“Desvio”, de Helena Martins-Costa

Em Desvio, um dos projetos vencedores da Bolsa ZUM/IMS 2014, a artista Helena Martins-Costa se apropria de retratos antigos de pessoas anônimas, coletados em leilões, sebos e feiras de antiguidades. Especificamente para esse ensaio, Helena selecionou retratos que têm em comum um erro, uma distorção causada pela inclinação involuntária da câmera fotográfica que desestabiliza sutilmente a composição, causando um estranhamento – possivelmente o que fez com que esses retratos fossem descartados.

“O sujeito retratado se posiciona frontalmente e ereto para a câmera fotográfica, mas devido a essa distorção da perspectiva aparecerá inclinado como se estivesse tombando, criando uma sensação de vertigem”, explica a artista. Esses retratos, encontrados separadamente, quando reunidos formam uma série em que a distorção, antes considerada um erro, provoca questionamentos a respeito das regras e convenções estéticas do retrato. Para realçar ainda mais os efeitos do desvio, os pequenos retratos foram manipulados em sua escala e reimpressos, formando um conjunto homogêneo, sem interferência nas cores naturais e nas marcas da passagem do tempo dos originais.

Leia a entrevista com a artista:

Para alguns artistas e pesquisadores de fotografia contemporânea, hoje o ato criativo se concentra menos na tomada da foto do que na edição. Por que trabalhar com arquivos amadores, e qual a importância de ressignificar essas fotografias vernaculares?

Helena Martins-Costa: Comecei a trabalhar com fotografias apropriadas por ter me deparado com um retrato caído na rua. Me surpreendi pois reconheci por alguns instantes a imagem como se fosse do meu universo familiar. Ao recolhê-la do chão percebi que não conhecia a pessoa retratada, mas, exceto a identidade, todo o resto era-me completamente familiar. Esse episódio desencadeou um primeiro interesse por essas fotografias. Comecei a colecioná-las e estudá-las e constatei que um grande número desses retratos amadores são muito semelhantes. Quando não se conhece nada sobre o referente, temos apenas a imagem. Mas por trás dela existe uma construção a priori, o que mais tarde compreendi como uma convenção social do retrato em que as individualidades não cabiam. A partir daí passei a olhar essa estrutura com outros olhos, a fotografia em si passou a ser meu interesse, como ela é construída. Entendi que o fascínio da fotografia está no fato de, muitas vezes, articular simultaneamente verdade e mentira, imprevisibilidade e construção, documento e monumento. Em cada situação, um gradiente dessa estrutura assume maior ou menor protagonismo. Meu interesse pela fotografia anônima surge da possibilidade de desvelar essas relações.

Você poderia ter pinçado diversos tipos de “desvio” nas imagens colecionadas. Por que focar nesse erro de trucagem especificamente?

HMC: O conjunto Desvio decorre principalmente de dois fatores, distorção ótica e temporalidade apresentada nos retratos. A distorção é consequência da condição técnica da fotografia, que possui uma perspectiva de ponto de fuga único, centralizado. Quando a câmera é situada abaixo da linha do horizonte e desalinhada em relação a ele, ocorre uma distorção perspectiva. Faz o primeiro plano parecer inclinado, criando na composição uma sensação de movimento. É essa possibilidade de movimento a premissa do trabalho.

Antes de constituir esse arquivo do qual Desvio resulta, eu possuía apenas algumas imagens que apresentavam essa perspectiva alterada. Guardei essas fotografias por um bom tempo em função dessa peculiaridade, inicialmente apenas intuindo as conexões com o restante de minha produção. Foi a partir de um novo projeto em vídeo, em que uma equilibrista caminha lentamente por um cabo, mantendo a sua estabilidade por meio da ação pendular de seu corpo, é que compreendi a importância dessas fotografias. Foi a imagem em movimento que apontou para a relação entre a imobilidade dos retratos apropriados anteriormente e essas fotografias. No vídeo, antes de cada passada da equilibrista, o corpo dela oscila de um lado para o outro. A caminhada avança num regime de contenção entre a ginga e a pausa, entre o desvio e o equilíbrio. De alguma maneira, a distorção ótica presente nessas fotografias trazia a questão do movimento de volta para imagem. O uso da câmera inclinada, posicionada abaixo da linha do horizonte, introduz um ruído no sistema da perspectiva linear, causando uma ruptura entre o primeiro plano e o fundo. Comparadas com fotografias sem essa distorção perspectiva, em que os eixos ortogonais permanecem inalterados, percebemos o quanto a centralização e a verticalidade dos corpos inibe a percepção de movimento, tornando estática a composição. Notei que, colocadas uma ao lado da outra, essa percepção do movimento tornava-se ainda mais evidente. Foi a partir daí que a pesquisa teve início. Com a Bolsa ZUM pude buscar de forma intensa e sistemática por essas imagens.

Algo interessante acontece quando passamos mais tempo com essas imagens: como o fio condutor da série é totalmente arbitrário, definido a priori, o observador fica liberado para buscar sentido nas contingências, nos detalhes e peculiaridades de cada foto. Você descobriu coisas novas sobre essas imagens, no processo de montagem, que não havia percebido no momento da seleção?

HMC: O processo de pesquisa e construção de arquivos é sempre muito interessante. Como as imagens são amadoras e descartadas, geralmente têm pouca qualidade. Na maioria das vezes, são pequenas e com algumas veladuras do tempo. É somente no computador, ao ampliá-las, que posso visualizar melhor todos os seus detalhes. Sem dúvida cada uma delas apresenta conteúdos próprios. Um aspecto interessante que percebi é que em algumas fotografias, pelo ponto de vista que foram tomadas, provoca quase uma troca de escala, segundo a qual a figura humana passa a rivalizar com a arquitetura. Enquanto pesquisava, percebi algo interessante, fora de meu foco de atenção. Notei que era possível fazer algumas leituras desse grande e heterogêneo arquivo geral (espécie de não-lugar) onde se encontram essas fotografias descartadas. Conforme a pesquisa avançava, reparava em algumas características curiosas. Enquanto procurava por retratos individuais, notei que a maioria dos registros era de ‘homens brancos”, em contrapartida aos pouquíssimos retratos de homens negros. As mulheres também aparecem em minoria, assim como os índios. Em muitos casos, tanto a mulher como o índio são representados por aquela fotografia-fetiche, a mulher exibida como pin-up, hipersexualizada, e o índio pela lente do exotismo. Ambos fotografados como “o outro”, não são fotografados por seus pares.

O que seria um “erro” em uma fotografia singular torna-se a própria premissa do ensaio. O acaso é codificado, vira o “studium” da série, para usar o famoso conceito de Roland Barthes. O que, no entanto, escapa a essa codificação? Você hoje enxerga outras relações entre as imagens inicialmente imprevistas? Há “desvios do Desvio”?

HMC: Trabalho a partir de uma coleção de fotografias formada ao longo de 20 anos. Esse acervo, para mim, equivale a uma fonte primária de pesquisa. Com base nessa coletânea, novos arquivos são gerados e manipulados à medida que vou compreendendo algumas relações entre as imagens. Ao aproximar fotografias que repetem determinado padrão, apesar de suas origens culturais e geográficas muito diversas, busco evidenciar e revelar os códigos de construção da imagem. Venho tentando identificar esses conteúdos que nem sempre estão explícitos, procuro fazê-los emergir para a superfície da imagem. Desde os primeiros anos, sempre esteve presente na construção do meu trabalho em fotografia uma forte identidade com a escultura. Resulta desse interesse uma imagem impregnada por correspondências entre a fotografia e uma materialidade própria dos objetos. Os elementos fundamentais da composição, as oposições entre volume e superfície, movimento e imobilidade, parecem tangenciadas por uma fixidez característica da estatuária, aliás título de um conjunto de trabalhos de 2010.

Quando falo em afinidades penso sempre na identificação de conjuntos de elementos comuns, sem o propósito de transmitir informação ou concluir um pensamento, mas como consequência de uma ação intuitiva inseparável do processo criativo, capaz de confundir-se em algumas circunstâncias com o acaso. Desvio foi pensado para ter uma dimensão aproximada da escala humana, em outras palavras, diante dessa escala, por analogia, perdemos um pouco o prumo. A certeza da verticalidade do nosso corpo passa a ser confrontada pela imagem fotográfica. Imagino que o conjunto ampliado nessas dimensões possa provocar um tipo de instabilidade no observador, semelhante a um “mareamento”. Infelizmente ainda não pude experimentar o conjunto nessas dimensões, exceto por uma única ampliação que realizei nessa escala. Com ela percebi um pouco dessa relação que se estabelece com o observador. Sigo curiosa em ver o quanto de instabilidade a inclinação dessas imagens em seu conjunto ampliado pode provocar com aquele que se coloca diante da imagem.///

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Foto: Helena Martins Costa


Helena Martins-Costa (Porto Alegre, RS, 1969) vive em São Paulo. Graduada em fotografia pelo Instituto de Artes da UFRGS (1996) e mestre em Poéticas Visuais pela ECA (2006). Foi professora de fotografia da UFRGS e participou de exposições no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, no OK Contemporary Art (Áustria), no festival GOAPHOTO (Índia), na Pinacoteca do Estado de SP, no PhotoEspanha e na 17a Bienal de Cerveira (Portugal, 2013).