O último herói
Publicado em: 30 de outubro de 2025
Realismo mágico
A fotografia se transforma continuamente diante dos diferentes contextos históricos, tecnológicos e socioculturais. Assim, o fotógrafo alquimista altamente especializado de meados do século 19, que carregava consigo um baú com lentes e equipamentos de laboratório, hoje cede lugar a qualquer pessoa que leve no bolso o modelo mais recente de iPhone. Mudanças radicais nas condições de produção e nos modos de olhar vêm revolucionando o cânone da fotografia e a figura do fotógrafo junto à sociedade. No centro desse cânone está Sebastião Salgado.
É difícil separar o homem do fotógrafo. Sua postura quase messiânica em relação à fotografia, aliada a escolhas técnicas, estéticas e políticas, contribuiu para a construção da imagem de Salgado como um herói – um desbravador de mundos, capaz de percorrer jornadas difíceis e perigosas em lugares quase inatingíveis para salvar os invisíveis ou lhes dar voz, a partir de sua perspectiva privilegiada. Sua obra é uma saga. Seu nome sempre foi sinônimo de grandiosidade e hombridade. Ao longo de uma carreira profícua, sua obra fotográfica também pôde contar com a força narrativa de seu discurso – a fala do mineiro contador de histórias, as entrevistas repletas de perspicácia e fascinação. Ele foi incansável na busca da melhor imagem, que acreditava ser capaz de instigar a empatia do espectador diante do retratado.
Na construção dessa retórica visual, ele levou a linguagem documental ao limiar entre a encenação e o instantâneo, numa espécie de realismo mágico. Nesse universo de viés animista, os elementos da natureza tornam-se protagonistas e parecem imprimir intencionalidade às cenas: um rastro de luz vindo do céu dá vida a um olhar; o contraste dramático das nuvens remete ao imaginário bíblico; o preto e branco cria um microcosmo particular. Salgado conta que o pai adorava andar até o ponto mais alto da fazenda da família para esperar as chuvas. Do lado direito, chovia; do lado esquerdo, raiava o sol. “Era uma sensação de início dos tempos, como se eu estivesse vivendo o Gênesis”, afirma o fotógrafo. “Essa herança veio dentro de mim.”
Ele ostentou centenas de prêmios, exposições e livros publicados em cinco décadas de carreira. Foi o fotógrafo brasileiro mais conhecido internacionalmente. Sua trajetória não começou – e não acabou – no seu país de origem; ele despontou nos Estados Unidos e viveu a maior parte da vida na França. Contou com a parceria da mulher, Lélia Wanick Salgado, como curadora e grande gestora de sua carreira. Economista de formação, ele foi um intelectual que sempre afirmou a importância da universidade para a capacidade de compreender o contexto das imagens. Morreu em 23 de maio deste ano, por complicações decorrentes da malária, doença contraída em uma de suas aventuras fotográficas.
Tive a chance de entrevistá-lo em Paris, em 2021. Não havia considerado o impacto que sua presença física me causaria; sua fala serena e ritmada parecia suspender o tempo. Não falamos de fotos específicas. Salgado narrou suas viagens e sentimentos; misturou lembranças da infância, da adolescência e da maturidade vividas em sete continentes. Fazia pausas, deixando o olhar se perder no vazio, como se desbravasse a memória em busca da melhor frase, da palavra precisa. Impossível não se encantar com seu olhar límpido e oceânico, que tornava tudo clarividente. Nunca as colocações de Roland Barthes e Walter Benjamin a respeito da relação entre fotografia e texto fizeram tanto sentido. Ambos os autores, cada um a seu modo, enxergavam a fotografia como uma mensagem sem código: para Barthes, caberia ao texto elucidar os sentidos não óbvios da imagem; para Benjamin, o fotógrafo deveria recorrer às legendas para ampliar a experiência do espectador. Analogamente, a fala encantatória de Salgado potencializava o poder de suas fotografias.
Contudo, assim como essa obra não pode ser reduzida a mero documento, tampouco pode ser vista apenas pelo prisma da magia e da fascinação. É fundamental analisar de modo crítico o legado desse fotógrafo-herói, sobretudo num momento em que as novas tecnologias de produção e compartilhamento de imagens e os estudos decoloniais colocam a fotografia sob intenso escrutínio político, questionando a perspectiva (o “lugar de fala”) dos fotógrafos e aprofundando uma tendência à autorrepresentação. Com a morte de Sebastião Salgado, insinua-se também o fim de uma era?
Limites da dor do outro
Assim como ele, muitos nomes da fotografia mundial contribuíram para essa tradição de um fazer fotográfico “heroico” encarnado pelo olhar estrangeiro, que perscruta o mundo com interesse jornalístico ou antropológico a fim de representá-lo. O francês Henri Cartier-Bresson, por exemplo, foi o primeiro ocidental a registrar a queda do governo sob o Kuomintang e o advento da República Popular da China, momento histórico testemunhado pelo fotógrafo de dezembro de 1948 a setembro de 1949. Cartier-Bresson fundaria a prestigiosa agência Magnum, de que Salgado fez parte, e que representa como nenhuma outra instituição o ideário da fotografia documental que aqui chamamos de heroico. No Brasil, figuras importantes como Claudia Andujar e Pierre Verger – fotógrafos europeus que registraram, respectivamente, os indígenas Yanomami na Amazônia e o povo e os rituais de religiões afrodescendentes na Bahia – também se enquadram nesse modelo de fotografia em que os vulneráveis ou invisíveis só passam a existir – aos olhos ocidentais – por meio das lentes profissionais.
As fotos de Salgado frequentemente nos dão a ver as margens do mundo globalizado, espelhando problemas históricos de fundo sociopolítico e econômico. Essas imagens nos confrontam com o sofrimento humano extremo – como feridas supurantes –, ainda que enquadrado de maneira bem-composta e esteticamente bela. Seu primeiro destino foi a África – que o fotógrafo conheceu como secretário da Organização Internacional do Café (OIC), nos anos 1970 –, onde encarou com perplexidade a fome e o êxodo. Em Outras Américas (1982), sua intenção era encontrar a América Latina profunda que ele tinha em seu imaginário durante o período de autoexílio na Europa, ou, em suas palavras, realizar “uma espécie de arqueologia de um momento histórico das comunidades campesinas da América Latina”. Em Trabalhadores (1992), Salgado faz um mapeamento global das relações de exploração laboral em 200 anos de industrialização, denunciando as condições perversas a que as pessoas são submetidas em busca de sobrevivência. A série alcançou grande projeção e tornou-se emblemática de seu projeto artístico, que então poderia ser compreendido como um desejo de resistência diante da ameaça do capitalismo global. Em Êxodos (1999), seguindo a mesma linha, o fotógrafo registrou os movimentos migratórios em suas formas mais brutais ou sutis de violência, retratando as pessoas deslocadas por questões étnicas, religiosas, políticas ou culturais.
Nesses trabalhos iniciais, há um desejo de transcendência para além da documentação crua da realidade da miséria humana – uma busca, como afirmava o fotógrafo, por “um pouco de esperança, dignidade, resistência e humanidade”. O olhar compadecido de Salgado nos coloca diante da vulnerabilidade do outro, como no caso das imagens do garimpo na Serra Pelada, do manejo do vapor sulfúrico na Indonésia, ou de um campo petrolífero no Kuwait – no qual quase podemos sentir o terrível cheiro do petróleo queimado. Essa procura para além do factual e a sensibilidade em arregimentar a cena a partir de sua dimensão emocional elevam sua obra a uma “universalidade na busca pela humanidade, como uma redenção possível para além da visão apocalíptica da modernidade”, como analisa o professor Karl Erik Schøllhammer em Além do visível: o olhar da literatura (2007). Essas seriam sua marca e seu legado, que o distinguem de outros tantos fotojornalistas com pulsão dramática pelo desespero humano.
Ao mesmo tempo, contudo, suas fotografias nos impõem uma experiência no limite do irrepresentável. Ainda de acordo com Schøllhammer: “Não há forma possível de imaginar o que têm vivido as pessoas ali retratadas; não há como nos colocarmos na sua situação nem nenhuma maneira de captarmos a sua experiência real. As imagens revelam esse segredo impronunciável e inumano que pertence ao Outro.” Ou seja, diante da enorme exposição midiática a que estamos submetidos, essas imagens, em vez de nos fazerem estremecer e nos levarem a agir, nos manteriam no confortável lugar de meros espectadores.
Novo mundo novo
O trabalho de Salgado se caracteriza por uma enorme organicidade com sua vida. Após ter ficado devastado ao realizar Êxodos, ele retorna ao Brasil a fim de refazer sua crença no mundo. Saem de cena as agruras da fome, da miséria e da desesperança. Seu projeto seguinte, Gênesis (2013), em vez de denunciar o desastre ecológico, trata de celebrar o milagre da existência nos confins do planeta. Em várias dessas fotografias, Salgado incorre em certo lirismo – presente também em Outras Américas –, como se esse projeto resgatasse o velho contador de histórias fantásticas. Não estamos mais diante de um suposto irrepresentável, mas, sim, de imagens que celebram a vida possível. Isso fica evidente no filme O sal da terra (2014), codirigido pelo cineasta alemão Wim Wenders e por seu filho Juliano Salgado. Em várias cenas, o fotógrafo conta as histórias da captura das imagens – como a do famoso retrato da tartaruga anciã, em que ele rasteja para fotografar de um ângulo baixo, com a dignidade e a reverência que acreditava que o réptil centenário merecia.
Se, em Gênesis, Salgado adota um tom mais otimista em relação às séries anteriores, ele segue fiel à narrativa heroica de descortinar um mundo virgem para o espectador, desbravando locais “inexplorados”. A busca pelo idílico volta a se aliar ao tom de denúncia em seu último trabalho, Amazônia (2021), resultado de seis anos de incursões pela região. O percurso da exposição dessas fotos – apresentadas inicialmente em Paris e, depois, em São Paulo e no Rio de Janeiro – foi pensado como uma viagem pela floresta: seguimos de barco o curso do rio e adentramos a mata até a aldeia onde encontramos os indígenas.
A música atua como fio condutor da experiência e da emoção do espectador: a exibição das imagens nas salas de projeção é acompanhada pela trilha sonora concebida especialmente pelo compositor francês Jean-Michel Jarre a partir de sons amazônicos dos arquivos do Museu de Etnografia de Genebra, que incorpora também o poema sinfônico Erosão, do maestro brasileiro Heitor Villa-Lobos. A instalação resgata o lugar especial que a música ocupou na vida do fotógrafo, que, aos 8 anos, se apresentava na Rádio Cultura zyz-28 de Aimorés (MG), e, mais tarde, cantou música sacra no coral do Colégio Salesiano, em Vitória (ES) – o que lhe permitiu “viajar na história cristã da humanidade”, como ele conta.
Nessa nova jornada do herói, construída na última de suas longas viagens exploratórias, o fotógrafo emprega sua célebre retórica visual, agora somada ao uso da música, para articular uma espécie de redenção final por meio da imagem fotográfica.
Imagem agnóstica
Em geral, as imagens de Salgado são compreendidas a partir da tradição da fotografia documental, que pressupõe a crença – construída ao longo da história – de que o que se vê tem conexão direta com a realidade. O fotógrafo esteve nos lugares mais ermos do planeta com o intuito de desvendar essa suposta realidade – não uma ideia de realidade, uma construção da realidade, mas a realidade em si. Suas fotografias espelhariam o mundo; ver seus retratos equivale a conhecer as pessoas em carne e osso. Dessa perspectiva, o olhar do fotógrafo é como o “olhar de Deus”, que tudo vê, que invoca e suscita crença. Os espectadores enxergam na imagem aquilo em que acreditam – ou querem acreditar. A fotografia documental tem essa força – e essa fragilidade.
A fotografia contemporânea – pelo menos desde os anos 1980 – tem manifestado uma desconfiança crescente (ou mesmo uma rejeição completa) desse “real”, questionando a perspectiva dos autores e as fronteiras entre ética e estética na produção de imagens. Assim, aposta-se cada vez mais em uma fotografia construída, reflexo de “mundos possíveis”, mais do que de uma realidade preexistente. O francês Michel Poivert, historiador da fotografia, chama de “agnóstica” essa imagem encenada, que, no entanto, incorpora as estéticas da fotografia documental. Não se trata de uma imagem em que se acredita, mas que se imagina – em oposição ao ideário moderno de objetividade que funda a fotografia documental.
As críticas ao eurocentrismo da fotografia moderna, por exemplo, reverberam com muita intensidade atualmente, sobretudo no Brasil, quando a tônica decolonial instaurou novos parâmetros de representação e de visibilidade. O espectador hoje demanda uma multiplicidade de narrativas correspondente à variedade de perspectivas da sociedade. Nesse contexto em que as minorias étnicas, sociais e de gênero se articulam e ecoam suas vozes, perde sentido a figura do fotógrafo-herói, que vem de fora para representar os outros. O fotógrafo ou a fotógrafa são cada vez mais uma voz das próprias comunidades, que produz imagem de dentro, não necessariamente como forma de denúncia, mas afirmando seu lugar de fala. Essa nova relação ética e política de produção e circulação de imagens se reflete também na estética da fotografia contemporânea, afetando, em retrospectiva, a percepção da obra de Sebastião Salgado. Como o olhar atual vai moldar o legado desse herói de seu tempo junto às novas gerações, ele – o tempo – dirá. ///
Publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #29, disponível na loja virtual do IMS.
Teresa Bastos (Itabirito, MG, 1965) é pesquisadora e professora, doutora em letras e estudos de literatura pela PUC Rio. Realizou pós-doutorado em fotografia pela Universidade Sorbonne (US), em Paris, e em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora associada da Escola de Comunicação da UFRJ.







