Ensaios

Vizinhança

Marcelo Masagão Publicado em: 26 de setembro de 2024

A historiadora da arte Gertrud Bing (1892-1964), conjuntamente com Aby Warburg (1866-1929), criou o conceito da “política de boa vizinhança entre os livros”. Estes deveriam estar dispostos na biblioteca por conexões simbólicas e/ou estéticas e não pela ordem alfabética dos autores ou época histórica em que foram produzidos. Se estamos falando de encontro/confronto simbólico, estamos falando de montagem, conceito intensamente desenvolvido no projeto do Atlas Mnemósine, que dispõe em grandes painéis uma série de imagens lado a lado possibilitando assim singulares conexões entre elas.

Estudioso da figurativa linguagem oriental, o cineasta Serguei Eisenstein (1898-1948) descrevia dois tipos de hieróglifos: os descritivos e os copulativos. Os descritivos eram imagens que por si relatavam um objeto ou fato, os copulativos eram formados pela fusão de dois hieróglifos descritivos, o ideograma. Por exemplo, a figura de uma faca + a figura de um coração = tristeza; água + olho = chorar; orelha + porta = ouvir; cachorro + boca = latir.

Mas a imagem do latido do cachorro é produzida no cérebro do leitor, não está desenhada ou inscrita em nenhum lugar. “Pela combinação de duas descrições é obtida a representação de algo graficamente indescritível. Mas isso é montagem, é exatamente o que fazemos no cinema”, dizia Eisenstein. Singular e picante essa ideia da “cópula simbólica” para descrever o confronto dos planos cinemáticos se avizinhando no decorrer do tempo da narrativa audiovisual.

Não é incomum nossos polegares ficarem muito entediados de tanto apertar o controle remoto na busca de um bom filme nas plataformas de streaming. De fato, a política de vizinhança nesses depósitos de filmes é muito ruim. Num dia desses abandonei o controle remoto e me dirigi até o armário onde se encontram empoeirados DVDs. A disposição destes DVDs sempre seguiu a lógica do “empilha aí”. Essa desordem dificulta a busca dos filmes, mas possibilita acasos interessantes. Neste dia, achei um BOX com todos os DVDs de Hitchcock (1899-1980) lado a lado com o DVD do emblemático filme de Dziga Viértov (1896-1954): O Homem da Câmera. Na hora me veio a frase de Gertrud Bing e me questionei se havia ali alguma possibilidade de boa vizinhança entre Hitchcock e Viértov?

Encontros improváveis, boas surpresas.

Se classificarmos os neurônios em três categorias: 220, 110 ou 12 volts, sendo os de 12 mais dedicados à contemplação, os de 110 fazedores das ordinárias tarefas e os de 220 os mais alucinados, concluiremos serem esses últimos os neurônios que se movem quando visualizamos os filmes de Viértov e Hitchcock. Há uma conexão entre as sequências de suspense de Hitchcock e a edição picotada e acelerada dos filmes de Viértov.

Em diversas sequências de seus filmes, Hitchcock usa muito o recurso da escola russa de edição picotada e acelerada, com diversos planos sob vários pontos de vista inseridos em curtos espaços de tempo. Por vezes as referências são explícitas, como os óculos estilhaçados da escadaria de Odessa do filme Encouraçado Potemkin e a sequência onde dezenas de crianças correm desesperadas do ataque dos agressivos pássaros, que em pouco mais de 2 minutos tem 54 cortes.

Frame de Os Pássaros – Alfred Hitchcock
Frame de Encouraçado Potemkin – Serguei Eisenstein

A graça de fazer esse exercício de vizinhança é que as camadas de sentido de um filme vão se ampliando conforme o vizinho escolhido. Temos assim um vigoroso fluxo de tripla alteridade: entre os vizinhos confrontados e o humano promotor desses encontros.

Aleksander Sukurov (1951) e Fellini (1920-1993), por exemplo, podem estar lado a lado com seus graciosos exageros barrocos. Se vejo o filme de Theo Angelopoulos (1935-2012) ou Wong Kar-Wai (1958), são acionados os caudalosos neurônios de 12 volts, destinados à contemplação.

Outro pensador do cinema russo, chamado Lev Kulechov (1899-1970), criou uma teoria segundo a qual a mesma imagem do close de um homem confrontada com diferentes situações gera diferentes sensações no espectador.

Vejamos o pequeno vídeo que Kulechov criou, para comprovar sua tese:

Agora veremos uma fala de Hitchcock sobre o Efeito Kulechov:

No efeito Kulechov ocorre o mesmo que com os hieróglifos copulativos. É do encontro das imagens que conceitos são produzidos no corpo do espectador e não nas imagens em si. Podemos concluir então que não existe identidade ou essência nas imagens. Ou, se existe, ela é múltipla, passageira e mutante. A cada novo exercício de vizinhança realizado, o filme pode adquirir novas camadas de sentido. Se 70% de nosso corpo é água, o pensamento é líquido, sempre em movência e criando novas e provisórias formas.

Dito de outra forma, um vizinho não existe sem outro. Aliás a palavra vizinho já nos indica que temos no mínimo dois agentes neste jogo da identidade/diferença.

Sempre achei uma grande besteira os decretos que anunciam o fim do livro, do teatro ou do cinema, são linguagens em constante mutação numa espécie de antropofagia coletiva e permanente entre elas.

O dicionário Houaiss assim define a palavra suspense: “qualquer situação em que um acontecimento cuja explicação, continuação ou desfecho são aguardados com grande impaciência e inquietude; um estado do que está suspenso… que flutua na parte alta, que não se completou, que está num equilíbrio instável.”

Podemos diferenciar dois tipos de suspense. Em Hitchcock e Eisenstein o suspense tem um endereço certo: a resolução de um crime ou de um conflito social. É o jogo da dramaturgia clássica. No caso de Viértov é a dramaturgia estética de um mosaico de formas geométricas que vão se sucedendo na tela numa sucessão de pequenas tensões e surpresas visuais e sonoras.

Em Viértov ficamos num estado de suspensão. Em Hitchcock e Eisenstein no suspense.

Viértov faz uma ode ao acaso, Eisenstein e Hitchcock a um caso (a ser solucionado).

O Homem da Câmera desenvolveu a teoria do CINEOLHO, na qual defendia a ideia de que a câmera de filmar nos possibilita captar imagens de uma forma muito mais potente que o olho humano, imobilizado e preso ao corpo. Dizia ele: “Liberto-me a partir de hoje e para sempre da imobilidade humana, estou em constante movimento, eu me aproximo e me afasto de objetos, rastejo sob eles, os escavo, me movo ao lado de um cavalo que corre… O cine-olho vive e move-se no tempo e no espaço, ele recolhe e fixa as impressões, não a maneira humana, mas de um modo completamente diferente.” Em diversos momentos, durante as filmagens, ele coloca a vida do operador de câmera, que era seu irmão, em risco na busca da captura de pontos de vista singulares e ousados.


Frame de O Homem da Câmera – Dziga Viértov

“O que se exige na montagem é ser um compêndio geométrico do movimento mediante a alternância cativante das imagens. O kinokismo é a arte de organizar os movimentos necessários das coisas no espaço, graças a utilização de um conjunto artístico rítmico, conforme às propriedades do material e do ritmo interior de cada coisa”, dizia ele.

Viértov nos envolve e seduz pela geometria das coisas do mundo, por vezes explora as tensões dentro de um mesmo plano, justapondo imagens e dando outro sentido para a perspectiva. O mesmo recurso usado pelos seus contemporâneos pintores Cubistas.

A todo momento insere cenas do processo de produção do filme – seu irmão filmando e sua mulher na mesa de montagem, sugerindo assim uma indiferenciação entre sujeito e objeto (entre arte e vida). O cinegrafista é parte integrante da engrenagem da cidade, assim como o motorista do bonde, a montadora do filme e o espectador no cinema.

TODO MUNDO É A CIDADE

Vejamos outro pequeno trecho do Homem da Câmera.

Nesse pequeno trecho Viértov silencia a música e transforma seu filme em um Foto-Filme e assim explicita o seu processo da montagem. Com a altiva tesoura, sua mulher picota e picota negativos em busca da política de boa vizinhança. Vejamos a foto desta prateleira com pequenos pedaços de negativos e papeletes com inscrições de seu conteúdo para execução da montagem.

Frame de O Homem da Câmera – Dziga Viértov

Essa prateleira me remete de imediato a outra imagem:

Painel 32, do Atlas Mnemosine de Aby Warburg

Se no caso da prateleira de Viértov temos um ritual de passagem do processo de montagem, em Aby Warburg as imagens estão ali dispostas ao observador para conectá-las na sua diversidade. Tudo ao mesmo tempo, e agora, como diz a música dos Titãs. Os painéis nos propõem uma espécie de montagem permanente, já que todas as imagens estão dispostas no mesmo tempo e espaço. Diferentemente de um filme em que as imagens se sucedem no decorrer da narrativa.

Chama atenção o fato de termos, não duas, mas um mosaico de imagens em confronto. Imagens de diversos lugares e épocas históricas. São painéis que convocam o espectador a ser um montador, na busca de decifrar as relações de vizinhança ali existentes, que podem ser de ordem formal, geométrica, temática, gestual. Existe ali um jogo de pequenas tensões, encontros e desencontros entre as imagens: singulares elipses temporais e espaciais. No Painel 32, algumas imagens destoam, como a do tabuleiro xadrez, da casa ou dos dois cálices.

Na verdade, essas duas imagens estão dentro da “temática geral” deste painel: a dança, mas acrescentam camadas de sentido ao tema. Assim, o tabuleiro de xadrez faz uma referência aos rituais de guerras dos mouros presentes em várias imagens deste painel. Em outras, temos referências às danças da Rainha de Maio, e seus rituais do amor e fertilidade. Curiosamente há uma forte similaridade nos gestos dos rituais de Amor e Guerra. Se na imagem da Rainha de Maio ela carrega em sua mão uma maçã representando a fertilidade, em outra imagem temos uma paródia bem-humorada de homens dançando ao redor de uma mulher segurando linguiças.

Imagem do Painel 32: Dança Mourisca ao redor da Rainha de Maio, 1500
Imagem do Painel 32: Dança Mourisca, Daniel Hopfer, séc. XVI

Muito além dos hieróglifos copulativos, nos painéis de Warburg temos uma intensa orgia imagética. São encontros densos e frágeis ao mesmo tempo, um jogo de aproximação e afastamento, tendem à anarquia, à descentralização, mas estão em uma rede, não há uma verdade ali, mas uma miríade de pequenos e grandes saberes, perguntas ou por vezes pensamentos difíceis de serem expressos em palavras.

Não é mais ou menos o que ocorre na mesa de edição do analista?

Divã de Sigmund Freud

Ou na mesa de edição do analisando?



Corta, corta, corta!

palavras estalam no pensamento
– mas onde está o pensamento
senão nas coisas mesmas –
o pensamento é a palavra
a palavra é o pensamento
e sua carne:
o toque liso na porcelana
a temperatura branca
da pedra os olhos de gude do gato
e até a palavra amor tem uma
forma um rosto um gosto.
o pensamento não mora no corpo
não tem casa própria não tem nem
cor. é selvagem e se domestica mas
é essencialmente selvagem.
a palavra não mora no papel nem
vive só de som. a palavra é tão
coletiva quanto particular.
Esse poema não é mais meu
do que seu. este poema vai
desaparecer.

Laura Liuzzi (Poema do desaparecimento)

E para finalizar essa fala vou lhes descrever algumas estratégias de pesquisa que adotei na edição de meus filmes, adaptáveis para qualquer tipo de produção intelectual ou artística e que me ajudaram bastante a conhecer melhor os bichos que estava criando.

Minha metodologia tem um nome: Inteligências artesanais, anárquicas, digitais e afeto temporais. Artesanais porque elas só existem se o humano resolver trabalhar, anárquicas porque neste regime temos uma maior ocorrência de acasos e encontros fortuitos. Digitais porque atualmente temos ferramentas incríveis para sistematizar dados e ideias. Por fim, afeto temporais, pois a memória é a coisa mais linda, difusa e fugidia que existe.

Vejamos esse trecho do filme Nós que aqui estamos por vós esperamos e conto como cheguei nessa associação:

Nós que aqui estamos por vós esperamos é um filme de montagem, ou seja, um filme que trabalhei com imagens de terceiros. Vi uma enorme quantidade de filmes, documentários e livros que narram o século 20. Visualizava um filme, escolhia trechos sempre com o olfato ligado, quero dizer, podia não ter um motivo específico, mas se me chamasse a atenção, selecionava. Cada arquivo era nomeado de forma bem extensa usando a técnica da escrita automática dos dadaístas, ou seja: “não julgue e escreva”.

Desse jeito o arquivo do Garrincha driblando ficou assim:

garrincha-PeB-perna-torta-pinga-alegria-bola-genio-dança-samba-ginga- elza-musica-jogo-futebol-crise-azul-leve-sexta-feira-delicia.mov

O programa de edição tinha um campo de BUSCA dos arquivos pelo nome. Quando eu inseri a palavra PERNA e dei o comando BUSCAR, apareceram os arquivos do Garrincha, Fred Astaire e um monte de outros nos quais havia inserido o nome PERNA. Por exemplo, ao lado de Fred e Garrincha apareceu um arquivo de uma perna esbugalhada e deslocada do corpo de um soldado americano em algum campo de batalha, durante a guerra do Vietnã.

PERNAS

Frame de Garrincha Alegria do Povo – João Pedro de Andrade (esq.) e fotografia da Guerra do Vietnã (dir.)

   

Frame de Ritmo Louco – George Stevens

A palavra sexta-feira, por exemplo, tinha um código próprio, não relacionado aos dias da semana, mas uma homenagem que prestava ao personagem do livro Sexta-feira e os limbos do pacífico, de Michel Tournier.

Se inserisse SEXTA FEIRA na Busca apareceria o Garrincha, uma obra do artista plástico Leonilson e a dançarina Josephine Baker – entre outros.

Frame de Garrincha Alegria do Povo – João Pedro de Andrade (esq.) e Josephine Baker (dir.)
Ninguém – Leonilson

Em cada um desses fotogramas temos o registro de um tempo e um espaço e as relações de vizinhança se dão no confronto destas elipses espaço/temporais.

Nessa outra sequência do Nós que… isso se dá de forma explícita:

Duas tentativas de voo em vão: uma em 1911 e outra em 1986.

Outro método que usei em um momento que já tinha a primeira versão da montagem do filme era produzir pequenas fotos das sequências e colocá-las em cima da mesa e ficar brincando de troca-troca. Bota aqui, bota ali e acolá e vai montando o filme, achando a melhor ordenação das sequências.

Sequências do filme Otávio e as Letras

Outra forma de conhecer melhor seu filme é criar um parâmetro externo e confrontá-lo com cada uma das sequências do filme: no gráfico abaixo os parâmetros escolhidos foram sonho e realidade.

Sequências – Sonho / Realidade

Mas já fiz esse exercício com outros parâmetros: Masculino ou Feminino, Tenso ou Calmo, ou definir as sequência a partir das formas geométricas: Quadrado, Triângulo ou Círculo.

Vamos ver agora uma sequência do filme Ato, Atalho e Vento:

Ai, temos um jogo de plano e contraplano, realizados em espaço e tempos diversos, formas circulares que caminham para cá e para lá num jogo fugidio de aparecer e sumir. Importante ressaltar que no Ato, Atalho e Vento a palavra escrita foi abolida, diferentemente do Nós que… onde a palavra ocupava uma parte essencial da narrativa.

Às vezes a palavra até se intrometia no jogo do plano e contraplano.

Matéria jornalística Gaumont

Sem palavra a dubiedade das imagens fica muito potencializada.

A própria sinopse do filme já indicava isso. No caso do Nós que… era assim: história de pequenos e grandes personagens do século 20.

No Ato, Atalho e Vento a sinopse era: as coisas não saíram como havíamos combinado.

Vejamos nessa outra sequência:

Frame de Fausto – Aleksander Sukurov

Um exemplo de exagero barroco do Sukurov, citado no início deste ensaio.

Frame de Persona – Ingmar Bergman
Frame de Repulsa ao Sexo –  Roman Polanski

Encontros de vizinhança de diversos planos: mesmo gesto facial.

Frame de Persona – Ingmar Bergman
Frame de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – Woody Allen

Tensões e encontros de vizinhança dentro de um mesmo plano.

Frame de As Praias de Agnès – Agnès Varda
Frame de Ritmo Louco – George Stevens

Tensões e encontros de vizinhança dentro de um mesmo plano.

Frames de Sonhos – Akira Kurosawa

Aqui de forma literal o personagem invade o plano.

Como aqui:


Ou aqui:

se percebo uma maçã
essa maçã me constitui:
o cabo levemente envergado
a pele vermelha cheia de sardas
sou eu a maçã agora que ela
entrou no meu mundo sou eu
vermelha arredondada pintada
é meu o seu interior amarelado
o suco que solta da carne esponjosa
as pequenas sementes escondidas
em suas costelas sou eu
a mesma que decide pegar
com as mãos a maçã
e sem descascá-la, feri-la
com os dentes ferir-me
com os dentes e sentir
na língua sua carne
meu suco o som
de seu desaparecimento
a nossa frágil eternidade.

Laura Liuzzi (Poema do desaparecimento)


fim da fala
a fala falha
o falo falha
lugar sem fala!

///

+

Texto a partir de uma fala realizada no IEL – UNICAMP, no evento OUTRARTE em agosto de 2024.

Agradecimentos aos amigos e amigas que acompanharam e contribuíram para esse ensaio: Andrea Masagão (+ que amiga), André Bazzoni, Carolina Junqueira, Diego Penha, Joana Barossi, Nina Leite e Sofia Rodrigues.

Marcelo Masagão (1958) é pesquisador de imagens. Estudou Psicologia e História. Realizou diversas exposições como artista plástico entre elas Adote um Satélite (1989) e Maquinaria (2019). É o criador e curador do Festival do Minuto (1991) e Minuto Escola (2017). Realizou diversos filmes, entre eles: Nós que aqui estamos por vós esperamos (1999) e Ato, Atalho e Vento (2016). Vive e trabalha em Belmonte, Bahia.

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