Ensaios

Lou Reed em Juiz de Fora

Carime Elmor Publicado em: 23 de janeiro de 2025

The Velvet Underground no Max’s Kansas City, foto de Leee Black Childers, agosto de 1970, Nova York

Quatro reais. Foi o valor pago por Igor Palmerim, fotógrafo e dono de brechó, por um conjunto de fotos “de época” do Velvet Underground encontradas no chão de uma tradicional feira de alimentos e muambas na cidade de Juiz de Fora (MG). Em um domingo de manhã em janeiro de 2019, às margens do Rio Paraibuna cheio, Palmerim caminhava pela Feira Livre da Avenida Brasil quando encontrou esse pequeno tesouro entre as fotos: uma sequência que mostra Lou Reed em seu último show com a banda novaiorquina no Max’s Kansas City, no verão de 1970.

Palmerim tem a vaga lembrança do dono da banca ter falado que encontrou os retratos no lixo. Muitos dos feirantes são catadores de papel. Igor Palmerim, com olhos de lince de quem garimpa e vive disso há mais de uma década, afirma que esse foi o seu melhor achado. Se arrepende de ter deixado uma do John Cale rasgada para trás. Vivendo em São Paulo, passou a frequentar um grupo de pesquisa em fotografia e foi quando se deu conta de que eram ampliações originais da época.

O assunto dessas fotos chega até mim em 2023. Por meio de amigas comuns (todos nós vindos de Juiz de Fora para morar em São Paulo), encontrei Palmerim em uma balada paulistana e ali ele me contou essa história. Eu tinha acabado de começar um mestrado sobre as interações entre o rock e as artes visuais. Pelo envolvimento com Andy Warhol e os artistas da Factory, a banda de Lou Reed seria um tema fundamental.

Passado uns meses, marcamos uma entrevista em um café. Palmerim me entregou um envelope pardo A4, sem nenhuma cerimônia, com 24 fotos. Nessa primeira conversa, me disse que o desejo dele era fazer as fotos serem vistas por mais pessoas, pois não considerava justo mantê-las por muito mais tempo em sua gaveta. Fotos nunca vistas da banda que mais formou bandas no mundo deveriam ser públicas.

Ao todo, eram três séries com qualidades de papel, tamanho e processos de ampliação diferentes. Algumas mostram Lou Reed se apresentando com sua clássica guitarra epiphone riviera. Outras são da artista Nico cantando e tocando ao lado de John Cale em uma apresentação intimista. Uma das fotos é de Lou Reed sentado na cadeira de um escritório com cartazes de banda. Há ainda uma sequência, em tamanho menor, de Lou Reed, Moe Tucker, Sterling Morrison e Doug Yule se preparando para um show em uma quadra de basquete. As maiores ampliações, em 20,5 x 25,5 cm, têm uma margem inferior branca de 3cm, não foram refiladas. No verso delas, o carimbo de uma borboleta com o texto: “photograph by Leee Black Childers”.

The Velvet Underground no Max’s Kansas City, foto de Leee Black Childers, agosto de 1970, Nova York

O fotógrafo norte-americano Leee Black Childers morreu em 2014, aos 68 anos. Na juventude, quando ainda era um garoto pobre e gay, abandonou Kentucky e foi morar brevemente em São Francisco, onde, segundo ele, tomou LSD com Timothy Leary. Em seguida, em 1968, aos 23 anos, migrou para Nova York, lugar “onde as hemorragias sociais [também] estavam dando as caras”[1]. Foi construindo suas relações e passou a dividir um apartamento de um quarto no Lower East Side com nove pessoas, entre elas, a cantora trans Jayne County, do grupo Wayne County & the Electric Chairs, e a atriz trans Holly Woodlawn, superestrela de Warhol eternizada no primeiro verso de Walk On The Wild Side (Transformer, RCA Records, 1972). Não demorou para ele conhecer a Factory e, ao encontrar Warhol, contar a ele que ansiava se tornar fotógrafo. “Diga que você é um fotógrafo, e então você é um fotógrafo”, aconselhou Warhol apontando para Candy Darling do outro lado da sala: “Olhe para ela. Ela diz que é uma mulher. E ela é”. Daquele momento em diante, Leee era um fotógrafo.

Leee Black Childers é um ponto firme no espírito inquieto de Nova York. Captou o olhar de quem já viu o abismo, conferindo às suas personagens espantosas e geniais, e aos seus corpos dissidentes, o pódio mais elevado. Era um artista boêmio que celebrava as extravagâncias da noite e valorizava visões de mundo rebaixadas pela cultura. Seu trabalho não circulou nos espaços tradicionais de arte. Possui um único fotolivro lançado dois anos antes de sua morte com tiragem de mil cópias: Drag Queens, Rent Boys, Pick Pockets, Junkies, Rockstars and Punks (The Vinyl Factory, 2012). Na história da cena rock e queer de Nova York, ele nunca foi alguém que despertou ávido interesse por parte da mídia, passou despercebido sendo celebrado por quem frequentava os mesmos ambientes da subcultura da época. Um ordinário extraordinário.

No site do CUTS, salão de cabeleireiros que existe desde os anos 1980 no Soho de Londres, há um texto de apresentação de uma mostra com fotografias do livro dizendo que “ninguém mais foi tão próximo dos Superstars de Warhol quanto Leee, ou ajudou Bowie a criar sua persona Ziggy Stardust, ou fotografou tanto a Debbie Harry antes de ser Blondie, ou festejou com tantas drag queens, garotos de programa, batedores de carteira, drogados e punks e capturou suas imagens duradouras tão bem quanto Leee”.

Histórico ponto de encontro dessa geração de artistas, o Max’s era um restaurante normal. A festa acontecia nos fundos da casa, em um quarto no segundo andar cheio de pessoas da música, do teatro, figuras punks e queers. Lá, a cena subterrânea era elevada ao andar de cima. O espaço possibilitava o cruzamento das artes visuais com a música, a performance, a literatura, a dança e o cinema. “O local exato onde a arte pop conheceu a vida pop”, assim descreveu Andy Warhol. As performances ao vivo no Max’s começaram na virada do ano 1969 para 1970, quando o jornalista e gerente de música Danny Fields trouxe os Stooges, depois Alice Cooper e finalmente o Velvet Underground.

No dia em que Leee fotografou o Velvet Underground, em 23 de agosto de 1970, a banda estava finalizando uma residência no Max’s, tocando dois sets por noite, de quarta a domingo. A temporada tinha começado no final de junho, junto com a primeira Parada LGBTQIAPN+ da história, um ano após a Revolta de Stonewall. O público da noite resultava de um cruzamento das subculturas de Nova York, incluindo as drags, as trans, os punks, os garotos de programa, as prostitutas, as pessoas não-binárias, artistas plásticos, empresários da cultura, estrelas do rock e do cinema.

Além de Lou Reed e Sterling Morrison, a formação naquele momento contava com Doug Yule na guitarra – antes conduzida por John Cale – e seu irmão adolescente, Billy Yule, na bateria substituindo Moe Tucker, que tinha acabado de ser mãe. Doug lembra que a sensação de estar no Max’s pela primeira vez “foi como entrar na cena do bar em Star Wars”. Ele enxergava tudo com uma visão “panorâmica lenta” testemunhando “seres alienígenas envolvidos em atividades insondáveis”. Entre elas, Divine “sentada em uma mesa do outro lado do corredor rindo alto demais em falsete de barítono”.

Dois meses desde o início da temporada, fizeram a primeira sessão tocando músicas do Loaded (Atlantic Records, 1970), que sairia em outubro, e do White Light/White Heat (Verve Records, 1968). Mas no segundo set, diferente dos outros dias, Lou Reed decidiu cantar canções da fase Nico. Ele começou a noite provocando o público: “vocês podem dançar, caso não saibam!”. Na biografia Uptight (1983), escrita por Gerard Malanga e Victor Brockis, Lou confessa que odiava tocar no Max’s pois se sentia obrigado a fazer músicas somente para entreter a pista. Mas no show em que decidiu sair da banda, tudo foi diferente: “Eu sabia que poderíamos fazer rock de alta energia e todos poderiam dançar. Tudo bem. Mas na última noite em que estive lá, quando Brigid Polk gravou sua fita, foi a única noite em que realmente me diverti. Eu fiz todas as músicas que queria – muitas delas eram baladas. Alta energia não significa necessariamente ser rápido; alta energia tem a ver com coração.”

Brigid “Polk” era Brigid Berlin, cineasta que tinha como estilo de vida gravar tudo. Foi a partir de gravações caseiras dela conversando com a mãe, familiares e amigos que Andy Warhol construiu Pork. Brigid não gostava de subir para o quarto dos fundos, ela preferia ficar no bar comendo e bebendo com outros artistas. Também não tinha interesse em rock e nunca assistia aos shows. Mas conhecia Lou Reed da Factory,e tinham se tornado amigos a ponto de ele ligar para ela com ideias de composições. Então, quando em 23 de agosto, ela soube que o Velvet iria se apresentar, decidiu gravar o show inteiro para ter um registro de como a banda soava ao vivo. Ela tinha um gravador mono portátil da Sony e um bom microfone. Jim Carroll estava ao seu lado e lembra que conseguiram uma mesa bem em frente ao palco para colocar o equipamento. Ele também conta que, diferente dos outros dias com apenas metade do público, a casa estava lotada. Carroll ouviu o primeiro set, semelhante ao de outras noites, mas depois da pausa “Lou se abriu para a multidão de uma forma que eu nunca tinha visto antes. Houve uma onda de melancolia superenergizada. Ele começou com I’ll Be Your Mirror. O fraseado de Lou prendeu cada coração na sala. O set inteiro foi triste, cheio de baladas antigas. As canções do coração, as canções lentas, as canções cuja ironia te deixava suando frio.”

Leee também estava posicionado à beira do palco tirando as fotos que foram encontradas no Brasil. Ele adorava fotografar Lou Reed e é conhecido por ter feito alguns de seus primeiros retratos. Sempre teve um olhar afiado para música e garotos gays. Usava uma Canonque ganhou do irmão. Nem ele, nem Brigid, sabiam que estavam registrando uma noite histórica que seria encapsulada na memória coletiva da história do rock. Não se sabe quando Lou Reed tomou a decisão, mas o anúncio de que ele estava deixando o Velvet Underground veio logo após cantar Lonesome Cowboy Bill e ir para o camarim. Carroll especula um fim poético para a noite de baladas tristes. Talvez sua decisão de romper tenha sido tomada enquanto cantava o refrão de “uma das músicas mais subestimadas do Velvet Underground: ‘It’s the beginning of a new age’” [É o começo de uma nova era].

O show acabou. Alguém anunciou: “Lou saiu do Velvet” e o jornalista e empresário Danny Fields – que assistiu a todas as apresentações – correu até Brigid e disse que ela tinha a fita da última apresentação do Velvet Underground com Lou Reed. “E o que a gente faz com isso?”, ela perguntou. Fields é uma das figuras mais influentes na história do punk rock, autor de biografias sobre Velvet Underground, Nico, Ramones, The Stooges. Mas naquela época trabalhava para a Atlantic como “um humilde publicitário”. Ele levou a fita para a gravadora no dia seguinte e pagaram 10 mil dólares por ela. O disco Live at Max’s Kansas City saiu em vinil dois anos mais tarde e é considerado o primeiro álbum pirata da história a ser editado e lançado oficialmente. Não haviam encontrado nenhuma foto do show. Leee deu uma entrevista contando que a única pessoa a pensar nele foi Lenny Kaye, guitarrista da Patti Smith, que disse: “Oh, eu me lembro de um rapazinho estranho que se sentava na beirada do palco e tirava fotos. Vou tentar descobrir quem é. E era eu. E foi assim que de repente me tornei um fotógrafo de rock ‘n’ roll”.

No final de 1971, John Cale, que vivia em Londres, convidou Lou para se juntar a ele e Nico em um show no Bataclan, em Paris, em 29 de janeiro de 1972. Na biografia de Lou Reed escrita por Bockris, essa noite é descrita como uma das experiências mais felizes do cantor: “Eu sempre quis tocar as canções românticas e sentimentais em um teatro”, diz Reed. Os parcos registros em vídeo do show foram gravados para um canal de TV da França. Quase não há fotos e nenhuma destas encontradas na feira de Minas Gerais estão disponíveis em fóruns, sites e lugares subterrâneos da internet. Tampouco há qualquer registro que indique o autor. Pelo ângulo de baixo para cima, podem ter sido feitas por alguém que estava nos primeiros lugares da plateia. As fotos não estão bem enquadradas e focadas. As ampliações parecem ter sido feitas de forma caseira, sem muito cuidado técnico. Em algumas, os negativos vazam nas bordas e há marcas das digitais dos dedos de quem manipulou o material.

Lou Reed não aparece nesta série de seis fotos. Durante o show, ele cantou e tocou violão, em alguns momentos deixou o instrumento e aproveitou a experiência de estar de volta em um palco. “John tocou o piano e eu me sentei em um banco com as pernas cruzadas. Durante um trecho instrumental, acendi um cigarro, dei um trago e disse: ‘Era o paraíso. Era o céu. Era realmente um deleite’”, conta em depoimento parte de sua biografia. Além do piano, John Cale tocou viola, guitarra e fez algumas vozes. Nico cantou e conduziu o harmônio. Ela passou a tocar o instrumento quando saiu do Velvet, deixando as melodias nos registros mais graves para combinar com sua voz.

Voltando alguns anos na linha do tempo, no final dos anos 1960 o Velvet Underground saiu em turnê como uma banda de estrada, tocando em diversos estados estadunidenses, como Massachusetts, Illinois, Ohio, Pensilvânia, Texas, Califórnia e Maryland, onde fica o campus universitário de Baltimore. O livro The Velvet Underground – New York Art, de Johan Kugelberg traz doze fotos coloridas de Connie Radulovitch semelhantes a esta série de fotos do Velvet Underground em uma quadra de basquete. Kugelberg acrescenta que eles teriam dividido a data com uma banda de rock psicodélico local chamada Fallen Angels. Uma nota no jornalzinho da faculdade, hoje digitalizada, confirma a data e a atração de abertura. A série encontrada em Juiz de Fora mostra Lou Reed, Moe Tucker, Sterling Morrison e Doug Yule se preparando para tocar em uma quadra esportiva. Embora na margem da ampliação em 9cm x 12cm apareça “Dec.”, uma abreviação de dezembro, o evento aconteceu dois meses antes, em 20 de setembro de 1969.

No site da Universidade de Maryland, campus Baltimore (UMBC), há o depoimento de um ex-aluno sobre o show do Velvet na quadra de basquete. Trata-se do escritor John Strausbaugh, comentarista cultural e apresentador da série de podcasts Weekend Explorer, do The New York Times. Strausbaugh tem recordações vagas: “Em parte, isso se deve ao fato de todos nós estarmos experimentando substâncias que alteram a consciência”, diz. Ele tinha acabado de chegar e estava se familiarizando com o que chama de “cultura mais solta e hippie” e já sabia o suficiente sobre o Velvet Underground para ficar desapontado por não ter a formação clássica no palco.

“Nico, a vocalista sepulcral, e John Cale, o inteligente violoncelista galês — cujas vanguardas se misturaram com o rock drogado de Lou Reed em Nova York para formar o som VU —, deixaram a banda. Essa formação do VU era mais convencionalmente rock, até mesmo folk-rock (…) Eu deveria ter gostado mais, mas lembro que soou meio desanimado. Eles soavam como uma banda cover do Velvet. Tive a impressão de que estavam apenas cumprindo a agenda. Talvez um show em um centro acadêmico no subúrbio de Baltimore parecesse um passo para trás em relação às noites psicodélicas do Exploding Plastic Inevitable de Andy Warhol”.

The Velvet Undergroud na Universidade de Maryland, fotógrafo desconhecido, setembro de 1969, Baltimore

Em uma das fotografias mais singulares desse achado, Maureen está sentada no chão do ginásio e parece entediada sustentando sua cabeça com uma das mãos enquanto mantém o braço apoiado sobre a perna. Se esticasse, alcançaria o maço de cigarros jogado à sua direita. Porém, atrás da tabela de basquete, preso à parede de alvenaria, vemos o cartaz: “NÃO FUME”.

Naquele momento, o Velvet vivia a transição de uma banda de art-rock de vanguarda para apenas mais uma banda de rock na estrada. A ambição de Lou Reed já não cabia nesse formato, mas ele seguiu viajando com o Velvet no primeiro semestre de 1970, até culminar no retorno para Nova York, em junho: “Primeira aparição em Nova York em três anos!”, dizia o cartaz. Brigid Berlin, Danny Fields e toda trupe da Factory deram as caras, incluindo Leee Black Childers com sua câmera que pegou os últimos momentos de Lou antes da renúncia. ///

Carime Elmor (Três Rios, RJ, 1993) é jornalista especializada em escrita de não-ficção e mestranda em Artes Visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP.

[1] Frase usada por Joan Didion para descrever São Francisco no ensaio Rastejando até Belém, mas que aqui se aplica também ao contexto de Nova York.