História de segregação
Publicado em: 4 de dezembro de 2025“Éramos pobres, mas o solo fértil ao redor de nossa casa de tábuas de madeira fornecia comida suficiente para a família. Na minha infância, nosso lar caloroso me ajudou a lidar com o sofrimento do destino de ser negro.”
“Até a metade da minha adolescência, eu vivia com medo: medo de levar um tiro, de ser linchado ou agredido até a morte – mesmo sem ter feito algo de errado.”
“Onde eu poderia começar a construir um orgulho? Na igreja, Deus, os anjos e os santos eram sempre brancos. Na escola, os livros sempre mostravam meu ancestrais colhendo algodão, dançando ou tocando banjo. Africanos sempre foram retratados como selvagens.”
“Às vezes, sinto que acabei escolhendo a fotografia como profissão por ser um trabalho que eu podia fazer sem o consentimento dos brancos.”
“Sim, eu aprendi. E depois de toda a distância que superei, depois de toda a distância que percorri, posso dizer que o único lugar onde fui excluído por causa da cor da minha pele em um hotel, restaurante, igreja ou cinema, foi bem aqui, no meu país.”
No início dos boicotes aos ônibus em Montgomery, em 1955, a revista Life pediu que Gordon Parks fosse ao Alabama documentar as arraigadas tensões raciais na região. Ele compararia as descobertas com sua infância difícil em Fort Scott, no Kansas, e com a vida relativamente progressista e integrada que levara na Europa.
“E se alguém disser aos nossos jovens que os tempos estão mudando, eles respondem: ‘Nós estamos mudando os tempos’”.
Chegando a Mobile no verão de 1956, Parks foi recebido por duas pessoas: Sam Yette, um jovem repórter negro que tinha crescido na cidade e então fazia faculdade no norte, e um branco, chefe de um dos escritórios da Life no sul. Em suas memórias e entrevistas, Parks se refere a esse homem magnanimamente como Freddie, para preservar sua verdadeira identidade. Se a revelasse, Parks temia reações violentas contra Freddie e sua família.
A missão quase se desintegrou de imediato. Freddie, que deveria agir como intermediário de Parks e Yette durante a pesquisa para a reportagem, parecia ter outros interesses. Ele disse a Parks que a segregação no Alabama não era expressiva para justificar uma matéria na Life. Então, ele deu a Parks e Yette o nome de um homem que os protegeria em caso de problemas. Quando os dois descobriram que seu suposto guarda-costas era o líder do Conselho Local de moradores brancos, “um grupo conhecido por seu ódio por negros, como a Ku Klux Klan” (de Sorrir no outono), eles rapidamente foram embora por estradas alternativas. Depois de se reencontrar com Freddie, que admitiu seu “erro”, Parks começou a fazer progressos. Ele logo encontrou um dos temas principais do ensaio fotográfico: Willie Causey, um homem casado, pai de cinco filhos, que construiu uma vida simples como lenhador e meeiro. Para uma família negra no Alabama, os Causey tinham alcançado um razoável sucesso financeiro, exemplificado pela geladeira de segunda mão e pelo Chevrolet que Willie e sua esposa, Allie, professora do ensino fundamental, compraram depois de terem juntado dinheiro.
Ao longo de várias semanas, Parks e Yette fotografaram a família em casa e no trabalho; à noite, os dois dormiam na varanda dos Causey. Também visitaram os pais de Allie Causey, o sr. Albert Thornton e sua esposa, e Parks foi conseguiu reunir 18 membros da família, representando quatro gerações, para um retrato diante da casa da fazenda.
Quando o projeto se aproximava do fim, o escritório da Life de Nova York entrou em contato com Parks para pedir registros das instalações “separadas, mas iguais”, o resultado mais visível da divisão promovida pelas leis Jim Crow. Parks captou esse tipo de discriminação pelos olhos do filho mais velho de Thornton, E.J., professor na Universidade de Fisk, enquanto ele e a família aguardavam na sala de espera reservada a negros num terminal de ônibus em Nashville. (O próprio Parks, no entanto, experimentou tal discriminação em circunstâncias mais traiçoeiras, quando ele e Yette pegaram o trem de Birmingham para Nashville. Sob a ameaça velada de serem cobertos de piche e de penas, e até mesmo de serem linchados, Yette tomou água de um bebedouro “só para brancos” na estação de Birmingham, uma provocação que mais tarde, no trem, resultou numa agressão física da qual os dois homens por pouco não escaparam.)
Depois que a matéria sobre os Causey foi publicada na Life de 24 de setembro de 1956, a família foi tratada com crueldade. Seus bens foram confiscados, e eles foram expulsos de casa. Parks garantiu que a revista lhes oferecesse o apoio necessário para se recuperarem (apoio que Freddie tinha prometido e, por fim, se recusou a dar).
Em Vozes no espelho (1990), seu livro de memórias, Parks se recorda de Freddie com um desprezo indiferente; o homem, segundo o fotógrafo, era daquelas pessoas que “parecem inofensivas, e que caminham ao meu lado […] de um jeito fraternal – escondendo um punhal na mão”. ///
Texto publicado em Gordon Parks: Collected Works, Study Edition (Steidl, 2017). Tradução do inglês de Stephanie Borges. Fotografias publicadas originalmente na reportagem “The Restraints: open and Hidden”, LIFE, 24/9/1956. Cortesia © Fundação Gordon Parks.
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To Smile in Autumn: A Memoir, de Gordon Parks (W.W. Norton & Co., 1979)Voices in the Mirror: An Autobiography, de Gordon Parks (Doubleday, 1990)
A longa busca pelo orgulho (1963) por Gordon Parks
Há uns dias caminhei pelo que há de pior no Harlem, em Nova York, e fui sacudido pelo que 350 anos de opressão fizeram com o meu povo.
O gueto negro sempre esteve assolado pela dor, pela pobreza, por desespero e ressentimento, mas agora havia uma raiva exultante – claramente capaz de entrar em erupção numa onda de violência. Os moradores inquietos, não mais temerosos, não mais esperando passivamente pela salvação divina, encheram as esquinas, ouvindo vozes exaltadas gritando ofensas.
Em meio a tudo isso, policiais brancos contrariados, às vezes 50 para um único quarteirão – de pé diante de portas, vigiando do alto de telhados ou de prontidão encostados nos velhos cortiços –, ouviam as diatribes.
Uma mulherzinha inflamada sobre uma caixa de sabão gritava:
– Estamos nos mexendo! Estamos cruzando a linha – ainda que alguns de nós sejam mortos! Vamos persistir até que vocês devolvam o pó vermelho sob nossos pés pretos para a terra!
Ela gritava inquieta:
– Para o inferno com seu amor por nós! Para o inferno com sua pena de nós! Para o inferno com a raiva que vocês têm da gente. Nós não queremos nada de vocês, além de uma chance de viver melhor do que os ratos que moram em nossas casas! Se vocês não podem fazer nada em relação a isso, então arrumem um jeito de os ratos dividirem o aluguel conosco!…
O povo reagia às palavras dela, levantando as mãos e as vozes em frequente aprovação.
– Fala para eles, irmã!
– Mande-os pro inferno, meu bem!
– Fala mais! Fala mais!
Fico deitado à noite na cama, mexido com o temperamento negro de nossos tempos, com a coragem daquela senhora sobre a caixa de sabão. Era quase alvorada quando eu, enfim, peguei no sono, porque sabia – e saber fazia meu coração bater mais forte – que a história tinha nos alcançado.
A dor que vivenciei enquanto crescia no Kansas foi relativamente pequena. Eu era o caçula de 15 filhos, nascido de pais que nos encheram de amor e de uma firme religião metodista. Éramos pobres, mas o solo fértil ao redor de nossa casa de tábuas de madeira fornecia comida suficiente para a família. Na minha infância, nosso lar caloroso me ajudou a lidar com o sofrimento do destino de ser negro. Mas então eu fui para uma escola segregada. Fui avisado para evitar os bairros brancos depois que escurecesse. Eu tinha que me sentar nos piores lugares quando ia ao cinema com meus irmãos e irmãs. Não podia tomar refrigerante em nenhuma das duas drogarias da cidade. Era chamado de “crioulo”, “negrinho”, “escurinho”, “macaco” e todos aqueles outros nomes que despertam raiva e humilhação. Fui apedrejado e levei surras. As injúrias eram tão frequentes que logo comecei a aceitá-las como normais. Mas eu sempre revidei. Em retrospecto, me considero sortudo por estar vivo – especialmente quando me lembro que três dos meus amigos mais próximos foram mortos, vítimas de violências sem sentido quando tinham 21 anos. Eu também me considero sortudo por não ter matado ninguém.
Até a metade da minha adolescência, eu vivia com medo: medo de levar um tiro, de ser linchado ou agredido até a morte – mesmo sem ter feito algo de errado. Eu poderia facilmente ter sido vítima de uma identificação equivocada ou de um ato terrorista cometido por homens brancos cheios de ódio.
Em 1921, quando eu tinha oito anos, aconteceu o massacre de Tulsa. Os brancos invadiram o bairro negro, resultando numa batalha campal. Muitos homens brancos de Tulsa foram mortos, e ouvimos rumores em toda a nossa comunidade de que a fúria se espalharia pelo estado do Kansas e além. Nessa época, um primo meu decidiu se mudar para o sul para trabalhar num moinho. Minha mãe, sabendo que ele tinha um temperamento esquentado, pediu que não fosse, mas ele acabou pegando um cargueiro para o sul. Meses se passaram, e nenhuma notícia dele. Então, um dia, seu nome foi propagado por toda a nação como um dos homens mais procurados do país. Ele tinha matado um funcionário branco do moinho que o chamou de “crioulo sujo” e cuspiu em sua cara. Ele tinha matado mais alguém enquanto fugia da cena do crime.
Eu importunei minha mãe com perguntas que ela provavelmente não poderia ter respondido: eles o pegariam? Ele podia ser linchado? Onde ela achava que ele estava se escondendo? Por quanto tempo ela achava que ele poderia resistir? A única coisa que minha mãe sabia era aquilo que todos nós sabíamos. Se fosse humanamente possível, ele conseguiria voltar, então ela poderia rezá-lo.
Ele veio uma noite. Eu me lembro que estava chovendo e me deitei na escuridão do meu quarto ouvindo a batida da água no telhado. De repente, a janela perto da minha cama deslizou, e meu primo, molhado, entrou com cuidado pela abertura. Comecei a gritar quando ele aterrissou no meu quarto, mas ele rapidamente cobriu minha boca com a mão e sussurrou seu nome, me levando do susto ao silêncio. Ele foi direto para o quarto da minha mãe e a acordou. Ela o rezou. Depois disso, ela tentou persuadi-lo a se entregar. Ele se recusou. Foi até nossa geladeira velha, encheu uma bolsa de comida e foi embora do mesmo jeito que entrou.
Nenhum de nós o viu ou ouviu falar dele outra vez. Mas passei muitas noites sem dormir me perguntando se os brancos tinham matado meu primo. Rezei para que não tivessem feito isso – lembrando dos enormes sacos de amendoim que ele costumava me trazer e das caronas que ele geralmente me dava em sua moto velha. E durante muito tempo meus dias foram cheios de ilusões, nas quais eu o ajudava a escapar de multidões brancas imaginárias.
Eu tinha apenas 12 anos quando outra prima minha, uma menina de pele clara e cabelos ruivo-claros, veio passar o verão em nossa casa. Um dia, eu e ela corremos, de mãos dadas, em direção à região branca da cidade para encontrarmos minha mãe,
que trabalhava lá como doméstica. De repente, três garotos brancos, entre 12 e 15 anos, bloquearam o nosso caminho. Apertei a mão da minha prima e tentamos contorná-los, mas eles se espalharam pela calçada diante de nós.
– Aonde você vai com esse crioulo, lourinha? – um deles perguntou a minha prima.
Paramos. O garoto mais novo se abaixou atrás de mim e apoiou as mãos e os joelhos no chão, e um dos outros me empurrou. A dor disparou pela minha cabeça assim que ela bateu na calçada, mas eu ainda podia ouvir minha prima gritar enquanto ela corria para pedir ajuda. Então, alguém cuspiu na minha cara e chutou a parte de trás do meu pescoço. Eu me ergui num pulo e comecei a me esquivar, mas eles me derrubaram de novo. Na terceira vez que caí no chão, alguém chutou a minha boca. Agarrei o pé que veio na minha direção e derrubei seu dono. Atrapalhado, tentei correr. Mas, de repente, percebi que alguém tentava me ajudar. Um garoto branco que eu conhecia estava batendo em um dos meus agressores. De repente, ele estava no chão, do meu lado. Tinham batido na cabeça dele com um bastão. Os três moleques fugiram.
– Como tudo isso começou? – o menino que me ajudara perguntou enquanto caminhávamos cuidando dos nossos machucados. Contei a ele.
– Idiotas! – ele disse. – Bom, eu sempre soube que ela era uma negrinha.
Mordi meu lábio sangrando, fechei meus punhos e segui caminhando num silêncio confuso.
Houve vários incidentes similares, e minha prima resolveu ir embora no meio das férias. Ela nunca mais voltou para nos visitar.
Conforme o trem da minha prima se afastava, perguntei a minha mãe por que as pessoas brancas nos odiavam tanto. Ela desviou o olhar por alguns instantes, tentando – agora tenho certeza – encontrar uma resposta que me acompanhasse pela vida inteira. Finalmente ela me disse, com delicadeza:
– Nem todos os brancos odeiam você. E aqueles que odeiam têm problemas tão sérios consigo mesmos que são dignos de pena – e não merecem que você se preocupe com eles.
Palavras, concluí. Apenas palavras. De alguma forma, a briga por causa da minha prima foi um ponto de virada. Os anos de frustração tinham finalmente fervido em raiva. Agora cada injustiça me levava ao limite da violência, criando uma crise emocional atrás da outra.
Algumas manhãs eu ficava de pé diante do único espelho partido que havia em nossa casa e perguntava a Deus várias e várias vezes por que Ele teve que me fazer negro. Uma vez eu até sonhei que era branco, mas minha pele parecia flácida e larga, então eu ficava tentando puxá-la para se ajustar – tentando fazê-la caber. Acordei e descobri que eu estava agarrando minha cueca. Fiquei deitado, finalmente admitindo: eu era negro; sempre seria negro.
Onde eu poderia começar a construir um orgulho? Na igreja, Deus, os anjos e os santos eram sempre brancos. Na escola, os livros sempre mostravam meus ancestrais colhendo algodão, dançando ou tocando banjo. Africanos sempre foram retratados como selvagens. Meus livros de história nunca mencionaram negros como Hiram Revels, Peter Salem, Benjamin Banneker ou Harriet Tubman. Eu lia Aleksandr Púchkin e Alexandre Dumas, mas somente anos depois alguém me contou que eles tinham sangue negro.
Então, num mundo em preto e branco, qualquer um com a pele mais clara do que eu se tornava meu inimigo. Eu tinha 14 anos e comecei a extravasar – rápido, de repente e, às vezes, sem motivo aparente. Um dia, numa crise de raiva, derrubei no chão meu irmão deficiente de 22 anos, que era um pouco mais claro do que eu. Imediatamente envergonhado, me abaixei para ajudá-lo. Ele sorriu e dispensou meu gesto – eu saí da sala chorando. Isso doeu muito mais dias depois, quando descobri que havia meses ele sabia que tinha uma doença incurável. Um pouco antes de morrer, no inverno seguinte, ele me chamou à beira da cama.
– Pedro – ele usou o apelido pelo qual mais gostava de me chamar –, pela minha vida, eu não sei por que você está com tanta raiva do mundo. Não pode continuar assim. É demais. Se você pretende lutar contra o mundo, use seu cérebro. Tem muito mais poder do que os seus punhos.
Minha mãe morreu quando eu tinha 16 anos, e minha família foi separada. Ficou decidido que eu deveria ir para o norte, viver com meus parentes em St. Paul, Minnesota. Meus irmãos e irmãs mais velhos juntaram o dinheiro da minha passagem e, conforme o trem atravessava o Kansas, eu observei as pradarias e plantações com sentimentos ambíguos. Pressentia que estava escapando de um destino trágico que certamente alcançaria todos os meus amigos e parentes.
Dois dias depois, eu pisava desajeitado nas ruas geladas de St. Paul. Fiquei com meus parentes por algum tempo, mas não funcionou. Então decidi me virar sozinho. Eu ficaria faminto, sem casa e mais solitário do que nunca na minha vida. Mas sempre houve aquela premonição da liberdade. Ela me dava uma esperança indescritível, que me conduzia durante tempos amargos. Com frequência, a saudade da minha família era insuportável, e mesmo assim não escrevi para eles nem uma vez.
Nos anos seguintes, lavei pratos, servi mesas, trabalhei em bares, joguei basquete e futebol americano semiprofissionalmente e toquei piano em clubes e hotéis de beira de estrada, por todo o noroeste. Por volta de 1937, a fotografia se tornou minha profissão e, em 1942, recebi a bolsa Julius Rosenwald. Como bolsista, trabalhei na Administração de Segurança Agrária (FSA) para Roy Stryker, como correspondente do Escritório de Informações de Guerra, e com Elmer Davis. Passei os cinco anos seguintes na Standard Oil Company em Nova Jersey; depois disso, me juntei à equipe da revista Life.
A partir de então, meus trabalhos me levaram a dar diversas voltas ao redor do mundo. Aprendi que a sutil arte da rejeição, usada com finesse, pode ser tão abusiva quanto um soco na cara.
Eu me lembro que, um pouco antes de me candidatar a um emprego no norte “esclarecido”, esfreguei saliva num único ponto sujo da minha roupa, sabendo que seria inspecionado atentamente em busca de uma impecabilidade que eu era pobre demais para manter. Enquanto esperava, um jovem branco, que passou por mim usando uma calça jeans suja, ficou com a vaga.
Às vezes, sinto que acabei escolhendo a fotografia como profissão por ser um trabalho que eu podia fazer sem o consentimento dos brancos. Na época, eu era garçom em trens. O maître do vagão-restaurante, um cavalheiro branco sulista, se ressentia das minhas horas de estudo após o expediente, durante a longa viagem transcontinental. Ele começou a me tratar tão mal – me insultando diante dos passageiros, me passando uma carga de trabalho pesado além das minhas obrigações, uma vez até esbarrando “acidentalmente” no meu braço para que eu derrubasse uma bandeja de comida em alguns passageiros – que eu, finalmente, tentei estrangulá-lo. Fui demitido por isso, mas jurei que o maître um dia me serviria como cliente, que eu entraria no vagão-restaurante pela porta da primeira classe. Esse dia chegou. Mas eu não tripudiei com isso como pensei que faria. Na verdade, senti pena da pequenez do homem que, me disseram, ainda tentava manter jovens negros “em seus lugares”.
Se você é negro, você se acostuma tanto a ter problemas que consegue percebê-los antes mesmo que eles surjam. Então você se prepara, como eu, numa noite em frente à farmácia do Hotel Lowry em St. Paul, depois de observar bem três jovens brancos mal-humorados entregando panfletos políticos. Quando me aproximei deles, pude sentir seus olhos sobre mim. Suas expressões me diziam que eles eram encrenca.
– Aqui, garoto – disse um deles –, diga a seu papai e a sua mamãe para votarem como diz aqui.
– Vá pro inferno – eu disse, jogando o panfleto na calçada. Então, um deles me chutou, e eu parti para cima e empurrei um deles contra uma vitrine. Ele me puxou junto com ele, e meu corpo foi atingido pela maioria dos cacos de vidro.
Fui levado para dentro da farmácia, sangrando muito, com um dedo da minha mão direita pendurado da junta cortada. Os funcionários da farmácia cobriram meus ferimentos com toalhas molhadas.
Os três homens brancos logo foram pegos. A polícia veio, e nós quatro fomos levados para a cadeia. Eu fui detido como “testemunha material”. Fiquei na delegacia até as 11 horas da manhã do dia seguinte. Os três jovens brancos, eu soube depois, foram liberados quatro horas após o incidente, sem queixas nem pagamento de fiança.
Eu ainda carrego as cicatrizes daquela experiência: o último caco de vidro daquela vitrine estilhaçada conseguiu encontrar seu caminho para fora da minha pálpebra apenas há alguns meses.
Há outras cicatrizes que nada têm a ver com vidro. Eu me lembro de uma noite de nevasca cruel ao norte de Minnesota. Eu tinha procurado trabalho durante vários dias, sem sucesso. Por volta de 11 horas da noite, fazia 30 graus abaixo de zero. As ruas estavam desertas. Em meio à neve que caía, vi um neon vermelho piscando com a palavra comida. Já fraco, eu sentia que poderia desmaiar enquanto era empurrado pela ventania forte. Alcancei a porta e entrei.
– O que você quer? – a garçonete disparou.
Disse a ela que queria uma xícara de café, e então despenquei num banco.
Três homens brancos e uma mulher estavam sentados numa mesa junto à parede. Eles estavam bebendo.
– Bom, vou falar! – um dos homens disse com um sotaque sulista carregado. – Já vi tudo. Um crioulo comendo no mesmo lugar que pessoas brancas. Lá de onde eu venho nada disso aconteceria.
Eu o ignorei. Mas ele continuou:
– Daqui a pouco esses pretos filhos da puta vão querer deitar nas nossas camas também!
De repente, eu perdi o controle, agarrei minha xícara de café e atirei o líquido escaldante nele. Ele gritou, a mulher ao lado dele gritou. Comecei a jogar açucareiros, saleiros, pimenteiros e garrafas de ketchup, qualquer coisa que estivesse ao meu alcance.
Subitamente, a garçonete gritou um aviso, mas era tarde demais. Uma cadeirada me deixou inconsciente. Voltei à consciência sendo arrastado para fora da lanchonete por dois policiais. Eles me levaram para a cadeia.
Eu aprendi. Os anos se passaram, e enquanto me forçava a ir adiante, compreendi o significado das palavras do meu irmão em seu leito de morte. Percebi que elas tinham valor, mas que também eram fáceis demais, gentis demais. Cérebro e coragem nunca foram o suficiente.
Eu me lembro que, em Mineápolis, depois que me casei e constituí uma família, era um grande acontecimento para o meu filho de nove anos ir comigo ao centro da cidade aos sábados, almoçarmos no balcão da lanchonete, comer um sanduíche acompanhado de um imenso copo de leite maltado e irmos assistir a um filme que ele escolhesse. Mas, em 1942, quando nos mudamos para Washington D.C., não podíamos mais manter esse ritual. Eu sabia que ele era estritamente proibido. No entanto, eu não conseguia me convencer a expor uma mente tão jovem à verdade. Em vez disso, procurei outro tipo de lazer que nós dois pudéssemos compartilhar. Isso não era simples. Não havia praias, playgrounds ou parques de diversão que pudéssemos frequentar – pelos mesmos motivos. Por quase três meses, meu filho ficou entediado, falava pouco comigo, sentindo que eu, seu pai, não gostava mais dos nossos passeios regulares só dos rapazes. Finalmente, a mãe dele me convenceu a lhe dizer a verdade. E, numa manhã de sábado, eu fiz isso, ele ouviu atentamente e, depois de uns instantes, me fez uma pergunta.
– Pai, o presidente sabe disso?
Eu me lembro de uma viagem de ônibus em 1944. Usando um uniforme de correspondente do Departamento de Informação de Guerra (OWI), eu estava sentado no meio do ônibus com dois amigos negros, ambos pilotos da Força Aérea dos Estados Unidos. Do outro lado, havia dois majores e dois coronéis, brancos. Meus amigos e eu estávamos indo de Washington D.C. para Virginia tomar reforço de vacinas antes de embarcarmos para a linha de frente na Europa.
Era para ser minha primeira viagem para uma zona de guerra – e a segunda deles. Batedores aéreos, os aviões deles tinham sido atingidos por baixo, mas eles conseguiram escapar. Aterrissaram separados por quilômetros de distância, mas se encontraram novamente. Juntos, descobriram como retornar ao território aliado. Depois da burocracia, foram enviados de volta aos Estados Unidos para se recuperarem. Por fim, deram a eles a escolha de ficar no país para treinar outros pilotos ou assumir funções burocráticas. Eles pediram para serem enviados de volta para a ação.
A porta do ônibus se fechou, e as palavras vieram – duras, inacreditáveis:
– Vocês, crioulos, têm que sentar no fundo!
Olhei para a ponta do corredor e vi o ódio na cara do motorista de ônibus branco. É claro, nós não nos mexemos, apesar de o motorista, com raiva, ameaçar que seríamos presos. O ônibus também não saiu do lugar até que os militares brancos fizessem pedidos veementes, dizendo que eles tinham “negócios urgentes a tratar na base”, e dessem uma justificativa patriótica para o motorista dar a partida.
Meses depois, a caminho de Godman Field, Kentucky, numa estação de trem,
eu vi um dono de restaurante branco se recusar a servir comida para um oficial negro da Polícia do Exército, enquanto alimentava os prisioneiros de guerra nazistas que os policiais acompanhavam.
Sim, eu aprendi. E, depois de toda a distância que superei, depois de toda a distância que percorri, posso dizer que o único lugar onde fui excluído por causa da cor da minha pele em um hotel, restaurante, igreja ou cinema, foi bem aqui, no meu país.
Agora, quando um maître se aproxima de mim com seu cumprimento frio de “o que posso fazer por você”, minha resposta usual é: “Indique-me uma mesa, e então me dê um cardápio”. É quase um prazer vê-lo caçar uma mesa onde nenhum garçom consiga me ver. Assim que me sento – atrás de uma pilastra ou perto da porta da cozinha –, peço uma mesa melhor, embora eu saiba que me dirão que todas aquelas mesas vazias sem nenhuma sinalização sobre elas estão definitivamente “reservadas”.
Da próxima vez que eu planejar jantar lá – e eu vou voltar –, tomarei a
precaução de ligar com uma “voz branca” e pedir uma mesa “no centro, um
pouco à esquerda, debaixo do lustre – com flores”.
Depois de um tempo, o maître se cansa da brincadeira de gato e rato, e começa a me tratar como qualquer outro cliente pagante – tudo o que eu sempre quis.
Também conheço o vendedor na loja “exclusiva” que, deliberadamente, desvia o olhar quando me aproximo dele ou anuncia sem hesitação que não tem do meu tamanho – sem se dar ao trabalho de descobrir se quero um chapéu, um terno, camisas ou sapatos. E conheço o recepcionista do hotel que, depois de me dizer que tinha uma reserva confirmada para o sr. Parks, olha com indiferença por cima do meu ombro e pergunta quando o sr. Parks vai chegar.
Estou com 50 anos agora, mas ainda sou chamado de “garoto” e conheço alguns brancos que vão me chamar de “garoto” até eu completar 100 anos.
Sei que se eu estiver viajando de carro, digamos, de Nova York a Kansas City ou Chicago, devo chegar à cidade antes do anoitecer para ter tempo de procurar um hotel que aceite a minha família para o pernoite. Sei que, quando viajo por algumas partes do sul, devo levar gasolina extra porque há algumas cidades em que não me venderão nenhuma, especialmente se eu dirigir um carro bonito.
Com que frequência eu ouvi um homem branco dizer “eu conheço os negros”. Ninguém conhece os negros, nem mesmo o negro. Porque a vida toda sempre encobrimos nossos sentimentos, colocamos nosso tempo à disposição, esperamos pelo ano, pelo mês, pelo dia, pela hora em que poderíamos fazer o que estamos fazendo agora – olhar nossos opressores brancos diretamente nos olhos e dizer a eles o que pensamos, o que queremos e o que temos a intenção de conseguir. E tudo isso sem medo.
Nossos jovens nos dizem com ousadia: “Nós não continuaremos sofrendo enquanto o homem branco insiste numa rendição lenta por meio da lei e do tempo”. Se alguém mencionar a nova legislação, eles respondem: “Uma coisa é fazer uma lei, outra coisa é cumpri-la”. Se alguém falar de brancos bem-intencionados, eles respondem: “Se eles são sinceros, vão levantar suas vozes acima daquelas vozes racistas”. E se alguém disser a eles que os tempos estão mudando, eles respondem: “Nós estamos mudando os tempos”. Então, minha geração se rende a eles – e, ao fazer isso, encontra o orgulho. ///
Texto publicado na Revista LIFE em 16 de agosto de 1963.
Tradução do inglês de Stephanie Borges. Cortesia © Fundação Gordon Parks.
Publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #21, disponível na loja online do IMS.
Veja a exposição Gordon Parks – A América sou eu, em cartaz no IMS Paulista. Mais informações: ims.com.br
Gordon Parks (Kansas, EUA, 1912-2006) foi cineasta, fotógrafo, escritor e ativista. Seu trabalho sobre questões de raça, pobreza e direitos civis documentou a vida e cultura norte-americanas dos anos 1940 aos 2000, e integra coleções permanentes de grandes museus do mundo. Colaborou com o Escritório de Informação de Guerras dos EUA (OWI) e com as revista Life, Glamour e Ebony.























