Diário Corpo Preta – parte 1
Publicado em: 18 de outubro de 2024Tomei um susto com a proposta dos curadores Thyago Nogueira e Daniele Quieroz para escrever um ensaio sobre a minha pesquisa. Na verdade, é porque a escrita foi parte do meu trauma de ser intelectual brasileira.
Um trauminha que foi adquirido primeiramente nas escolas e foi elevado a potência máxima nas universidades que passei.
Um trauminha adquirido pelos processos de expulsão.
Um trauminha da exclusão dos ambientes acadêmicos de arte contemporânea brasileira.
Um trauminha da professora que corrije o texto sem sugerir, sem conversar.
Na verdade o meu maior trauma com a escrita foi quando uma mulher negra indígena doutora, que eu pedi encarecidamente para ela ler meu texto, e ela ao invés de ler partiu para a correção. Com sua mentalidade de professora branca corrigiu o meu texto transformando em outra coisa. Ela queria me salvar da violência, fazendo a violência. Eu fiquei tão triste na época e nunca consegui conversar com ela sobre isso, porque na verdade ela não me dava espaço de escuta e não me via como eu gostaria de ser vista.
Ela não me respeitava como uma intelectual e artista. Elaborei esse desrespeito com a escrita de uma carta para mim no futuro, na carta consegui formular uma equação constante de desrespeito.
Por email pedi para se afastar e se por algum acaso do destino estivermos no mesmo lugar não fale comigo assim podemos civilizadamente manter distância e viver em paz.
Nesse momento percebi a escrita como um oráculo para identificação de um trauma e solução para um possível problema.
A correção da escrita como um trauma da hierarquia colorista brasileira.
A correção da escrita também produz violência.
A minha escrita incorreta para aqueles que curiosamente querem uma entrevista para uma série de exercícios de escrita acadêmica sobre decolonialidade e diáspora.
Na verdade a violência da hierarquia colorista brasileira me impedia de exercitar a escrita, a vida.
A escrita como trauma, o trauma da escrita.
Deixei a escrita por um tempo na necropolis brasilis e nunca mais quis encontrar com a minha suposta amiga para evitar qualquer intriga e por não tolerar ser corrigida.
Então os anos passaram, e eu não deixei de escrever meus diários e o convite desse ensaio nesse momento caiu-me como uma luva. Decidi retomar as publicações da escrita…minha escrita como parte do meu processo criativo e apresentar através desse ensaio as escolhas que foram abandonadas no processo criativo.
Na verdade, quando iniciei esse ensaio alegando o meu trauma com a escrita estava assumindo que atravessei muitos traumas com a escrita para aceitar escrever esse ensaio.
A escrita de cartas ajudou a elaborar esse ensaio, então gostaria de propor essa leitura como um exercício de desabafo e cura.
Como escrever um ensaio sobre uma pesquisa em andamento de um projeto que tem apenas uma etapa finalizada? Essa é uma questão para muitos artistas que projetam sonhos e iniciam processos sem levar o fator tempo e percebem no decorrer da pesquisa que a proposta de entrega inicial será impossível. Um desespero toma conta do pensamento e então escrevo para tentar tirar da cabeça aquilo que pode ser descartado. A escrita aqui é uma parte importante para elaboração de processos criativos, se não existisse a escrita para esse processo acredito que poderia prejudicar a entrega da primeira série da obra. A escrita aqui ajudou a assimilar o que gostaria de entregar como produto final, além de projetar desejos impossíveis de realizar por conta de custo e tempo. Sendo assim, vou contar através desse ensaio apresentar as cartas que impulsionaram o meu desejo de fazer um arquivo de arte contemporânea com a performance.
As cartas sempre foram fonte de inspiração e um início do meu programa artistico para pensar a performance e também o registro da fotografia. Escrevi muitas cartas endereçadas a mim mesma, para tirar da cabeça os desejos mais sórdidos do corpo e também para aliviar a sensação de repetição de uma rotina de vida capitalista.
Escrevi muitas vezes para poder falar comigo mesma num contexto em que as minhas palavras brasileiras não funcionavam para nada, apenas para o meu sentimento individual.
Foi então que entendi o poder da escrita, e de como a escrita para mim nesse momento de trânsito entre continentes é fundamental para elaborar processos de tradução poética e criações artísticas. As palavras reforçam a performance da presença mas também são um método para organizar a possibilidade da falha.
A escrita como um movimento de organização do pensamento, a escrita como comunicação de uma narrativa.
A escrita como um meio e não um fim.
Sempre enviei cartas para minhas amigas, essa era uma prática muito comum entre nós humanos que nasceram no início dos anos 80. Quando fui alfabetizada, minha tia semi analfabeta, para treinar a minha redação, ditava as cartas que ela gostaria de enviar para que eu escrevesse. Escrevi inúmeras cartas para ela, desde mensagens para os familiares a programas de rádio. Escrevia cartas para outra tia com receitas de bolos, aprendi a fazer um bolo porque decorei a receita que escrevi numa carta.
Por isso, nos últimos anos decidi fazer esse exercício de escrever cartas. Como um arquivo para a memória. No início escrevi cartas para mim no futuro. Depois transformei esse exercício em laboratório de performance. Percebi que a comunicação rápida via celular desestimula a escrita e o pensamento. E escrever faz pensar nas palavras e como elas podem chegar ao interlocutor.
Por isso, escolhi alguns dias do meu diário para compartilhar nesse ensaio. São escritos de um ciclo significativo da minha vida em diáspora na Europa. Dividi o ciclo dos meus pensamentos em capítulos e sem respeitar a cronologia dos processos criativos entre os anos 2023 e 2024 vou apresentar um material signficativo. É uma confissäo, por isso não respeitarei a linha do tempo dos acontecimentos apesar de marcar a data. São cartas que me permitiram a liberdade criativa para as elaborações de experiências com a performance e a fotografia analógica, as dietas com banhos de ervas medicinais para limpar o canal criativo, a escrita no trânsito de migração.
Em fuga.
Pensamentos entre a linguagem da performance e a experiência com a religião.
Palavra falada e palavra escrita.
Palavra rezada, palavra oração.
Pensamentos experimentados entre Itália e Holanda cartas de palavras soltas, desabafos, frases inacabadas, pensamentos sem sentido, confissões, confusões, situações planejadas, desenhos, projetos não realizados e desejos de uma vida em andamento.
Entre uma mudança e outra;
Entre países;
Entre experimentos;
Entre experiências vou fabulando em inglês essas palavras. A escrita sempre foi parte do meu processo.
A escrita como organização das ideias para a realização de possibilidades.
Escrever as cartas paralelamente ao processo criativo de fotografia entre residências me ajudou a organizar o modo de produzir um arquivo que contemplasse os rastros da minha pesquisa, e principalmente para não enlouquecer entre os processos catastróficos do mundo.
Quando comecei a desenhar projeto de uma residência para a pesquisa Corpo Preta composições com rosas vermelhas para um arquivo em preto e branco, estava pensando a performance para a fotografia analógica como um diário de artista, estava obcecada com a clássica forma engessada de guardar imagens produzidas pela etnografia. Um livro. Queria reproduzir as poses dos retratos em filme preto e branco, a imagem encenada, a iconoclastia de uma época, fotografia analógica, em médio formato, a impressão de retratos no tamanho grande, em papel de algodão Hahnemühle fosco, em cor preto e branco.
Estava enfeitiçada com a experiência improvisada da fotografia analógica com o artista Vicente Otávio. Eu tinha acabado de viver o processo de revelação das primeiras imagens de Corpo Preta fotografadas e reveladas pelo artista Vicente Otávio em São Paulo na Casa Líquida. Um processo de fotografia analógica e revelação improvisado no banheiro que me fez voltar no tempo da fotografia analógica. Voltar no tempo em que me preparava para a performance no banheiro de uma lanchonete. Ali na Casa Líquida o artista Vicente Otávio experimentava vários processos de revelação e produção de imagens onde ele participava de todo o processo de criação, de modo improvisado e isso me encantava e tocava a minha memória. Uma viagem no tempo. A improvisação da revelação no banheiro da Casa Líquida foi um gatilho que me fez escrever sobre esse processo. Logo depois dessa experiência mágica de ser fotografada e acompanhar a revelação decidi aprender melhor sobre o processo de fotografia analógica, de início queria fotografar conforme a primeira experiência na Casa Líquida, produzir uma cena e cuidar de todo o processo como um exercício improvisado para uma residência de fotografia com o artista Vicente Otávio.
Paralelamente, comecei um estudo do material etnográfico de fotografia em preto branco, a primeira busca era por retratos de mulheres racializadas do século XIX. Quando dou inicio a um novo projeto, faço uma busca pela história a partir de palavras chaves com intuito de perceber as repetições ao longo do tempo. Outra estratégia artística para realizar uma fissura no tempo do arquivo é perceber os padrões de cada época. Estudar a fotografia e o processo de conservação e como arquivá-la para a memória da posterioridade. Por isso, retomei minha pesquisa com a fotografia de Pierre Verger o interesse inicial foi a fotografia em preto e branco. Logo em seguida me interessei do seu arquivo as imagens de pessoas que praticavam o candomblé uma prática religiosa afrobrasileira. A fotografia que ele fez se tornou um acontecimento ao longo dos tempos porque surge o interesse de preservar uma história que até aquele momento era olhada de modo exótico. Além disso, decidi por olhar para os processos da fotografia de modo a aprender, e pensar criticamente com uma obsessão positiva sobre a mudança de um processo.
Os processos de fotografia ao longo do tempo mostram a fragilidade dos experimentos, a durabilidade dos processos químicos de revelação e os modos de produção da imagem de uma época e também uma série de apagamentos. A minha curiosidade nos processos químicos de revelação chegou na coleção de Marc Ferrez.
Tive o interesse em fazer uma pesquisa no arquivo do Instituto Moreira Salles. Saber sobre os processos de fotografia com albumina me fizeram conhecer os laboratórios fotográficos da residência Jan Van Eyck e do Instituto Moreira Salles.
Como curiosa para experimentar processos e como uma performer de fotografia, fui olhar para os processos etnográficos clássicos de fotógrafos do arquivo colonial com o intuito de fabular criticamente a entrada do meu trabalho de performer em algum arquivo brasileiro como um rastro da radicalidade artística do meu trabalho.
E também estava curiosa com os processos químicos da fotografia ao longo dos tempos, quais os interesses da fotografia no contexto brasileiro a partir de um pequeno recorte de imagens de alguns fotógrafos consagrados?
Com um pequeno recorte de pesquisa entre os fotógrafos Marc Ferrez, Pierre Verger e Mario Cravo Neto fui tateando o arquivo e pensando como apresentaria meu projeto. Imagens de fotoperformances produzidas encenadas ou se trabalharia com as imagens que já teria feito em São Paulo com o artista Vicente Otavio em um ensaio bem íntimo. Muitas dúvidas poucos recursos, muitos desejos pouco tempo. Uma dúvida cruel, um excesso de pensamento bem tóxico. Então entendi que o livro na verdade é um diário no formato de cartas para os mortos, queria escrever para alguém que não pudesse ler, e também não responder as minhas dúvidas para que não fragilizasse ainda mais a minha escolha. Qualquer pergunta nesse momento poderia desmoronar o meu processo criativo. Optei por conversar com os curadores ao final do processo. Mas estava interessada que alguém importante me ouvisse mas não dissesse nada e então fiz essa escrita como parte do processo criativo de Corpo Preta.
Depois de muito pensar entendi numa caminhada que os remetentes para as cartas sobre a minha experiência seriam destinadas ao artista Arthur Bispo do Rosário e para o artista Jayme Fygura, a escrita tomando forma no método da minha pesquisa sobre arquivo e performance. A ideia do remetente, surgiu em Roma quando estive na Capela Sistina e vi o Juízo Final de Michelangelo, quando vi essa obra a lágrima caiu dos meus olhos, e uma conexão intensa aconteceu. Eu não sabia dizer, mas naquele momento essa conexão foi como uma epifania, a felicidade que achava que tinha perdido entre as ruas do mundo retomou o meu corpo. A obra de Michelangelo me fez chegar ao Arthur Bispo do Rosário e também no Jayme Fygura. Acho que essa conexão religiosa me faz uma pessoa plena em escrever cartas destinadas aos mortos. Na mesma época estava escrevendo um prefácio para o livro da Coletiva Ocupação, o que gerou uma grande confusão.
Era também meu aniversário, e estava confusa com os planos mas queria escrever sobre essa sensação de confusão e realidade.
Abertura e fechamento de ciclo.
É isso, é por cartas, é assim que a minha comunicação fica mais secreta e complexa.
Algumas frases mal construídas apresentam-se como segredo
E também vou organizando o meu desejo e negociando com os prazos para entrega de uma obra.
Escrevendo e decupando as sensações
Escrever para marcar o tempo
da tirania orquestrada
do mal pelo bem
do bem pelo mal.
A escrita viva para os mortos.
Esse ensaio é uma reflexão sobre os altos e baixos de fazer uma obra com processos analógicos. Para além de posar para a fotografia analógica, o processo despertou-me o interesse em trabalhar com os resultados de um fazer artistico que contemplasse cada atividade manual para além da fotografia e o suporte da impressão.
Que assim seja!
Holanda, Maastricht 16 de outubro de 2024
Tags: Bolsa ZUM, fotografia, performance