. Na opinião da filha Marin o pai se recolhera a Taos para refletir sobre a vida e as perdas que sofrera até então. E fez da Kodak sua companheira de todas as horas para registrar, de forma não deliberada, as demandas do seu íntimo mais recôndito. Comportava-se em relação à câmera da mesma forma que os milhares de outros usuários no resto do mundo: sem fetiche. Ele a mantinha sempre ao alcance da mão, numa parceria descomplicada. Quando batia a última chapa de um cartucho, ele o levava à drogaria mais próxima para ser revelado e de lá saía com novo cartucho virgem. Daí o feliz título do livro, Drugstore Camera.
É possível que Hopper nem sequer considerasse estar fazendo fotografia na acepção mais nobre da palavra – estava apenas fotografando. Familiares, amigas nuas em instantâneos domésticos, muitos flagrantes da paisagem árida do entorno de Taos, o vilarejo remoto que no passado já atraíra artistas como D.H. Lawrence, Aldous Huxley e Georgia O’Keefe. São inúmeras as imagens contemplativas, simbólicas, reveladoras de uma necessidade de registrar (porém não necessariamente publicar) sua década de introspecção passada no casarão de adobe que comprara em Taos. Ao longo dos anos abrigou um eclético elenco de jovens à deriva nos 22 cômodos da propriedade.
A dimensão da importância de Taos na vida de Hopper ficou aparente em 2010, quando o ator já havia retornado a Los Angeles e havia feito as pazes – ou pelo menos aceitado uma trégua duradoura – com seus demônios. Devastado por um câncer que avançara para metástase, Hopper comunicou a familiares e amigos que desejava ser enterrado na terra desértica que o acolhera como um filho.
Seu desejo foi cumprido à risca. Marion descreve a cena no ensaio que acompanha a edição de Drugstore Camera: “O caixão foi abaixado ao som do ronco máximo das motocicletas Harley Davidson, amorosamente acionadas como último tributo, e meu pai partiu para sempre no pôr do sol”.
Duas semanas antes, o então governador do Novo México, Bill Richardson, havia proclamado 17 de maio, data de nascimento do caubói marrento, o “Dia Dennis Hopper”. Desde então a homenagem anual sacode o estado. Em Taos, onde a data entrou na categoria de feriado municipal, o culto ao brother é alimentado pela legião de seguidores que atravessa a vida sob duas rodas determinada a não se deixar exterminar. São centenas, milhares de Harleys do país inteiro que emergem em Taos para se juntar aos festejos do dia.
Na edição de 2015 a data caiu num sábado. No ano anterior o espetáculo foi assistido por Marin. “Para mim”, escreveu ela, “presenciar a interminável caravana de motociclistas despontando na estrada a céu aberto foi como ver uma legião de Dennis Hoppers surgir de Valhalla. Nada faria meu pai mais feliz do que essa combinação de paisagem rasgada por uma estrada, o sol do Novo México, e o ronco em busca da liberdade.”///
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.
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IMAGENS ©DENNIS HOPPER; Cortesia The Hopper Art Trust, dennishopper.com