Revista ZUM 27

Álbum de desesquecimentos

Mayara Ferrão & Fernanda Silva e Sousa Publicado em: 6 de janeiro de 2025

O romance Amada, da escritora Toni Morrison, publicado em 1987, logo se tornou um marco na representação literária da experiência subjetiva de homens e mulheres negras durante e após a escravidão nos Estados Unidos. Diante do fascínio e terror que animam a trama de Sethe, uma escravizada fugitiva em busca de livrar os filhos de uma vida de opressão e trabalhos forçados, a ponto de cometer um infanticídio, há um personagem menor, que geralmente não recebe muita atenção: Seiso, escravizado e companheiro de eito de Paul D – protagonista do livro ao lado de Sethe –, descrito como um “maluco”. Qual o motivo da loucura de Seiso? Sua insistência no amor em meio a um sistema brutal. Ele é apaixonado por uma mulher que vive a léguas de distância, chamada na obra apenas de Mulher dos Cinquenta Quilômetros.

“Uma vez, ele planejou minuto a minuto uma viagem de mais de cinquenta quilômetros para ver uma mulher. Partiu num sábado quando a lua estava no lugar em que ele queria que estivesse, chegou à cabana dela antes da igreja no domingo e só teve tempo para dizer bom-dia antes de começar a viagem de volta para comparecer ao campo a tempo na segunda de manhã. Caminhou dezessete horas, sentou por uma hora, virou e andou mais dezessete horas.”

Perigoso, fugaz, arrebatador, o amor era a loucura de Seiso, vivido em breves instantes e sem perspectiva de durar, mas pelo qual valia a pena literalmente caminhar. Indesejável e sempre violável, na medida em que pessoas escravizadas podiam ser vendidas e separadas a qualquer momento, o amor só podia ser fugidio e incapturável, uma pequena fresta por onde se podia vislumbrar o gosto de outra vida possível. E se essa outra vida, no caso de uma mulher negra, fosse sonhada ao lado de outra mulher como ela? Quantos quilômetros seriam necessários percorrer para ver o sorriso dela anunciando um amanhã diferente? Com seu Álbum de desesquecimentos (2024), uma série de fotografias geradas por inteligência artificial (IA) de mulheres negras e originárias em momentos de afeto, a artista visual soteropolitana Mayara Ferrão parece nos dizer que é hora de descansar nossos pés e contemplar cenas de amor que nem sequer éramos capazes de imaginar. Não importa se atravessamos um rio, desbravamos uma mata ou caminhamos longamente numa estrada para encontrar a amada. O que importa é fazer durar instantes de amor e alegria que interrompem e sabotam a exploração contínua de corpos negros e nos permitem imaginar vidas inteiras. Vidas amadas.

Conhecida por seu trabalho como ilustradora e diretora de arte, Ferrão tem se dedicado a uma investigação que alia pesquisa de acervo em torno da escravidão e manipulação e geração de imagens por meio da IA. O intuito, segundo ela, é construir narrativas ficcionais de trocas de afeto entre mulheres negras e reimaginar representações coloniais a partir de um exercício especulativo que visa a pensar: como seria se essas mulheres pudessem ter vivido seus amores no passado? Porém, a própria pergunta ganha uma resposta ousada em seu trabalho: essas mulheres viveram e amaram, mas seus amores se tornaram inimagináveis em um mundo marcado pela supremacia branca cis-heteronormativa. De acordo com a escritora estadunidense Saidiya Hartman, em seu ensaio “Vênus em dois atos” (2008), nos deparamos muitas vezes com documentos históricos em torno de mulheres escravizadas “que não produzem nenhuma imagem da vida cotidiana, nenhum caminho para seus pensamentos, nenhum vislumbre da vulnerabilidade de seu rosto”. Não há tampouco um caminho para seus sorrisos negros e gargalhadas, inclusive no imediato pós-abolição, quando a população negra foi vista por muito tempo quase unicamente sob a chave da anomia e da marginalização social, até que a história social da escravidão e ativistas e intelectuais negros desafiassem essa visão. Assim, com a arte de Mayara Ferrão, um outro caminho se abre para o passado, e esse caminho é o amor – um amor vulnerável, belo, singelo, vivo, que, para existir em nossa imaginação, precisa antes ser narrado.

Tudo começa, como explica Ferrão, com um texto – ou prompt – no qual ela descreve a imagem que deseja que a ia produza. Essa instrução é precedida por uma pesquisa estética e de arquivo para que as imagens geradas – paisagens, roupas, objetos, adereços – tenham verossimilhança histórica com o passado reimaginado pela via do amor entre mulheres negras. Frequentemente, a precisão é tamanha que parece que estamos diante de uma fotografia “real” – isto é, feita na época, e não no presente. Entretanto, o grau de acuidade histórica do retrato se torna uma questão menor quando o que está em jogo é o que Ferrão faz com essas imagens. Ao criar o que chama de “álbum de desesquecimentos”, conferindo uma moldura às fotografias, produzindo cartões-postais, escrevendo declarações, cartas e poemas para os arquivos inventados, ela também constrói uma linguagem do amor para essa nova iconografia, inserindo-a numa tessitura verbal de afeto. Pensando no lugar caro atribuído à fotografia, por muito tempo inacessível e custosa, no seio de famílias negras, a criação de um álbum se inscreve como um gesto de cuidado por parte daqueles que querem que essas imagens desesquecidas perdurem. Elas permanecem, assim, como um arquivo vivo em que reencenamos, ao posar no presente com nossos amores, instantes inimagináveis de um passado desejado – e, por que não, acontecido, mas que nunca coube em qualquer documento histórico.

Para desesquecer o amor entre/das mulheres negras, é preciso também construir novas recordações do que jamais pensávamos que poderia ser lembrado – essa é uma das sensações que o trabalho de Ferrão suscita. Se recordar é viver, as lembranças são também o que nos mantém vivos, no limiar entre o que conseguimos lembrar e o que precisamos imaginar para dar conta de recordar o que foi vivido. No caso da história das mulheres negras, o que não faltam são retratos desfigurados e lacunas para sempre incompletas. Um nome que não se sabe de uma escravizada é um nome que não se sabe, um retrato de amor de duas mulheres negras que não existe é um retrato que não existe. Nada pode desfazer essa cruel materialidade. É, portanto, enfrentando o caráter incontornável da perda e da ausência que o trabalho de Ferrão não parece querer preencher lacunas irreparáveis, mas oferecer lampejos e vislumbres do que poderiam ser vidas inteiras, livres, belas e amadas, como quem deseja oferecer uma reparação amorosa e imaterial a vidas ancestrais – como vemos em seu filme Lua de mel (2024), no qual diferentes casais de mulheres negras e originárias vivem um amor que parecia sem lugar na história.

Ferrão produz ainda uma iconografia para outra forma de amor, o “amor grosso” – como nomearia Toni Morrison em Amada – das mulheres negras por seus filhos, tantas vezes desejados e igualmente delas separados, mulheres para quem a luta pela maternidade inspirava projetos de liberdade. Em sua arte, também são desesquecidas mulheres negras grávidas, cujas mãos no ventre e os semblantes serenos nos permitem imaginar as palavras que sussurravam e as canções que entoavam para embalar o futuro dentro de si. São essas mulheres – e não a IA – que parecem parir todos os desesquecimentos que o trabalho de Ferrão promove, pois já dizia a escritora Audre Lorde: “A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: ‘Sinto, logo posso ser livre’”.

Ao nos fazer sentir um amor não documentado, por meio da IA, a arte de Ferrão amplia nossa capacidade de imaginar não apenas um futuro mas também um passado livre, uma liberdade que pode ter sido vivida num “bom-dia” após uma longa caminhada ou em carícias trocadas por poucos instantes, mas que sustentavam a vida em meio à violência. Num contexto em que tanto se discute o viés racista dos sistemas de IA, com algoritmos codificados, em sua maioria, por homens brancos, Ferrão não está sozinha ao se apropriar de uma tecnologia que não foi pensada para e por pessoas negras. Pioneira na combinação entre arte e tecnologia, a artista afro-americana Stephanie Dinkins tem explorado os limites e as possibilidades da IA na produção de imagens de mulheres negras, imaginando um futuro tecnológico com protagonismo negro e feminino. “O que a IA precisa de você?”, pergunta Dinkins. Para Mayara Ferrão, a resposta talvez seja: “Meu amor pelas e para as mulheres negras”. ///

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Amada, de Toni Morrison (Companhia das Letras, 2018)
“Vênus em dois atos”, de Saidiya Hartman, no livro Pensamento negro radical: antologia de ensaios (Crocodilo e n-1, 2021)
“A poesia não é um luxo”, de Audre Lorde, no livro Irmã outsider (Autêntica, 2019)
Stephanie Dinkins: On Love & Data, org. Srimoyee Mitra (University of Michigan Press, 2024)

Fernanda Silva e Sousa (São Paulo, SP, 1993) é professora e crítica literária. Doutora em letras pela USP. Traduziu textos de Saidiya Hartman, Denise Ferreira da Silva e Cedric Robinson. Vencedora do 6o Concurso de Ensaísmo serrote, do IMS, em 2023.

Mayara Ferrão (Salvador, BA, 1993) é artista visual e cineasta. Cursa artes visuais na UFBA. Dirigiu o filme Orixás Center (2021), premiado na 5a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema.

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