Diário de viagem #4: Bem-vindos a Kinshasa, capital da República Democrática do Congo
Publicado em: 24 de março de 2016O coletivo Trëma esteve na República Democrática do Congo com o intuito de registrar lembranças de uma recém-imigrada para o Brasil. O trabalho faz parte do projeto Memento, vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS de 2015. O texto abaixo é de Tomás Chiaverini, colaborador do Trëma neste projeto.
Durante a aproximação para o pouso no aeroporto de N’djili, a metrópole de Kinshasa vai se apresentando aos poucos. Surge primeiro como uma porção de barracos de metal que, com seus telhados recobertos de ferrugem, espalham-se salpicados no verde na vegetação. Conforme o A-320 da South African avança, os casebres vão se adensando. Por ali, não há prédios à vista. Não há telhas de barro ou lajes de cimento. Apenas um fractal de chapas enferrujadas que parecem se fundir num único telhado metálico improvisado.
Do alto, a impressão que se tem é de que boa parte dos mais de dez milhões de habitantes da capital da República Democrática do Congo vivem numa imensa favela. Em terra, essa impressão se confirma. Além das grandes artérias de circulação, como a moderna Boulevard du 30 du Juin, a cidade é um labirinto de ruas sem pavimento, muitas cortadas por esgoto a céu aberto. Numa sociedade em que um policial chega a ganhar apenas 70 dólares por mês, a ilegalidade impera e o poder público se perde na confusão da luta diária pela subsistência.
A nossa primeira sensação é de que em Kinshasa nada é fácil. Isso fica claro já na viagem do aeroporto para a casa onde ficaremos hospedados. O trânsito é um duelo constante. Aparentemente, ganham os que buzinam e gritam com mais fúria, os que se arriscam em manobras mais violentas. Há pouquíssimos semáforos e cada cruzamento figura como um salto rumo ao desconhecido.
Ao volante de uma van que exibe todo o cansaço de duas décadas de serviços prestados, Richard, nosso guia, faz o possível para avançar em segurança. Sua tarefa é dificultada pelo fato de que, ao contrário dos veículos ao redor, o nosso está equipado com o volante à direita, destinado a cidades com mão inglesa, o que não é o caso de Kinshasa.
Estamos nessa batalha campal, desorientados em meio ao caos de buzinas e fechadas, quando, no meio da avenida, surge um policial. De farda azul marinho puída, fuzil AK-47 pendurado no ombro, ele dá ordem de parada para um utilitário preto, que trafega á nossa direita.
O motorista nem sequer pensa em obedecer. Pragueja, gesticula, desvia do policial e continua como se nada fosse. Alguns quilômetros adiante, uma caminhonete da polícia se aproxima do mesmo veículo. O policial no banco do passageiro, calmo, fala algo para o motorista, provavelmente ordenando que pare. Mais uma vez a ação não surte efeito.
Continuamos mais algumas centenas de metros atrás dos dois carros, que seguem emparelhados para que o homem da lei e o suspeito discutam, gritando e gesticulando. Uma rotatória surge adiante. O fluxo do tráfego segue à esquerda. O carro de polícia faz o mesmo mas o utilitário preto, não. No último instante dá uma guinada à direita, desgarrando-se da viatura que o perseguia e que segue resignada à nossa frente, sendo arrastada pela correnteza metálica de caos e buzinas.///
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