Território e ancestralidade nas imagens de Priscila Tapajowara
Publicado em: 2 de outubro de 2025O começo é sempre no chão. Os enquadramentos insistem nos pés que pisam a terra, nos passos que atravessam a floresta, nas marcas deixadas em caminhos de areia e lama. Ao fotografar de baixo para cima, engrandece as figuras humanas e, ao mesmo tempo, mostra a pequenez diante da natureza. O gesto é simbólico: caminhar é o primeiro ato de pertencimento ao território. É assim que a cineasta e fotógrafa indígena Priscila Tapajowara constrói suas narrativas.
Da escolha estética nasce também a sua postura política. Nos últimos anos, Priscila construiu uma trajetória que une ancestralidade e ativismo. Cresceu em Santarém, no Pará, ouvindo histórias do avô pescador e da bisavó que atravessou conflitos na floresta, até transformar essas memórias em imagens. De celulares improvisados às câmeras profissionais, consolidou uma filmografia que vai de curtas como Os Waraos de Upaon Açú (2023) e The River (2023) a séries televisivas como Sou Moderno, Sou Índio (2021), passando pela direção de fotografia de Ara pyau: Primavera Guarani (2018) e pela realização de Meus Passos Vêm de Longe (2021). Priscila também publicou, junto com as fotógrafas Sandrieli Kaiowá e Vanessa Pataxó, o livro Ãpekôyp Yvy – Corpos Terra, um dos destaques da convocatória de fotolivros do Festival ZUM 2024.
Hoje, seu trabalho circula em mostras e exposições no Brasil e no exterior, de Glasgow, na COP26, a Berlim e Nova York, além das oficinas que ministra em aldeias amazônicas e até na Indonésia. A cada imagem, Priscila reafirma que a Amazônia não é um mito romântico, mas um território plural, real e vivo. Seus pés, e os de quem fotografa, marcam o compasso de uma narrativa contada pelos próprios povos indígenas, que transformam memória em luta e caminham para garantir o futuro.
Nas suas lembranças, como, e onde foi seu primeiro contato com a fotografia?
Priscila Tapajowara: Foi em Santarém, no Pará. Eu fazia muitas fotos da minha região com o celular, como as praias, comunidades, os lugares que visitava com a minha família. Meu pai percebeu que eu gostava muito e conseguiu que eu fizesse um curso de fotografia. No começo eu usava a câmera dos outros, até que, depois de trabalhar e juntar dinheiro, consegui comprar a minha primeira câmera, por volta de 2014 para 2015.
Nas primeiras imagens, meu olhar já buscava mostrar a beleza da região, as manifestações culturais e também o movimento de luta contra o complexo do Tapajós, que estava começando naquele período. Era um engajamento que crescia junto com o meu desejo de fotografar.


Seu trabalho conecta ancestralidade e ativismo. Como essa conexão se manifesta em projetos como a websérie Agawaraita ou no curta-metragem Tapajós Agawaraitá?
PT: Sempre digo que essa conexão vem no instinto. Minha avó repetia: “você pode percorrer o mundo, mas não pode esquecer suas raízes”. É a partir dessa memória familiar que eu construo o olhar fotográfico. Junto o conhecimento ancestral com as ferramentas tecnológicas. A câmera precisa ser extensão do meu olhar, quase como uma impressão daquilo que vejo. É assim que consigo traduzir a ancestralidade e o ativismo na minha imagem.
Em trabalhos como a direção de fotografia de Ara pyau: Primavera Guarani ou Sou Moderno, Sou Índio, como você equilibra a técnica com a necessidade de capturar a essência do seu território e do seu povo?
PT: No Ara pyau, estava no Jaraguá, em São Paulo, quando os Guarani me chamaram para registrar a mobilização deles. Era a única que tinha câmera e acesso a momentos íntimos. Depois, junto com o diretor Carlos Magalhães, transformamos esse material no filme. Já em Sou Moderno, Sou Índio, também assumi a direção de fotografia, sempre dialogando com os diretores, mas trazendo minha estética.
Tenho formas próprias de filmar: planos dos pés das pessoas, ângulos de baixo para cima que engrandecem a figura humana e mostram o quanto somos pequenos diante da floresta. Essa marca se repete em vários trabalhos, tanto na fotografia em movimento quanto na estática.
Como é o seu processo de criação? Você busca as imagens ou elas vêm até você através das histórias das pessoas? Existe um ritual ou uma preparação antes de fotografar? Como lida com a criatividade?
PT: Meu processo é muito instintivo. Sempre registrei histórias da minha família — meu avô, Miguel Cavalcante, foi pescador por 40 anos e contava causos sobre boto e jurupari. Minha bisavó falava de guerras com castanheiros e de como precisou se esconder sozinha na floresta quando criança. Comecei filmando esses relatos para salvaguardá-los.
Acredito que a câmera precisa ser extensão do meu olhar, então não busco saturar cores ou criar artificialidades: apenas realço aquilo que já existe. A criatividade nasce dessa imersão no território e nas histórias. Muitas vezes, o processo é só se deixar conduzir pelo ambiente — principalmente quando estou dentro da floresta, onde me sinto mais imersa.
Qual a importância do seu território, a região de Santarém, no Pará, para a sua fotografia?
PT: O território é tudo. Estar conectada às minhas raízes me fortalece. Santarém e o Rio Tapajós são minha origem, mas também me vejo como parte da Amazônia. Sempre lembro que a Amazônia não é uma coisa só, é plural, diversa, tanto em biodiversidade quanto em culturas e pessoas. Essa conexão me dá sentido, porque quando falo de Santarém ou da Amazônia, não é apenas beleza: é memória, luta e pertencimento.
Como você avalia o crescimento da presença de mulheres indígenas no audiovisual e na fotografia? Que desafios vocês ainda enfrentam e quais vitórias já podem ser celebradas?
PT: Quando comecei, quase não havia referências de mulheres indígenas no cinema e na fotografia. Hoje há mais presença, mas ainda são poucas. O mercado é cruel: em São Paulo, sofri preconceito por ser amazônida, por ser jovem, por ser mulher. Muitas vezes as mulheres indígenas são chamadas como “cota” e recebem menos do que outros profissionais.
Percebo também que o problema não é apenas racial: o mercado audiovisual brasileiro é fortemente sudestino e elitista. Já vivi situações em que pessoas não brancas reproduziam os mesmos preconceitos, dizendo que eu não poderia ocupar certos papéis porque era do Norte, porque era amazônida, porque era muito nova. Isso mostra como as desigualdades regionais pesam tanto quanto as questões étnicas.
Apesar disso, movimentos de redes sociais e coletivos vêm abrindo espaço, e projetos como o Mídia Indígena têm fortalecido formações e oportunidades para jovens, especialmente mulheres. Recentemente, realizamos o primeiro Encontro Nacional de Comunicadores Indígenas, que reuniu 104 comunicadores de 62 povos em Belém, um momento de partilha e fortalecimento da luta dessa juventude.
Muitos projetos documentais mostram uma Amazônia mítica, sem os desafios da urbanização e da crise climática. Como seu trabalho fotográfico, que conecta ancestralidade e ativismo, desafia essa visão romântica e mostra uma Amazônia mais complexa e real?
PT: A arte não serve só para mostrar beleza, mas também problemas. Fotografia e cinema podem causar inquietação, revelar contradições da Amazônia: urbanização, crise climática, lutas territoriais.
Ao mesmo tempo, meu trabalho busca mostrar também a riqueza cultural, os conhecimentos e a diversidade dos povos. Acredito que, quanto mais as pessoas conhecem essa riqueza, mais respeitam e ajudam a preservar. Minha Amazônia não é um mito, é real, plural e atravessada por conflitos — mas também cheia de beleza e ancestralidade.
Quais são seus próximos projetos e quais histórias você sente a necessidade urgente de contar através das suas lentes?
PT: Primeiro, estar viva já é um projeto. Mas, coletivamente, estamos preparando a Casa Maracá para a COP em Belém [entre os dias 10 e 21 de novembro de 2025]. Será um espaço com programação indígena e tradicional, o primeiro com lideranças indígenas presentes nesse formato. E não será só para a COP. A ideia é que continue depois, como um espaço de conexão entre a sociedade e as culturas indígenas. É isso que me move agora: contar histórias que fortaleçam nossos territórios e nossa presença no mundo. ///
Fotos gentilmente cedidas pela fotógrafa Priscila Tapajowara.
Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como Folha de S.Paulo, Estadão, TV Cultura, UOL e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.