Meu encontro com Martin Parr
Publicado em: 18 de dezembro de 2025E lá se foi um dos maiores fotógrafos do mundo, Martin Parr.
Quando vi a notícia divulgada pelo Instagram do Instituto Martin Parr, lamentei na hora: “Ah, Não! O Martin Parr morreu!”, disse pro meu marido. Ele me respondeu dizendo que não conhecia o trabalho dele. Mas sim, ele conhecia. É muito difícil alguém conectado com fotografia, mesmo que lateralmente, nunca ter visto uma foto dele. Super populares e atuais, o trabalho dele circula entre os mais jovens e ainda viraliza com uma certa frequência.
Gostaria de dividir um encontro de pouco mais de uma hora que tive com Parr. Algumas pessoas são transparentes, e é possível ler muito sobre a personalidade delas rapidamente. Nos pequenos gestos, em como ela se carrega e interage, se entende logo sua visão de mundo. Nesse caso, bateu muito bem com o que eu via em suas fotos.
Conheci Martin Parr em uma de suas vindas ao Brasil, na abertura de uma exposição sua na Galeria Lume (SP) em 2015. Fui fazer o seu retrato para o caderno de cultura do jornal, ele foi o primeiro grande fotógrafo que fotografei. Sempre é difícil fotografar um fotógrafo, mas o primeiro a gente nunca esquece. Eu, uma jovem fotógrafa, lembro que suava até nas orelhas, tremia. Já havia fotografado muitos artistas e celebridades e nunca tinha ficado nervosa daquele jeito.
Em uma galeria sem cores, como costumam ser galerias, iluminada por suas fotos brilhantes e contrastadas, cheguei apressada, imaginando que ele estaria com pressa e ocupado, sem muito tempo para mim.
Não sei se Martin (aqui já chamando pelo primeiro nome) percebeu que eu estava nervosa ou não se importou com isso, mas me interrompeu e perguntou se eu não queria conversar um pouco. Me tratou como uma conhecida, fez piada com ser fotógrafo e estar sendo fotografado, tirou um pouco da tensão. Se eu me distraísse mais um tanto, dava quase para esquecer que estava diante de um dos maiores do mundo.
Depois de um pouco de conversa, fomos fazer as fotos em frente às suas fotografias. Ao olhar o resultado, confessei que as achei sem graça (não as fotos dele, mas as minhas). Apontei para umas folhas no jardim e falei: “Aquilo ali é mais interessante, queria fazer algo com aquilo”. Ele então se meteu no meio das folhas criando uma cena inusitada para eu fazer o retrato. “Talvez algo assim? Tem chance de ficar bom, você está usando flash”, sugeriu. Para ser honesta, a foto não ficou muito boa, mas a culpa não foi de Parr, e sim da minha falta de habilidade como uma jovem fotógrafa. “Ter fotos ruins é normal, são muitas fotos ruins para ter uma boa”, disse ele certa vez em uma entrevista.
Martin era um retrato fiel de suas fotos: bem-humorado, simples, acessível, crítico e muito político. “Minha prioridade é fazer uma foto que entretenha, que traga a pessoa para dentro e, se ela quiser, ela pode ler a política por trás”. Para além disso, era muito ousado. Foi pioneiro a usar cores e flash em fotografia documental, quando era usada apenas na fotografia comercial, sendo assim alvo de intensa crítica de seus pares.
Na votação para fazer parte da Magnum, foi escolhido com apenas um voto de diferença, pois era visto como um fotógrafo pouco sério por muitos. “Minhas fotos são ficcionais no sentido que eu uso flash, não é o que os olhos humanos veem, mas se alinham com meus sentimentos, então são baseados em uma realidade. Não é uma mentira, e sim interpretação, uma interpretação pessoal do mundo”. Afinal, o fotodocumentarismo é um fragmento de uma realidade, escolhido e capturado por um expectador, submetido à visão de mundo dele. Não existe fotodocumentarismo neutro.
Apesar do tom satírico de seu trabalho, é interessante observar como suas fotos eram feitas. No documentário sobre seu trabalho, I am Martin (Eu sou Martin), é clara sua ética ao se aproximar das pessoas. Ele se misturava, interagia e deixava as pessoas confortáveis ao seu redor. Todo um processo aberto e honesto. “Não quero ser visto como um aproveitador”, disse certa vez sobre críticas ao seu trabalho mais famoso sobre a classe trabalhadora inglesa, The last resort (O último resort), de 1985.
Parr era acostumado com “haters” muito antes da internet. Seja pelo uso de cores e flash, ou pela escolha do assunto a ser fotografado. Vindo de classe média, foi alvo de críticas por retratar com humor os mais pobres, e, diferente do habitual entre fotógrafos estabelecidos, de fato ouviu as críticas. Nunca escondeu a reflexão sobre as mesmas e apontou sua câmera para diferentes classes sociais, sempre com curiosidade e humor. “Eu faço fotos engraçadas porque o mundo é engraçado. Eu não busco isso, mas o humor é importante”.
Em seus últimos trabalhos estava experimentando com as teleobjetivas, lentes de longo alcance. Lentes como estas são pouco usadas no fotodocumentarismo tradicional e vistas com maus olhos pelos mais conservadores, pois são usadas por outra “classe” de fotodocumentaristas: os fotojornalistas e os fotógrafos de esporte. Para esse gigante, essas divisões e convenções não importavam, e ele continuou ousando e quebrando barreiras até o fim.
Um obcecado. Era assim que ele mesmo se definia e via outros fotógrafos. Martin Parr continuou fotografando até onde sua saúde permitiu. Mais que isso, sempre trabalhou em muitos projetos diferentes, tendo como seu grande orgulho a Fundação Martin Parr (Bristol, Inglatera), criada principalmente para ser uma plataforma de visibilidade para jovens fotógrafos. Para ele, além de incentivar a arte da fotografia, era também uma oportunidade para aprender a olhar o mundo de formas diferentes enquanto o mundo mudava.
Pra mim, fica seu legado de reflexão ética, essa coisa de não se levar tão a sério, de fazer piadinhas com as imagens aqui e ali, de preservar a curiosidade genuína com o que se observa, de saber ouvir críticas sem que interrompam sua criatividade, além de manter o ímpeto de inovar, de experimentar constantemente, de desengessar conceitos e de explorar as ferramentas que a fotografia nos dá.
Perdemos não só um gigante da fotografia, mas um excelente ser humano. ///
Gabriela Biló (São Paulo, SP, 1989) é fotógrafa, formada pela PUC-SP. Trabalhou para a agência Futura Press e para o jornal O Estado de S. Paulo. É correspondente da Folha de S. Paulo. Vencedora dos prêmios Poy Latam 2025, Worldpress Photo em 2024, e do prêmio Jabuti de Literatura em 2024 pelo livro A verdade vos libertará (Fósforo, 2023), com Pedro Inoue e Medo e Delírio em Brasília.









