A fúria contra o estranho
Publicado em: 10 de agosto de 2016Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.
Clarice Lispector, “Mineirinho”
Em janeiro de 2014, um adolescente negro, acusado de roubo por passantes na rua, foi perseguido e capturado por três homens no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Depois de o espancarem e darem uma facada em sua orelha, os “justiceiros” arrancaram sua roupa e o prenderam pelo pescoço a um poste, usando para isso uma trava de bicicleta. A cena do suplício foi gravada em fotografia e vídeo por uma moradora da vizinhança que socorreu o rapaz, sendo logo compartilhada em redes sociais e disseminada, em seguida, na imprensa. As imagens provocaram associações imediatas com registros antigos, feitos em gravuras no Brasil do século 19, de homens e mulheres negros escravizados que eram amarrados em pelourinhos para receberem castigos de seus senhores por faltas cometidas. Cenas que supostamente pertenciam ao passado escravocrata do país, quando a resolução de disputas entre partes expressavam o domínio direto que alguns exerciam sobre os corpos de outros, inclusive para aniquilá-los em definitivo. A perturbadora semelhança entre a fotografia do jovem estampada nas capas de jornais e as gravuras impressas nos livros de história denunciava, porém, a persistência, no imaginário e na prática de pessoas de agora, de modos de resolver conflitos que dispensam a observância dos ritos mais básicos da justiça. Tornava evidente, ademais, o lugar que geralmente cabe, nessa divisão de papéis sociais, àqueles que têm poucos meios e possuem a pele escura.
Esse fato logo também chamou a atenção para mais outros, semelhantes, que ocorrem com regularidade no Brasil, em que acusados de algum delito são justiçados por um agrupamento de indivíduos comuns que se colocam na posição de árbitros últimos de crimes supostamente cometidos, existam ou não provas cabais de autoria. São acontecimentos que seguem, em um desenrolar de coreografia bárbara, uma sequência rotineira de atos: perseguição, captura, xingamentos e ataques físicos variados (pauladas, pontapés, apedrejamentos, mutilações) que com frequência levam à morte daquele que é apontado como culpado por um grupo difuso e quase sempre anônimo de pessoas. Acontecimentos que desde o final do século 18 são chamados de “linchamento”, em referência ao fazendeiro norte-americano Charles Lynch, que, no contexto da Guerra de Secessão de seu país, se outorgou o direito de perseguir e julgar, apoiado na força bruta da milícia que ajuntara, aqueles que houvessem cometido, a seu juízo, crimes de natureza grave. E entre tais faltas incluía-se, é evidente, fazer oposição à separação do Sul escravista do Norte majoritariamente abolicionista dos Estados Unidos. Não é surpreendente, portanto, que as vítimas mais habituais das penas violentas e no mais das vezes fatais impostas por esse simulacro de júri, como o enforcamento, tenham sido (e continuaram a ser, ao longo do tempo) homens e mulheres negros que se dispuseram a lutar contra discriminações sofridas naquele regime de exploração radical, em inequívoca associação entre essa forma de punição drástica e o racismo que permeia e informa relações de sociabilidade.
A prática do linchamento se alastrou e se consolidou de tal maneira nos Estados Unidos que se tornou comum, no início do século 20, a edição de cartões postais registrando, em fotografias e informações textuais, o cumprimento, à margem da lei, dessas sentenças às quais não cabe apelo, conduzidas de maneira informal por agrupamentos humanos de diversos tamanhos. Em um dos textos que compõem o Arquivo universal organizado por Rosângela Rennó por vários anos – conjunto de notícias coletadas em jornais nas quais existem alusões menos ou mais diretas a fotografias –, há referências a um desses cartões, no qual os linchadores aparecem rindo para a câmera, assim como a outro em que a própria vítima, prestes a morrer, é obrigada a posar para que a documentação visual da cena seja feita. Embora a produção desses postais tenha há muito caído em desuso por serem por demais explícitos em seu propósito de compartilhar a lembrança de uma prática sórdida, o fascínio do público por essa forma de julgamento arbitrário parece não ter diminuído com o tempo. Tampouco parece ter-se estancada a realização desse tipo de justiçamento coletivo. O indicador maior da atualização constante desse ato bárbaro e do continuado consumo de seu registro em imagens – antes feitas em termos analógicos e impressas em papel – é a incessante proliferação de vídeos digitais que capturam, com crueza, cenas atuais de linchamento. Difundidos principalmente no You-Tube, a violência que exibem faz com que sejam logo denunciados e excluídos dali, somente para serem substituídos por outros mais recentes em seguida. Foi sobre esse material abundante e efêmero que o coletivo brasileiro Garapa se debruçou para fazer, em 2015, o fotolivro Postais para Charles Lynch.
O projeto [vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS de 2014] tem como núcleo a compilação de uma série de frames desses vídeos amadores feitos em partes distintas do Brasil, quase sempre com câmeras de telefones celulares. Em vez de articulados e impressos em sua forma de origem, os fragmentos de imagens escolhidos são submetidos a operação técnica que reduz sua legibilidade, resguardando, contudo, o entendimento geral do que é neles apresentado. Para alcançar esse intento, o coletivo promove a mistura entre os códigos digitais que constituem os frames selecionados e trechos de comentários escritos sobre os vídeos dos quais as imagens foram extraídas, quase todos celebrando as ações violentas. Como resultado dessa fusão técnica e intuitiva, geram-se ruídos visuais que distorcem ou obliteram parte dos conteúdos dos frames, tornando-os opacos em maior ou menor medida. Opacidade que equivale, talvez, àquela destinada socialmente às vítimas dos linchamentos no país, quase todos pobres, jovens e negros. Intercalando conjuntos dessas imagens parcialmente borradas, trechos dos comentários de ódio podem, todavia, ser lidos integralmente, inseridos em meio a uma malha de outros sinais gráficos. De edição limitada, o fotolivro é ainda acompanhado pelos vídeos originais escolhidos pelos autores para fazer o trabalho, armazenados em um disco rígido de difícil leitura, bem como pela transcrição de um áudio que registra o enredo assombroso de um dos justiçamentos.
Coletivo Garapa, “Postais para Charles Lynch” (fotolivro de edição limitada), 2015. Bolsa de Fotografia ZUM/IMS
A partir da complexa e original articulação entre assunto e forma contida em Postais para Charles Lynch, talvez seja possível voltar no tempo e tentar esboçar uma genealogia da presença do ato de justiçar o outro – de aniquilar o estranho – na arte brasileira. Mesmo que seja incompleta, mesmo que seja falha, mas que ao menos identifique, nessa diversa produção simbólica, ecos e rastros de atos que ainda assombram e marcam as maneiras de conviver com o diferente no país. Diferente, seja dito, para quem tem a força de mando formal e informal a seu lado e que pode, portanto, instaurar e validar o que é norma e o que é regra.
É sintomático do componente racial que rege muitos desses acontecimentos que a primeira manifestação visual sobre justiçamentos de que se tem notícia no Brasil aconteça quase às vésperas da abolição formal da escravidão no país, em 1888. Mais especificamente, no periódico Revista Illustrada, que com frequência fustigava os donos do poder no Brasil, causando furor e a fúria de muitos. Poucas vezes a publicação foi tão contundente nessa postura crítica, entretanto, como quando retratou, em ilustração feita por seu proprietário e também desenhista Angelo Agostini – italiano radicado no Rio de Janeiro –, o linchamento de Joaquim Firmino de Araújo Cunha, delegado de Penha do Rio do Peixe, no interior de São Paulo, conhecido por proteger escravos fugidos. Quem liderou as cerca de 200 pessoas que invadiram sua casa e o mataram a pauladas e facadas foi um fazendeiro norte-americano que morava nas proximidades, James Warne, aparentemente inspirado nos métodos empregados pelos supremacistas brancos nos Estados Unidos, difundidos por Charles Lynch um século antes. Embora a prática do linchamento date de muito antes no Brasil – antes mesmo de ser assim chamada, ainda no século 16 –, e que tenha tido como vítimas principalmente índios e negros escravizados, o justiçamento documentado em desenho por Angelo Agostini foi um marco justamente por ser um caso em que homens brancos assassinavam brutalmente outro homem branco, acusado de atuar ativamente contra a escravização de homens negros. A forma de registro do que foi considerada grave falta moral é representativa, ademais, do fato de que é na imprensa que mais se encontram documentações sobre linchamentos, posto que sua autoria difusa com frequência inibe testemunhos e impede investigações policiais de avançarem a ponto de identificar culpados. Não é por acaso que James Warne e seus cúmplices tenham sido, posteriormente, inocentados do crime cometido.
Foi também através da imprensa que Flávio de Carvalho deu visibilidade à sua Experiência N. 2, que, realizada em 1931, antecipou procedimentos que seriam décadas depois associados a happenings e performances. Defrontando-se, por mero acaso, com os inúmeros devotos que seguiam a procissão de Corpus Christi no centro da ainda conservadora cidade de São Paulo, ocorreu ao artista querer aferir o que movia o sentido de coletividade que identificava ali: se a racionalidade individual ou a fé cega em crenças coletivas. Para tanto, foi rapidamente em casa e voltou com um chapéu de feltro verde à cabeça. E foi assim trajado que Flávio de Carvalho começou a percorrer a procissão em sentido contrário ao que seus integrantes caminhavam, em aberto gesto de confronto aos códigos de conduta apropriados à liturgia daquela manifestação religiosa. Em pouco tempo, após passada a incredulidade dos participantes da procissão diante do que viam, começaram a ecoar, cada vez mais alto em todo o cortejo, palavras de repúdio ao seu comportamento, logo seguidas por ameaças de represálias físicas caso não saísse de imediato dali. Ao crescer da tensão, não tardou para que alguém gritasse e repetisse, de algum ponto do agrupamento, a ordem talvez já aguardada por outros: “Lincha! Lincha!”. A partir daí começaram e avolumaram-se as agressões físicas ao provocador, índices claros da transformação, em poucos instantes, de um grupo de contritos devotos católicos em uma turba de justiceiros pleiteando o direito de tirar a vida de uma pessoa, sem escuta ou direito de defesa. O artista ainda tentou reclamar – sem obter sucesso algum em seu argumento – da absurda desproporção física daquela disputa, em que centenas de homens combatiam um único oponente. A perda completa do controle sobre a situação forçou Flávio de Carvalho a buscar alguma rota de fuga que o afastasse da ira dos religiosos, conseguindo por fim refugiar-se em uma leiteria próxima, de onde foi resgatado pela polícia e levado à delegacia para explicações. No dia seguinte, várias matérias foram publicadas nos jornais da cidade, noticiando o fato e comentando as justificativas do artista para seu gesto de aberto confronto, o qual seria, segundo afirmou, a base para um estudo que faria sobre as relações entre a racionalidade individual e o comportamento das multidões. Em livro publicado no mesmo ano, em que de fato descreve e analisa o episódio nos termos anunciados, reconhece, como resultado dessa experiência, sua perda de confiança na análise racional que cada um pode fazer dos acontecimentos, posto que a multidão havia reagido unicamente de acordo com o que chamou de “emotividade ancestral”, despertada nela, naquele contexto, pela religião. Multidão que havia reagido do modo usual a que responde também a outras situações de linchamento: como corpo amorfo, porém uniforme, que não suporta quem lhe diz “não”.
Embora haja evidentes diferenças entre linchamentos protagonizados por uma multidão informe como a que quase pôs em risco a vida de Flávio de Carvalho e os justiçamentos levados a cabo por policiais que se auto-atribuem a prerrogativa de julgar e condenar alguém por crimes alegadamente cometidos, uns e outros se equiparam por suspenderem, de modo radical e definitivo, os direitos mais básicos das vítimas, a despeito do que tenham feito de ilegal e, ainda mais grave, de muitas vezes serem inocentes. Guardadas suas especificidades, ambos procedimentos podem ser entendidos, como sugere o sociólogo José de Souza Martins em seu livro Linchamentos: A justiça popular no Brasil, como respostas drásticas a quem confronta, voluntariamente ou não, marcadas hierarquias sociais existentes – de raça e de classe, principalmente, mas também de comportamento –, e seja percebido como ameaça por isso. Como modos, portanto, de punir dissidentes e garantir partilhas materiais e simbólicas que vigoram em um dado lugar e instante.
No âmbito do regime autoritário instalado em 1964 no Brasil, reações de naturezas diversas à ordem imposta pelos militares foram muitas vezes combatidas com o uso desmedido da violência pela polícia ou por organizações paralelas que, formadas majoritariamente por integrantes de corporações legais, atuavam clandestinamente para sentirem-se mais à vontade em suas ações pretensamente saneadoras, como foi o caso, por anos no país, dos chamados Esquadrões da Morte. Não é acaso ser a partir desse período que alguns artistas visuais brasileiros começam a criar equivalentes, no campo do sensível, para casos de justiçamento que somente eram de conhecimento público, como de costume, através da consulta a sessões de assuntos policiais dos órgãos da imprensa. É nesse contexto que Hélio Oiticica cria, em 1966, o “bólide” Homenagem a Cara de Cavalo, objeto semelhante a uma urna que constrói para louvar o bandido morto dois anos antes com mais de uma centena de balas disparadas pela polícia do Rio de Janeiro. Integrava o trabalho, com realce, a fotografia de Cara de Cavalo (cujo nome era Manoel Moreira) publicada por um jornal carioca, em que ele jazia inerte no chão com a barriga ensanguentada virada para cima e com os braços estendidos e abertos em cruz. Em adição a ela, se destacava um texto, em tom de epitáfio, escrito sobre uma pequena almofada: “Aqui está e ficará! Contemplai seu silêncio heroico”. A execução fora feita pela organização policial clandestina que se autodenominaria, daí por diante, de Scuderie Le Cocq, deferência ao delegado Milton Le Cocq, morto por Cara de Cavalo em meio a ação que visava prendê-lo a mando informal de um desafeto do bandido. Além de ser amigo do artista que lhe prestou tributo, Cara de Cavalo era, para muitos da favela onde morava, um herói popular, alguém que, confrontando a polícia por que modos ou razões fossem, desafiava as leis repressoras e excludentes do Estado brasileiro. Homenagem tão mais significativa quando se considera que, naquele momento, vivia-se o começo da ditadura militar no Brasil.
Um ano mais tarde, em 1967, Hélio Oiticica exibiria, no interior de uma caixa de madeira que transformou em mais um “bólide”, a imagem de outro bandido morto após ser perseguido pela polícia do Rio de Janeiro. Tratava-se da fotografia do corpo de Alcir Figueira da Silva – semelhante à de Cara de Cavalo e também publicada na imprensa –, bandido que, alcançado pela polícia após cometer um assalto a banco, resolvera, segundo relataram testemunhas, cometer suicídio para não ser linchado pelo povo ou executado pelos agentes públicos. Dobrada sobre a imagem, havia ainda uma tela de tecido onde se podia ler uma pergunta escrita, endereçada a quem a contemplasse: “por que a impossibilidade?” Essa mesma fotografia seria reproduzida, em 1968, no que se tornaria um dos mais emblemáticos trabalhos do artista: Impressa sobre um tecido que virou bandeira, encimaria a frase-lema que Hélio Oiticica cunhou à época: “seja marginal, seja herói”. Cara de Cavalo e Alcir Figueira da Silva eram de algum modo aparentados a José Miranda Rosa, o Mineirinho, bandido caçado pela polícia carioca e morto, em 1962, com treze balas instaladas em seu corpo. E foi por não entender a necessidade de matar tantas vezes a mesma pessoa, não importando o crime que tivesse cometido, que a escritora Clarice Lispector dedicou a ele uma crônica (“Mineirinho”), na qual se coloca no lugar do outro assassinado e repudia esse tipo de ação violenta com que “falsamente nos salvamos” todos.
Os justiçamentos feitos pelos Esquadrões da Morte no Brasil são igualmente evocados no filme Semi ótica, realizado por Antonio Manuel em 1975. Neste perturbador trabalho, o artista apresenta uma sequência de fotografias de supostos bandidos executados por essas milícias e publicadas em jornais, seguidas de informações sumárias sobre cada um deles, como seus apelidos, idades (quase sempre muito jovens) e cor de pele. É desconcertante, contudo, que as cores atribuídas a cada um desses homens sejam semi-verde, semi-amarelo, semi-azul, semi-branco e semi-negro: as quatro primeiras em evidente referência às cores presentes na bandeira do país e a última ao tom da tez da maioria dos que estão ali registrados. Cores, entretanto, que não existem de fato, como se a bandeira do que seria a pátria deles tivesse colorações menos firmes. Ou como se mesmo o que resta de cada um deles depois de mortos – a imagem de um corpo inerte e mutilado – estivesse já em processo de esmaecimento, replicando a invisibilidade social que possuíam quando ainda estavam vivos. Realizado no período de maior brutalidade do regime militar no país, bem como de completo descontrole das organizações policiais clandestinas, o filme indica que esses homens, mesmo antes de morrerem, não eram inteiros. Eram sobras, quando tanto, e é somente como tais que podem ser adequadamente representados. Na parte final do trabalho, a câmera passeia por uma paisagem noturna de um bairro periférico qualquer ao som de uma música romântica popular. Sobreposta a essa cena prosaica, ocupa o centro da tela o conhecido emblema da Scuderie Le Cocq, formado por um crânio humano e dois ossos cruzados em xis, reiterada referência ao fato de que são os pobres (e os mais pobres são igualmente os mais negros no Brasil) as vítimas preferenciais da violência policial clandestina no país. Vítimas de justiçamento que estão em situação ainda pior do que a ocupada pelos que sofrem linchamentos de uma multidão civil, posto que em seu caso não há sequer a quem mais se apelar para serem salvos.
Com poucas variações, é esse também o perfil dos treze homens assassinados cujas fotografias aparecem, enfileiradas e apoiadas no chão e na parede, no trabalho Atentado ao poder, que Rosângela Rennó realizou logo em seguida à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro (ECO 92), oito anos após o fim do regime autoritário militar. Todos os treze haviam sido mortos durante as duas semanas de realização do evento, e tiveram as imagens de seus corpos publicadas originalmente na imprensa carioca, de onde a artista as coletou. Não há identificação nominal dos retratados na instalação, e tampouco as causas de suas mortes são mencionadas, embora todas tenham sido claramente violentas, podendo ser resultado de linchamentos espontâneos ou de justiçamentos deliberados. Em quaisquer dos casos, é provável que sejam produto de uma sequela social que, ainda que antiga, amadureceu e foi disseminada nos anos ditatoriais: a ideia de que seria legítima a punição extralegal de crimes quando as autoridades fossem percebidas, por cidadãos comuns ou por milícias para-policiais armadas, como lenientes ou demoradas. Acima das duras imagens, somente a expressão The Earth Summit escrita sobre a parede, referência irônica à catástrofe humana que não se dissocia dos desastres naturais discutidos naquela reunião de cúpula. Se o título do trabalho parece sugerir que a mera existência dessas fotografias deveria ser tomada como uma afronta a quem tem o dever de proteger os cidadãos inocentes e também o de respeitar os direitos constitucionais dos que pareçam ter cometido algum crime, as imagens que o compõem indicam que há forças regressivas em operação no país que resistem a qualquer tipo de controle social, mesmo em tempos de retorno a um ambiente formalmente democrático. É curioso, ademais, que Rosângela Rennó subverta a horizontalidade original das imagens ao exibi-las como parte de seu trabalho. Arranjando-as verticalmente uma ao lado da outra, altera o que é a posição esperada dos mortos e os dota de uma presença que desestabiliza os sentidos do espectador, desacomodando ao menos um pouco o olhar anestesiado de quem já quase com coisa alguma se desconcerta.
A questão do que pode a arte em um contexto de anomia ou barbárie, no qual se lincham e justiçam pessoas às vezes até por nada e onde se instalam estados de exceção localizados, também é tratada, de modo expresso, pelo trabalho Ética como estética / estética como ética, apresentado por Cildo Meireles como intervenção gráfica no catálogo da Bienal de Veneza, em 2003. Para tanto, o artista não fez mais que inserir, como parte da publicação de uma das mais importantes exposições de arte do mundo, fotografias de jovens homens negros assassinados, sete anos antes, em uma favela do Rio de Janeiro, originalmente veiculadas em um jornal popular sob a manchete “Exposição macabra”. Nas imagens feitas à luz dura do dia por repórteres, os corpos aparecem cuidadosamente dispostos sobre manilhas de concreto ou outros artefatos construtivos que já se encontravam no meio da rua ou nas calçadas. Os mortos estão todos de costas e de braços estirados por cima das cabeças ou abertos em cruz, em remissão plausível a cenas religiosas já vistas um dia por muitos, revelando o paradoxo de os corpos das pessoas assassinadas serem dispostos por seus algozes quase como fossem santos. São cenas que fazem ainda recordar os registros de imprensa apropriados por Hélio Oiticica para realizar suas homenagens a vítimas de práticas de justiçamento policial pouco menos de quatro décadas antes, como se o tempo não tivesse passado para um extrato definido de habitantes do Brasil.
Nenhuma informação é dada, porém, sobre a razão do extermínio desses homens, sobre o modo como morreram e tampouco sobre quem os teria assassinado e os exibido assim. Mas sejam quais forem as causas, as formas e os autores dessa chacina relembrada na intervenção de Cildo Meireles, chama a atenção a indiferença de vários dos passantes que são também capturados nas fotografias, como se a indicar uma naturalização, por repetição monótona, da aplicação reiterada de uma pena capital que inexiste legalmente no país. O trabalho recoloca, a seu modo, a questão que por muitos anos inquietou a ensaísta Susan Sontag acerca dos efeitos que imagens de atrocidades cometidas podem ter sobre aqueles que as veem vezes seguidas: se são capazes de mobilizar a vontade de cada um em combater aquilo que documentam ou se, de tanto serem vistas, deixam de incomodar e levam à apatia. Se, em seu último livro (Diante da dor dos outros), parece não possuir ainda plena certeza sobre o assunto, resolve fazer, contudo, uma aposta no poder transformador desses registros: “Deixemos que as imagens atrozes nos persigam”. Mesmo que de modo hesitante, afirma a crença na faculdade de as fotografias fazerem mais do que somente recordar aquilo que já se passou um dia, alertando a quem se deixa afetar por elas sobre a violência latente que há no mundo.
Para além do uso de imagens que podem inquietar (embora sem abrir mão delas), a Frente 3 de Fevereiro – coletivo de artistas e ativistas baseados em São Paulo –realizou, entre 2004 e 2007, intervenções em espaços públicos que evidenciam o viés racista da abordagem policial na cidade onde vivem e, por extensão, no Brasil. Abordagem que toma a cor escura da pele como índice de suspeição e que não raramente despreza os protocolos legais a que deveriam estar submetidos para assumir formas extrajudiciais e violentas. A Frente foi criada com este nome, justamente, como modo de marcar a data em que o dentista negro Flávio Ferreira Sant’Ana, de 28 anos, confundido por um grupo de seis policiais com um assaltante procurado, foi assassinado por dois deles, que disparam sete tiros contra seu corpo apenas por ter reagido – desarmado, como ficou depois provado – à abordagem truculenta. O impensável que é matar alguém – negro, enfatize-se novamente – apenas por ser suspeito de ter cometido um roubo já aproximaria o ocorrido a tantos justiçamentos feitos pela polícia no país informados pelo preconceito de cor. O fato de o dentista ter uma inserção social distinta da maior parte dos jovens negros que vivem no Brasil somente realça as razões últimas de sua morte. Para marcar um ano desse assassinato, os integrantes do coletivo realizaram, em 2005, uma ação “para lembrar os muitos Flávios que são executados pela polícia de São Paulo”. Estenderam, sobre o chão de praça pública, dezenas de sacos plásticos pretos que evocavam as lápides de várias dessas vítimas, todos eles assinalados com cartazes que listavam seus nomes, a cor de sua pele (negra) e a idade que tinham quando foram eliminadas, além de outros informando ter sido a polícia a autora das mortes tão violentas quanto ilegais.
Também se valendo de estratégias variadas, Jaime Lauriano elencou, em uma série de três trabalhos chamados Suplício, todos de 2015, objetos que foram e são usados para linchamentos e justiçamentos ao longo da história do Brasil, sejam os cometidos pela multidão anônima, sejam os perpetrados por policiais em ações em que ignoram as mais básicas normas legais vigentes. Em um deles, fez glossário de aparente caráter científico com nomes e ilustrações de instrumentos banais usados para ataque e aprisionamento, tais como pedra, fita, corda, tubo de lâmpada, barra de ferro, trava para bicicleta, corrente e poste, indicando ainda desde quando são empregados para este fim. Em dois outros trabalhos, montou vitrines museológicas contendo esses e outros objetos ordinários utilizados para prender e golpear aqueles que são mais vulneráveis a acusações que lhes sejam feitas, sem que haja qualquer possibilidade de defesa ou respeito à presunção de sua inocência. Para prender e golpear aqueles que, historicamente no país, são majoritariamente pobres, jovens e negros. Já em Calimba, do mesmo ano, o artista imprime a laser e fogo, sobre placas de madeira, manchetes de jornais publicados na internet que reportam casos de linchamento ou de tentativas de justiçamento em várias partes do Brasil: “Suspeito de assalto é espancado e amarrado em poste em Fortaleza”, “Uberaba: suspeito de roubo é amarrado em poste”, “Suspeito de assalto é espancado no Rio. MA tem mais 2 casos de agressão”.
São ocorrências que não somente atualizam punições diversas introduzidas no período de colonização do país, mas que as tornam visíveis em lugares os mais distintos e distantes. Ocorrências que podem ainda ter, a depender do contexto, agências coletivas diferentes: multidão de civis ou agrupamento de policiais. Se há algo que unifique a maior parte delas, para além de se caracterizarem como atos de desumanização, é o fato de terem, como alvo destacado, segmentos específicos da população do país em termos de idade, raça e classe. Não é por nada que, apesar da relativa opacidade das imagens encontradas em Postais para Charles Lynch, é possível notar que todas as vítimas ali reunidas são jovens e têm a pele escura. E se pudessem narrar suas histórias, certamente revelar-se-ia que têm poucas posses. Não é por nada, em particular, que as quatro últimas fotografias exibidas no fotolivro do coletivo Garapa são de um mesmo adolescente negro e pobre que, ferido e despido por seus agressores, está preso pelo pescoço a um poste, como lembrança de um passado que insiste em intrometer-se no agora. Não é por nada, por fim, que eram negros os cinco rapazes confundidos com bandidos pela polícia quando voltavam para casa depois de um passeio no parque, em uma comunidade modesta do Rio de Janeiro, no final de 2015. Sem direito à apelação, foram mortos por 111 balas disparadas contra eles pelas autoridades. Trinta delas de pistola. Oitenta e uma outras de fuzil.///
+
José de Souza Martins, Linchamentos: A Justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
Clarice Lispector, “Mineirinho”. In Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Susan Sontag, Diante da dor dos outros, trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010) e Local/global: Arte em trânsito (2005), entre outros volumes e ensaios em livros.
Tags: arte, Brasil, cor da pele, discriminação, ditadura, escravidão, linchamentos, preconceito, raça, racismo