Entrevistas

A negritude amazônica pelas lentes de Marcela Bonfim

Marcela Bonfim & Lucas Veloso Publicado em: 15 de janeiro de 2025

Quilombo de Pedras Negras, 2015

Na mitologia grega, o mito de Narciso narra a história de um jovem de beleza excepcional que, ao ver seu reflexo em uma fonte de água, apaixona-se perdidamente por sua própria imagem. Incapaz de perceber que se tratava apenas de um reflexo, Narciso é consumido pela obsessão consigo mesmo, tornando-se um símbolo clássico da vaidade e da dificuldade de enxergar além da própria superfície. Há séculos, essa história nos alerta (entre outras coisas) sobre os perigos da desconexão e do individualismo.

No Brasil, onde a história da negritude foi marcada pelo apagamento e pela destruição das raízes familiares durante séculos de escravidão, muitas pessoas negras crescem sem referências claras de sua ancestralidade. Em Porto Velho, capital de Rondônia, a paulista Marcela Bonfim reinterpreta o mito de Narciso de forma radicalmente oposta. Em vez de se fixar na própria imagem, ela transforma a fotografia em uma ferramenta de autodescoberta e reconexão com sua ancestralidade, criando pontes para que outras pessoas negras também se reconheçam em suas histórias e raízes.

Ao chegar em Rondônia, Marcela foi rapidamente notada por sua aparência, o que gerou abordagens curiosas e surpreendentes. Perguntas como “Você é barbadiana?”, “Você é uma Johnson, uma Choca ou uma Malone?” surgiam com frequência, referindo-se às famílias afro-caribenhas e barbadianas que chegaram à região décadas atrás para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Essas questões despertaram nela reflexões sobre sua própria ancestralidade, motivando-a a investigar e a se conectar com a história dessas comunidades negras na Amazônia.

Os azuis de Nicácia, Quilombo de Vila Bela, 2015

Enquanto Narciso se perde na superfície de seu reflexo, o projeto Amazônia Negra, idealizado por Marcela, busca ir além. Por meio da fotografia e da oralidade, o trabalho aprofunda as narrativas de pessoas e comunidades negras na Amazônia, revelando sua riqueza cultural e histórica. É um projeto que possibilita o reconhecimento e a valorização de identidades antes invisibilizadas, celebrando a negritude na região.

Formada em economia, Marcela Bonfim encontrou na fotografia um meio poderoso de explorar essas histórias. Em 2016, sua exposição (Re)Conhecendo a Amazônia Negra percorreu 13 estados brasileiros, trazendo à tona a presença negra na floresta. Reconhecida por seu trabalho, foi indicada ao Prêmio PIPA em 2021 e, em 2023, participou da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, no Sesc Belenzinho, uma das maiores mostras de artistas negros do país.

Dona Úrsula Maloney, Porto Velho, 2016

Como a fotografia chegou até você e como ela se relaciona com o seu reconhecimento como pessoa negra?

Marcela Bonfim: A fotografia chegou até mim quando comecei a me perceber sendo olhada, especialmente em contextos como a escola, a rua e a vizinhança. Para uma pessoa negra no Brasil, essa relação com a imagem é muito marcada por questões raciais. Desde cedo, somos apresentados à ideia de “não caber” no espaço ou de sermos vistos sob perspectivas limitadoras. A imagem negra, para mim, sempre foi algo que precisava ser desconstruída e remontada.

Quando cheguei em Rondônia para buscar meu primeiro emprego como economista, percebi que havia uma atmosfera fotográfica diferente aqui. Esse foi o ponto de partida para uma nova relação com minha própria imagem. Identifiquei-me como uma mulher negra recém-chegada, e a terra, com suas raízes históricas e culturais, me ajudou a criar uma consciência visual. Hoje, vejo a fotografia como uma ferramenta de resistência, algo que me permite entender e transformar a narrativa em torno da negritude.

No seu TEDx, você menciona que, quando se formou em economia, achava que isso era o centro do mundo. Como essa formação influenciou sua transição para a fotografia e a escolha dos temas que aborda?

MB: Minha formação em Economia me proporcionou um olhar crítico sobre as estruturas sociais e econômicas. No início, eu via a economia como o centro do mundo, mas percebi que esse campo não era capaz de abranger a complexidade das questões raciais e sociais que eu vivia. A economia formalizada que aprendi era excludente e não refletia a realidade da maioria das pessoas. Ao trabalhar como economista e vivenciar esses conflitos, comecei a enxergar a fotografia como uma forma de preencher essas lacunas, trazendo à tona histórias invisibilizadas.

Em Rondônia, comecei a entender que a imagem é um elemento econômico — um capital essencial que carrega informações, valores e histórias. A transição para a fotografia foi, na verdade, uma expansão do que eu já fazia na economia: questionar, refletir e construir novos significados. Esse olhar me levou a escolher temas que conectam visualidade, identidade e as desigualdades que atravessam o plano racial.

Mãos são mãos, Quilombo de Pedras Negras, 2016

O que a inspirou a criar o projeto Amazônia Negra e a explorar esta presença na Amazônia, reforçando a negritude da região?

MB: A inspiração para o projeto Amazônia Negra veio de uma pergunta aparentemente simples, mas muito reveladora: “Tem negro na Amazônia?” Essa provocação me levou a mergulhar nas histórias das comunidades negras da região, que muitas vezes são apagadas ou negligenciadas. Descobri que a Amazônia não é apenas verde, mas também profundamente negra, com uma herança cultural e histórica riquíssima.

O projeto nasceu desse desejo de mostrar que as populações negras, como os afro-caribenhos e barbadianos, desempenharam papeis fundamentais na construção da Amazônia. Em Rondônia, por exemplo, os barbadianos chegaram para trabalhar em empreendimentos estrangeiros, como o projeto da ferrovia Madeira-Mamoré, e enfrentaram uma mata inóspita e uma sociedade marcada pelo racismo. Ainda assim, tornaram-se referência para outros negros e ajudaram a construir cidades e serviços essenciais. Amazônia Negra é minha forma de honrar essas histórias e reforçar que a negritude amazônica existe e resiste.

Em sua trajetória, você também trabalhou com populações reclusas em penitenciárias. Como sua produção fotográfica se conecta com essas experiências e com essa população?

MB: Trabalhar em penitenciárias foi uma experiência transformadora. Entrei nesses espaços como voluntária e participei de projetos como o teatro prisional Bizarros. Esse projeto era muito mais do que um espetáculo: era uma metodologia que lidava com as feridas e histórias de vida das pessoas reclusas. Muitos desses homens eram negros, e suas histórias ecoavam muitas vezes a minha. O presídio me ensinou a olhar para a fotografia de outra forma. Aprendi que nem toda imagem precisa ser clicada; às vezes, contar uma imagem é mais poderoso.

A conexão com essas populações se deu pela escuta e pela empatia. No presídio, percebi que a imagem não é só estética; ela carrega uma narrativa política e social. Minha fotografia busca refletir essa realidade, mostrando as prisões — tanto físicas quanto simbólicas — que muitos negros enfrentam diariamente.

Dona Socorro, Porto Velho, 2016

Sua mudança de São Paulo para Porto Velho, em Rondônia, foi um deslocamento incomum no Brasil. Como essa experiência transformou seu olhar fotográfico?

MB: Foi um deslocamento necessário, embora não planejado inicialmente. São Paulo, com seu excesso de concreto e ritmo acelerado, me restringia. Em Rondônia, encontrei espaço para respirar, criar e me conectar com minhas raízes. Foi aqui que comecei a entender minha imagem como parte de um todo maior.

Rondônia me deu a oportunidade de construir uma narrativa visual que dignifica as margens. Passei a viver em uma comunidade urbana à beira do rio Madeira, onde aprendi a olhar para o território e suas histórias de forma mais afetiva. Essa mudança transformou meu olhar fotográfico, ajudando-me a criar imagens que não apenas retratam, mas também questionam e constroem novas possibilidades de pertencimento.

Quais os principais desafios que você enfrentou ao retratar comunidades invisibilizadas e como lidou com essas dificuldades?

MB: São os mesmos de viver em uma comunidade invisibilizada: a dificuldade de se enxergar como parte de algo. Muitas vezes, retratar essas comunidades exige um esforço para desconstruir estereótipos e evitar reproduzir imagens que perpetuem o racismo ou a exclusão. Lidei com essas dificuldades me aproximando das histórias de forma sensível, sem objetificar as pessoas. Busquei construir relações de afeto e pertencimento, valorizando as narrativas e deixando que os próprios sujeitos contassem suas histórias.

Jesuá Johnson, Porto Velho, 2016

De que maneira você acredita que o seu projeto contribui para debates sobre racismo, história e representação no Brasil?

MB: O projeto Amazônia Negra é uma tentativa de confrontar o apagamento histórico das populações negras, especialmente em regiões como a Amazônia, onde o protagonismo dessas comunidades é frequentemente ignorado. Ele contribui para debates sobre racismo, história e representação ao recuperar narrativas negligenciadas e dar visibilidade a populações que, por muito tempo, foram colocadas à margem.

Através da fotografia e das histórias que registro, busco questionar a monocultura visual que costuma associar a Amazônia apenas ao verde e à biodiversidade, apagando sua riqueza humana e cultural. Minha lente tenta capturar a ancestralidade, a resistência e a identidade que fazem parte do cotidiano das comunidades negras na região. Retratar o impacto histórico de populações como os barbadianos, que ajudaram a construir cidades e serviços essenciais em Rondônia, é também uma forma de desafiar as noções limitantes de pertencimento e cidadania.

Além disso, acredito que meu trabalho provoca reflexões sobre como a negritude é percebida e representada no Brasil. É um convite a repensar nossas narrativas históricas e sociais, ampliando o debate sobre racismo estrutural e sobre a importância de incluir essas histórias nas construções oficiais da identidade brasileira.

Os afro-caribenhos, barbadianos e ‘mamoré’ são populações residentes da Amazônia. Como elas se entrelaçam na sua fotografia e na construção da narrativa do projeto?

MB: Os barbadianos, como parte das populações afro-caribenhas, desempenharam papeis centrais na história de Rondônia e da Amazônia como um todo. Eles chegaram ao Brasil no início do século 20, atraídos para trabalhar em projetos estrangeiros, como a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Vindos de Barbados e de outras ilhas do Caribe, eram negros colonizados pelos ingleses e traziam consigo uma bagagem cultural e técnica que os diferenciava. Por exemplo, ocupavam funções técnicas como operadores de telégrafos — algo raro para negros naquela época —, o que causava rupturas nos estigmas raciais vigentes.

Esses barbadianos enfrentaram a floresta amazônica, o isolamento e o racismo, mas deixaram um legado que moldou as comunidades locais. Suas contribuições ajudaram a construir cidades, serviços e infraestrutura, ao mesmo tempo que criavam novas identidades e laços comunitários na região. Eles se tornaram um símbolo de resistência e referência para outras populações negras. Por essa razão, minha fotografia busca honrar e visibilizar essas histórias. Quero mostrar como a presença negra na Amazônia, frequentemente apagada, é rica, diversa e profundamente enraizada na construção da região.

Além disso, essa busca pelas histórias afro-caribenhas me levou a reflexões mais pessoais. Como Marcela, penso constantemente sobre a ausência de uma árvore genealógica segura para a maioria das pessoas negras no Brasil. Para mim, é comovente e transformador encontrar traços dessas famílias, como os Johnson, Choca e Malone, que me fazem pensar: “Essa pessoa tem o rosto da minha avó, do meu avô, de um primo.” Essa identificação visual se transforma em um afago, em um afeto que preenche parte do vazio deixado pela destruição das genealogias negras devido à escravidão e ao racismo.

Acredito que, ao fotografar e contar essas histórias, estou ajudando a reconstruir uma árvore genealógica coletiva, não apenas para mim, mas para muitas pessoas negras que compartilham dessa experiência de busca e reconstrução. Essa prática fotográfica vai além da estética; é um gesto político e afetivo, um ato de resistência contra séculos de apagamento. Minha fotografia é uma forma de costurar os pedaços de uma história que foi fragmentada, resgatando a dignidade e a memória dessas populações.

Os afro-caribenhos e barbadianos não são apenas um capítulo na história de Rondônia; eles são um pilar na construção do que a região é hoje. E, ao conectar essas narrativas à minha própria trajetória e às de tantas outras pessoas, busco criar um espaço de pertencimento, memória e celebração da negritude amazônica.

Madeira de dentro, madeira de fora

Como a música que você escreve e canta se conecta com o seu trabalho fotográfico, especialmente nos temas de identidade, ancestralidade e resistência do projeto Amazônia Negra?

MB: A música e a fotografia caminham juntas no meu trabalho, funcionando como extensões da mesma narrativa. Enquanto a fotografia capta o visual, a música traduz as emoções, os sons e os silêncios que compõem a vida das comunidades que retrato. A música permite que eu expresse o que às vezes é difícil de capturar em imagens, especialmente quando se trata de identidade, ancestralidade e resistência.

Ao compor e cantar, uso a música como uma ferramenta pedagógica, um meio de contar histórias e conectar as pessoas com suas próprias raízes. Muitos dos temas que exploro musicalmente, como a resistência negra e a ancestralidade amazônica, dialogam diretamente com as imagens que produzo.

A música também é uma forma de celebrar a memória coletiva das comunidades que retrato. Ela me permite criar uma ponte entre o passado e o presente, conectando as histórias de resistência dos barbadianos e outros grupos afro-amazônicos com os desafios e triunfos da negritude contemporânea na região. Para mim, a música e a fotografia juntas ajudam a criar uma narrativa mais completa, que vai além do visual e atinge o emocional.

Como você vê o papel da fotografia em combater a ideia de um “corpo-lugar sem cabeça” frequentemente associada à Amazônia? Que tipo de imagens você busca criar para revelar as riquezas e os interesses desses territórios?

MB: A fotografia tem um papel crucial em desconstruir a ideia de que a Amazônia é apenas um “corpo-lugar sem cabeça”, uma região sem protagonismo ou produção intelectual. Historicamente, a Amazônia foi tratada como um espaço de exploração, um lugar que existe apenas para ser usado, sem reconhecer a riqueza das culturas e das pessoas que habitam o território. Minha fotografia busca reverter essa narrativa, mostrando que a Amazônia é, acima de tudo, um espaço de resistência, criação e pensamento.

Procuro criar imagens que revelam a profundidade das histórias humanas da região, destacando o papel das comunidades negras, indígenas e ribeirinhas na construção da identidade amazônica. São imagens que vão além do óbvio, buscando capturar a força, a resiliência e a beleza desses corpos e territórios. Quero que minhas fotografias mostrem que este território não é apenas um espaço físico, mas um lugar de memória, cultura e luta. Acredito que essas imagens ajudam a desafiar os estigmas associados à região, revelando as complexidades e os interesses políticos, sociais e econômicos que a envolvem. Elas também convidam o espectador a refletir sobre seu papel nessa dinâmica, incentivando uma visão mais humana e conectada da Amazônia. Meu objetivo é contribuir para uma narrativa que respeite e celebre a riqueza das comunidades que dão vida a esse território. ///

Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como Folha de S.Paulo, Estadão, TV Cultura, UOL e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.

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