A cor e o México: entre estereótipos, recalques e invisibilidades
Publicado em: 8 de fevereiro de 2024Chegar a um território desconhecido com a pretensão de mapeá-lo é a ansiedade de todo viajante. Em algum momento, será preciso escolher entre percorrê-lo por meio de seus circuitos mais emblemáticos ou se deixar perder em fragmentos aleatórios da paisagem. Esta última possibilidade é menos produtiva em termos das verdades que acreditamos descobrir sobre o lugar. Mas, além de ser mais autêntica como vivência, permite situar minimamente a distância que persiste entre o olhar estrangeiro e a paisagem local.
O que é a fotografia de um país? Esse é o território supostamente mais delimitado que, em algumas viagens, ainda me flagro desejando mapear. Aprendi, ao custo de muitas frustrações, que ele ainda é extenso o bastante para implicar os mesmos riscos.
Mexichrome
A surpresa foi, numa viagem recente, encontrar uma exposição à altura dessa ansiedade: Mexichrome – Fotografia e Cor no México, em cartaz no Palácio de Bellas Artes, na Cidade do México, até março de 2024. A mostra é exuberante, resultado de uma extensa pesquisa feita em arquivos e coleções privadas por James Oles, curador estadunidense especializado em arte latino-americana. A mostra traz 180 imagens de autores mexicanos, como Manuel Álvarez Bravo, Pedro Meyer, Pablo Ortiz Monasterio, Gabriel Orozco, e estrangeiros que viveram ou atuaram no país, como Tina Modotti, Joel Meyerowitz, Susan Meiselas, Stephen Shore, Nan Goldin, Candida Höffer, Francis Alÿs e Miguel Rio Branco. A cor aparece ali por meio de técnicas diversas: daguerreotipo e papel fotográfico pintados à mão, autocromo, dye-transfer, polaroid, negativo colorido, cromo, além de fotos produzidas ou manipuladas digitalmente. Uma síntese da mostra pode ser vista na galeria virutal do Google Arts & Culture.
Foi um privilégio estar ali, de passagem, justamente no momento em que uma exposição “explora, pela primeira vez, a ampla e complexa história que surgiu no país depois da invenção da primeira película colorida”, como propõe o texto de apresentação. Mas desconfio da amplitude desse mapeamento, tanto quanto da minha satisfação em poder usufruir dele.
A cor na imagem e no imaginário
Não é tarefa simples encontrar um tema capaz de garantir o recorte necessário a qualquer curadoria, mas também a grandiosidade pretendida pelo projeto. A cor cumpre esse papel com alguma eficácia: ela está lá, como um dado comum a todas as imagens, mesmo que nem sempre seja efetivamente problematizada. O resultado é um panorama bastante amplo, em que os artistas escolhidos são representados por uma ou duas imagens, de modo que seus ensaios e pesquisas ficam muitas vezes reduzidos ao impacto visual que cada uma delas é capaz de produzir.
Para atenuar os riscos dessa fragmentação, a exposição organiza os trabalhos em blocos temáticos menores: paisagem, passado pré-hispânico, muros pintados, antropologias, arquitetura moderna, ansiedade e violência, mercados e comércio, religião e cerimônia e, por fim, bandeira. Internamente, esses recortes resultam em narrativas bem articuladas, a ponto de quase nos permitir esquecer o tema geral da exposição. Alguns deles trazem boas reflexões.
“Antropologias” é um conjunto particularmente interessante, não tanto por aquilo que a cor coloca, mas porque abrange as tradições ancestrais, suas transformações, assim como as microculturas urbanas que pluralizam as referências culturais que habitam o México. Também porque situa procedimentos bastante experimentais dentro da perspectiva do documento etnográfico.
Mas é no bloco dedicado às “violências” que a passagem do p&b para a cor toca num problema que não tem a ver apenas com a história das imagens, mas também com um imaginário histórico. O texto que apresenta esse recorte lembra que “a revolução mexicana parece distante porque, em nossa imaginação, esses atores e eventos apenas existem em impressões em gelatina e prata”, isto é, em preto e branco.
Algumas dessas imagens podem ser vistas por quem caminha numa rua não muito longe dali, em outra exposição: El Revolucionario del Pueblo, dedicada a Francisco “Pancho” Villa, na Galería Abierta del Senado de la República. De fato, não é raro que o preto e branco demarque em nosso imaginário a distância no tempo que uma fotografia precisa para ser chamada de histórica. Quase em frente ao Palácio de Bellas Artes, encontramos outro espetáculo de rua – uma espécie de tableau vivant – que permite aos turistas se fotografarem ao lado de Pancho Villa e Emiliano Zapata, caracterizados por cenário e figurino monocromáticos. São os mesmos tons de sépia que encontramos em algumas fotografias antigas, próximos também do bronze envelhecido de antigos monumentos.
Mexichrome mostra que o progresso não oferece as garantias prometidas de justiça e liberdade e lembra que as revoluções e as catástrofes não estão apaziguadas nos arquivos. Elas estão aí, produzindo uma história de violências cotidianas que são mostradas “ao vivo e a cores” e que, muitas vezes, são banalizadas pelas próprias imagens. Daqui se desdobra uma questão crucial: não basta que a fotografia seja capaz de mostrá-las em detalhes, é preciso que ela assuma também a missão de atuar na ressensibilização dos olhares. Essa é justamente uma questão de curadoria.
Recalques
“A cor é fundamental na vida do mexicano”, diz uma epígrafe de Diego Rivera no catálogo de Mexichrome. Os roteiros turísticos da Cidade do México nos levam muito rapidamente à mesma constatação: as cores são sempre muito vibrantes no artesanato de rua, em alguns pratos típicos, na festa do Dia de los Muertos, nas luchas libres, no exótico bairro Xochimilco. Ainda que possamos chegar à mesma conclusão, há um abismo entre o que Rivera e um turista como eu somos capazes de enxergar nesse país. James Oles, que não está no México apenas de passagem, fala de seus esforços para contornar alguns conhecidos chavões. De fato, a cor não se resume ali a seus tons festivos: ela pode também ser discreta, introspectiva, triste ou violenta. Pode até mesmo ser monocromática. Mas não teria sido má ideia olhar criticamente para as representações estereotipadas que a fotografia colorida pode ter produzido da história e da cultura desse país.
Mas por que é importante contar uma história da cor na fotografia? Oles justifica tal necessidade a partir de alguns recalques: ele lembra que, até os anos 1970, a película colorida tinha um custo proibitivo, sobretudo num país que viveu fortes crises econômicas. Lembra também que, mesmo com a popularização desse material, prevalecia entre os fotógrafos a ideia de que o preto e branco possibilitava uma abordagem mais “essencial” da realidade, e de que a cor, em contrapartida, estava profundamente identificava com os usos comerciais e amadores da fotografia. Também no Brasil, reconhecemos esse discurso.
Houve certamente um momento em que o impacto da cor era efetivamente sentido, trazendo a promessa de que uma nova história estava em vias de começar. Era o tempo em que definíamos certos autores pelo uso do cromo, em que encontrávamos livros e cursos dedicados à técnica e à estética da cor, em que o assunto era às vezes debatido num ambiente polarizado entre o deslumbramento e a desconfiança. Mas, antes que se resolvessem em qualquer direção, essas tensões simplesmente se dissiparam, de modo que a cor se torna uma dentre outras disponibilidades que já não exigem dos artistas qualquer justificativa. Tomando como parâmetro o que enxergo desse processo no Brasil, seria um pouco forçoso supor que essa história não contada da fotografia colorida constitui uma lacuna que precisa ser preenchida. Mas, claro, sempre é legítimo que uma curadoria responda a urgências que ela mesma instaura.
Ainda sob certo impacto da novidade, a Photographers’ Gallery de Londres apresentou, em 1978, a mostra European Colour Photography. Em 2014, já um pouco tardiamente, foi a vez do Amon Carter Museum, do Texas, apresentar uma exposição chamada Color – American Photography Tranformed, que também se propunha a apresentar “o primeiro levantamento histórico sobre a fotografia colorida nos Estados Unidos, desde os primórdios desse meio até o presente”. Os países da América Latina têm também o direito de se perguntar qual é seu lugar nessa narrativa.
Mas é importante pensar o quanto a suposta resistência à cor é agravada por uma invisibilidade produzida por certos discursos. Por exemplo: a exposição Canto a la realidad: fotografia latino-americana – 1960-1993 (Madri, 1993), organizada pela curadora suíça Erika Billeter, não deixa de trazer amostras das aberturas vividas pela produção fotográfica ao longo desse período, dentre elas, a adesão à cor. No entanto, seu discurso prefere situar a região como lugar isolado em que certa essência da fotografia documental permanece imaculada. Diz ela: “o fotógrafo latino-americano não experimenta, ele ‘vê’ (…). A fotografia experimental é um propósito recorrente na história da fotografia europeia e norteamericana. Nos países latinoamericanos sua presença é irrelevante”. Curadorias revelam, mas também apagam.
Bienal de Fotografia
Estando no México de passagem, é difícil avaliar as marcas que esse recalque pode ter deixado nos debates posteriores sobre a fotografia. O que é possível supor observando outras exposições é que, tampouco lá, o uso da cor – assim como do p&b – demanda dos artistas qualquer tipo de explicação.
A uma dezena de quadras do Museu está o Centro de la Imagen, espaço mais especializado que abriga até fevereiro de 2024 a Bienal de Fotografia, agora, em sua vigésima edição. São 25 projetos realizados nos últimos dois anos, selecionados por meio de uma convocatória, exibidos como pequenas exposições individuais que permitem entrar mais confortavelmente nas pesquisas de cada artista. Estão lá a cor e o p&b, processos digitais e analógicos, estratégias documentais e ficcionais, técnicas convencionais e híbridas, tudo isso convivendo de modo muito fluído, às vezes, dentro de um mesmo projeto. Esse convívio é representativo de uma liberdade que começa a se estabelecer justamente na medida em que a fotografia supera o pavor e o encanto produzido por suas revoluções tecnológicas.
Há pouco em comum entre as duas exposições, além da oportunidade de percorrer uma diversidade de experiências que constitui a fotografia mexicana, da presença marcante de referências à ancestralidade e à história política do país, e de um artista, Fernando Montiel Klint, um dos premiados da Bienal, que também está presente em Mexichrome.
Sem a pretensão de buscar um denominador comum para esses trabalhos, esta edição da Bienal recebe o título de No más mundos por conquistar que, conforme a curadora Carmen Cebreros Urzaiz, implica duas constatações: o presságio de que o planeta padece de certo esgotamento daquilo que nós entendemos como recurso, e a recusa da “conquista” como modo de habitá-lo. Não é exatamente um tema e muito menos um dado dos trabalhos. É, antes, o diálogo possível com um conjunto formado sem compromisso com um fio condutor, uma intervenção conceitual que pode ou não servir de mediador para o trajeto dos espectadores.
De minha parte, enxerguei na ideia de que não há mais mundos para conquistar a possibilidade de uma política para as imagens: primeiro, a urgência de investir nas ressensibilização do olhar num mundo marcado pelo sentimento de que tudo já foi fotografado e visto e, segundo, a consciência de que não é possível “explorar” o território de uma linguagem por meio de mapeamentos que cubram toda sua extensão. Por fim, a provocação instaura um paradoxo numa mostra que é competitiva e que propõem aos inscritos dois prêmios-aquisição a serem disputados.
Cor como alegoria
Se é que faz algum sentido contrabandear o problema da cor para esta mostra, percebemos que ela está aqui, assim como em Mexichrome, não apenas como técnica, como efeito plástico ou como um dado captado da realidade, mas também como alegoria da diversidade de classe, de gênero e de raça, e dos conflitos que elas instauram. As marcas de uma ancestralidade indígena, que atravessam fortemente as manifestações culturais mexicanas, estão presentes nas duas mostras. Mas não é só para isso que aponta essa alegorização.
Por exemplo, Rubias (Loiras), políptico de Andrés Carretero que ocupa toda uma parede da seção “Antropologias” de Mexichrome, sugere também a denegação dessa herança. Trata-se de um pequeno inventário de rostos, em que a cor do cabelo e os penteados mostram como mulheres de uma elite mexicana buscam afirmar uma fisionomia “globalizada”. Em que pese o risco de haver ali uma ironia misógina (não conheço a extensão do trabalho de Carretero), essa uniformidade de cor demarca, criticamente, o esforço de produzir uma identificação de classe e também formas mais sutis da colonização.
Na Bienal, além das referências à ancestralidade indígena e a seus apagamentos, estão também representadas as heranças ofuscadas de uma minoria negra que vive no país (El Nacimiento de los Negros, de Carolina Fuentes), que está também no mapa da diáspora produzida pela escravização dos povos africanos. Vemos ainda as barreiras e as deportações enfrentadas pelos mexicanos que tentam atravessar a fronteira com os EUA (NAZA/RAZA, de Alejandro Luperca Morales), e o movimento oposto de imigrantes de outros países que buscam melhores condições de vida no México (Niños Migrantes, de Alejandro Cossío). Há ainda diversos ensaios que discutem o peso da normatividade sobre os corpos e a violência de gênero (David, de Rigoberto Díaz Julián e Anatómica, de Carol Espíndola, Contra el olvido, nos Nombramos, de Anaí Tirado Miranda e Tratar de Hacer Contacto, de Nancy Chávez).
Em Oro Rojo (Ouro Vermelho), de Gin Ro, a cor está anunciada desde o título. Trata-se de uma pesquisa sobre o cultivo da cochinilha, inseto do qual se extrai, a partir de uma técnica ancestral, pigmentos que foram largamente consumidos pela Europa, ao longo de séculos. No trabalho, o vermelho é um elemento da realidade observada, é matéria plástica do trabalho (que inclui imagens produzidas com o pigmento da cochinilha), mas é também metáfora das tensões entre as tradições ancestrais e a exploração colonial.
Com propostas muito diferentes, não é produtivo avançar muito mais em qualquer tipo de comparação entre a Bienal e Mexichrome. Mas ambas atestam a riqueza e a diversidade de experiências que compõe a produção fotográfica daquele país.
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Muitas vezes, curadoria é pretexto. Num sentido literal, quando a curadoria se confunde com um texto que antecede o diálogo com as obras e força sobre elas um sentido. As duas exposições passam longe disso. Num sentido espelhado, é também pretexto quando a oportunidade de mostrar certas obras exige que se tire da cartola um conceito-chave que dê coesão e sentido de urgência ao conjunto. Mexichrome flerta com esse risco, talvez, pelo fardo que as instituições depositam sobre o curador, esperando dele a capacidade de arrancar desse mundo saturado de imagens uma originalidade que permita dizer: “pela primeira vez…”, ou de encontrar palavras mágicas que organizem o caos, que nos guiem nesse universo já tão vasto de interesses e liberdades que os artistas não cessam de ampliar. ///
Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.