A chave
Publicado em: 3 de fevereiro de 2014O americano Donald R. Winslow era um mero calouro nos anos 1970 quando o já lendário repórter fotográfico Edward Adams visitou o campus da Universidade de Indiana para dar uma palestra. Lembra ter ficado desconcertado quando o visitante, endeusado por ser o autor de uma imagem considerada ícone contra a guerra do Vietnã, evitou discorrer sobre a emblemática foto.
Logo na primeira pergunta de Winslow, cortara o assunto. “Não há nada de novo para dizer”, respondeu Eddie, “Não falo mais sobre isso, pois tudo já foi dito”. Ninguém da plateia entendeu por que o fotógrafo, de resto acessível e caudaloso no diálogo, se fechava feito ostra sempre que a curiosidade da garotada se voltava para a Execução em Saigon, título do instantâneo que lhe trouxera fama mundial.
Em apenas 1/500ésimo de segundo, a célebre foto revelara a banalidade da morte numa guerra de ferocidade até então camuflada. “Foi a imagem da guerra na sua forma mais pura, direta e pessoal, sem preparativos para o combate nem homenagens póstumas a um soldado caído”, definiu o jornalista Adam Bernstein, do Washington Post.
A cena captada em fevereiro de 1968 numa rua da capital sul-vietnamita rendera a Eddie o respeitado prêmio Pulitzer, cobiçado desde a primeira infância por todo jornalista ou fotógrafo americano, e eclipsou por completo o restante de sua prolífica carreira e obra.
Por artimanhas do destino, o ex-calouro daquela palestra em Wisconsin acabou se tornando amigo de Eddie. Mas ao longo das décadas que se seguiram não voltaram a falar sobre a premiada foto.
Foi numa manhã de 2004 que Winslow, então já editor-chefe da revista da NPPA (sigla, em inglês, da Associação Americana de Fotógrafos de Imprensa) recebeu um telefonema inesperado.
Era Eddie, com um pedido insólito. Sabia que mais cedo ou mais tarde caberia a Winslow escrever seu obituário, e lhe pedia que não fizesse referência a Execução em Saigon logo no primeiro parágrafo. Justificou o pedido dizendo que não considerava esta sua melhor obra. Acrescentou que faria solicitação semelhante ao editor do New York Times, apesar de saber que seria inútil.
Na mosca. O primeiro parágrafo do obituário do Times assinado por Andy Grundberg e datado de 20 de setembro de 2004 começava assim: “Eddie Adams, fotojornalista e fotógrafo de guerra, detentor de um Prêmio Pulitzer e autor de uma das imagens mais extraordinárias da Guerra do Vietnã, morreu sábado em Manhattan aos 71 anos…”.
A esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa que o consumiu em poucos meses, não lhe permitiu participar das filmagens de An Unlikely Weapon – The Eddie Adams Story (em tradução livre, Uma arma improvável – a história de Eddie Adams), um documentário sobre sua vida. É possível que através dele Eddie tivesse a intenção de se reconciliar com seus fantasmas. Mas o filme dirigido por Susan Cooper e narrado por Kiefer Sutherland teve de ser realizado sem essa bússola. Lançado em 2009, cinco anos após a morte do fotógrafo, o documentário demonstra o quanto a câmera, como o próprio Eddie dizia, foi a arma mais poderosa na guerra. Só que ela falhou em protegê-lo dele mesmo.
Ao contrário de Larry Burrows, David Duncan, David H. Kennedy ou Henri Fruet, para citar apenas alguns de seus memoráveis companheiros de ofício no atoleiro do Vietnã, Eddie Adams conhecia os imperativos militares. Serviu três anos na Guerra da Coreia junto a uma unidade de fuzileiros navais e de lá saiu com o DNA da corporação.
Incomodava-o a interpretação instantânea dada à fotografia mais famosa de sua autoria. E desagradava-lhe ouvir que a imagem da execução teve influência na sucessão presidencial daquele ano – menos de dois meses após sua publicação em todos os jornais do país, o presidente Lyndon B. Johnson desistiu de tentar a reeleição.
Eddie passou anos tentando dar outra conotação à cena retratada. “O que você faria no lugar do general, naquelas circunstâncias [o vietcong havia deslanchado a grande ofensiva do Tet contra Saigon]? Você capturou o cara que pouco antes matou teu amigo, a mulher do teu amigo e os filhos dele. Como você sabe se você também não puxaria o gatilho?”, perguntava. E repetia como um mantra a sua descrença geral: “Máquinas fotográficas são as armas mais poderosas do mundo. Pessoas acreditam nelas, mas fotografias mentem, mesmo quando não manipuladas. Elas são apenas meias-verdades. O chefe de polícia, general Nguyen Ngoc Loan He matou um vietcong e eu matei o general com minha câmera”.
Eddie ficou dois anos sem olhar para Execução em Saigon. Com o tempo, desistiu de tentar explicar. Sentia-se duplamente culpado. “Recebi dinheiro por mostrar um homem matando outro”, constatou depois de receber o Pulitzer. “Duas vidas foram destruídas, e eu era um herói”
Felizmente, a viúva de Eddie decidiu doar ao Dolph Briscoe Center for American History da Universidade do Texas os arquivos completos do marido que cobriu 13 guerras (da Coreia nos anos 1950 à do Golfo nos anos 1990), acompanhou seis presidentes americanos, fez retratos memoráveis das principais personalidades e artistas da segunda metade do século passado e recebeu mais de 500 prêmios ao longo da vida.
Foi ali que Donald Winslow encontrou a chave para desvendar o desconforto de Eddie com o lugar, a seu ver indevido, ocupado por Execução em Saigon nos anais da fotografia, da história e de sua própria biografia.
Encontrou o que procurava nos pequenos diários manuscritos de capa vermelha referentes aos anos de 1963 e 1964 – muito antes, portanto, de sua chegada no Vietnã. Descobriu que Eddie Adams já quis, e muito, até de forma desesperada, ser premiado com um Pulitzer. Mas por um trabalho que considerava fazer jus à honraria: a foto que fizera de Jacqueline Kennedy segurando a bandeira americana dobrada no funeral do marido assassinado, em novembro de 1963.
Fizera a foto com método, intenção, imaginação e técnica. A partir de uma cena transmitida para o mundo inteiro, acreditou ter construído uma imagem única com as ferramentas do seu talento. Só que ela sequer chegou a ser selecionada como candidata ao prêmio.Para indignação de Eddie, o vencedor do Pulitzer daquele ano foi o fotógrafo texano Robert Jackson, que conseguira captar o instante do inesperado disparo à queima roupa contra o suspeito de matar JFK, Lee Oswald, nas barbas de sua escola policial.
Uma mera “foto reflexo”, diria Eddie, daquelas em que não há tempo para pensar. Ou, na definição de Winslow, daquelas em que o cérebro do fotógrafo é acionado por um movimento ou som qualquer com uma única ordem: “Aperta o disparador, já!”.
Execução em Saigon também faz parte da família das “fotos reflexos”, e Winslow encontrou poucas referências a ela nos dias que se seguiram ao episódio.
Naquela quinta-feira de fevereiro de 1968, Eddie acompanhava a caminhada do vietcong detido por policiais quando viu o general sacar a arma e aproximar-se. Deve ter erguido a câmera para o rosto em sincronia com o movimento da mão armada do general, que apontou para a cabeça do prisioneiro. Câmera e pistola dispararam à queima roupa e ao mesmo tempo.
Como sempre naqueles tempos da era pré-digital, Eddie sequer sabia o que tinha captado. Fotografou o final da cena, entregou o filme para revelação ao lendário editor de imagens Horst Faas e voltou às ruas sem esperar pelo resultado. O ex-fuzileiro naval que aprendeu a ver todo tipo de horrores de guerra e a seguir em frente, de câmera em punho, tinha mais guerra para cobrir.
Eddie jamais se reconciliou com a vida própria adquirida por Execução em Saigon.
Mas parece ter encontrado refúgio e redenção interior no pós-guerra, voltando suas lentes para a saga dos milhares de sul-vietnamitas que vagavam sem rumo pelos mares após a derrocada dos Estados Unidos e a vitória do Vietnã do Norte. Em todos os portos onde porventura tentavam atracar, os “boat people” eram rechaçados. Para realizar um extenso ensaio fotográfico sobre essa odisseia, Eddie embarcou numa das precárias balsas que partiram da costa vietnamita, com 50 crianças e adultos sem comida, água ou esperança suficientes a bordo. Empreitada de alto risco, porém com final feliz.
O material fotográfico acabou sendo apresentado a uma comissão do Congresso americano pelo Departamento de Estado e contribuiu para persuadir o então presidente Jimmy Carter a admitir a entrada de mais de 200 mil refugiados sul-vietnamitas nos Estados Unidos.
Para 2014, ano em que se comemora o 10º aniversário da morte do fotógrafo, certamente não haverão de faltar homenagens, mostras, debates e revisões de sua obra. Tampouco faltará a inevitável pergunta que lhe foi feita pela primeira vez por um holandês após a entrega de um prêmio: por que ele não impedira a execução do vietcong em Saigon?
Esse dilema, tão antigo quanto o exercício da profissão de repórter fotográfico, e que varia de complexidade de acordo com as circunstâncias, há muito deveria ter deixado Eddie em paz: mesmo que não tenha sido essa a intenção do autor, Execução em Saigon serviu de argumento para encurtar a guerra. Contribuiu, portanto, para salvar mais do que uma só vida dos dois lados da matança.
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.
Ouça abaixo o depoimento de Eddie Adams: