Diário de viagem #5: Ossos, larvas e esgoto no maior mercado de Kinshasa
Publicado em: 18 de abril de 2016O coletivo Trëma esteve na República Democrática do Congo com o intuito de registrar lembranças de uma recém-imigrada para o Brasil. O trabalho faz parte do projeto Memento, vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS de 2015. O texto abaixo é de Tomás Chiaverini, colaborador do Trëma neste projeto.
– Mas afinal, o que é aqui? – perguntamos a Richard, nosso guia em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo.
Ele olhou ao redor antes de responder. Estávamos em uma sala pequena e escura, com paredes de cimento, fios elétricos à mostra e uma mesa bamba com o tampo revestido de papelão, atrás da qual encontrava-se um homem baixo, de bigode, com uma camisa amarela, encardida no colarinho.
Na última hora, havíamos passado por outras duas salas como aquela. Todas localizadas dentro da estrutura central do Grand Marché, o maior mercado de Kinshasa, com cerca de dez mil vendedores oficiais, além dos agregados que se espalham nas ruas adjacentes, com seus guarda-sóis batidos, em busca de alguém interessado em comprar um maço de pondu, um punhado de larvas vivas ou um filé de peixe moqueado.
Nosso périplo pelas saletas tinha um único objetivo: conseguir autorização para fotografar o mercado. Nas duas repartições anteriores, havíamos tido relativo sucesso. A primeira, o escritório geral; a segunda, o posto policial.
Havíamos nos apresentado, mostrando os documentos e as autorizações emitidas quando ainda estávamos no Brasil. Os burocratas haviam lido, carimbado e incumbido um dos seus de acompanhar. Agora, na terceira porta, queríamos acreditar que a maratona de carimbos chegaria ao fim.
– Bem… – Richard exclamou, pensando em como responder à nossa pergunta. – Aqui é como se fosse o FBI.
Em várias outras ocasiões nos veríamos naquela mesma conjuntura, pedindo autorização ao serviço de inteligência congolês.
O homem de camisa amarela colocou os óculos de haste quebrada, passou um longo tempo lendo nossa carta de autorização, ratificada pelo Ministério de Mídia. Depois, finalmente, assinou atrás do documento. Assim, devidamente credenciados, saímos para a confusão de barracas e gritos do mercado, acompanhados do nosso guia, do intérprete, de um funcionário do local, de um policial e de um agente do serviço de inteligência do governo.
Foram alguns cliques apenas até que fôssemos confrontados com aquilo que, dias antes, no bairro de Matété, descobrimos ser um dos maiores empecilhos para o nosso trabalho na República Democrática do Congo: os congoleses, com pouquíssimas exceções, odeiam ser fotografados.
Assim que nosso trabalho em si começou, começaram também as reações a ele: um grupo de vendedores passou a gritar e a gesticular na nossa direção. Dessa vez, contudo, foi diferente do ocorrido em Matété, quando tivemos de bater em retirada após os protestos contra o fotógrafo. Afinal, tínhamos um agente secreto ao nosso lado. E ele não precisou fazer muito. Apenas crispou o rosto numa expressão de fúria e apontou o indicador na direção dos revoltosos. Foi o suficiente para que eles se acalmassem e pudéssemos seguir com o trabalho. Tudo finalmente parecia ir bem.
Então começou a chover. E começou no momento exato em que percorríamos o setor de carnes, com vísceras, ossos, cabeças e toda a sorte de cadáveres de animais dispostos sobre mesas de metal, sem qualquer tipo de refrigeração.
Ao menos estávamos na parte coberta, pensamos nesse primeiro momento, enquanto observávamos a chuva se transformar em tempestade, derrubando bancas e carregando guarda-sóis virados do avesso.
O chão à nossa volta começou a alagar. Agora, o cheiro já forte das carnes era mascarado por um perfume de esgoto, emanando da água que alagava o lugar. Em poucos minutos, tínhamos os pés submersos.
Vavá, nosso interprete, sofria mais, uma vez que calçava mocassins de veludo bordô, curiosamente inapropriados para se caminhar não apenas no mercado, mas na maioria das ruas e calçadas de Kinshasa.
Lá fora, a chuva continuava pesada. Após algum tempo, a ideia de enfrentá-la parecia uma alternativa melhor do que ficar onde estávamos, cercados de animais mortos, com a maré de esgoto se elevando rápida e ameaçadoramente. Resolvemos correr. No começo, tentamos nos equilibrar pelos pontos mais altos, mas não adiantou muita coisa e acabamos com água na altura das canelas.
Chegamos ao carro ensopados. Ainda assim, havia algum alívio por termos escapado do labirinto inundado do Grand Marché. Um alívio que, infelizmente, durou pouco.
A chuva não tinha inundado o mercado apenas. Tinha inundado a cidade inteira. As ruas ao redor haviam se transformado em rios de água barrenta e o trânsito, já caótico em dias normais, ganhava contornos apocalípticos. A possibilidade de que, em algum momento naquele dia, conseguiríamos chegar a algum lugar, qualquer que fosse, parecia cada vez mais remota e improvável.///
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