Na territorialidade da catástrofe
Publicado em: 8 de agosto de 2024Na fotografia datada de 1974, tirada no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), vemos sete homens brancos, todos em pé. A disposição deles é um tanto quanto dispersa: três estão alinhados ao fundo, enquanto os outros ocupam o primeiro plano da imagem, em um meio círculo. Na lateral esquerda, é possível identificar Luiz Fernando Cirne Lima, ministro da Agricultura do governo Médici. No extremo canto direito, há uma parte do antebraço esquerdo do sétimo homem, o restante de seu corpo escapa ao enquadramento. Ninguém olha para a câmera.
Posicionada levemente à esquerda, um pouco atrás de Luiz Fernando Cirne Lima a câmera parece querer integrar-se à roda de conversa, ao construir uma composição de enquadramento que reforça a ação testemunhal acerca da interação daquele seleto grupo. O fotógrafo é o único na cena que não dirige seu olhar para o homem que fala. Sua escolha é por registrar a expressão atenta dos ouvintes silenciosos.
No entanto, uma inversão ocorre: algo que está à margem do enquadramento, um objeto que não era o foco, converte-se no aspecto mais revelador da fotografia e, portanto, no elemento central que irá vertebrar o presente ensaio.
Ao fundo, há um cartaz. A composição do enquadramento não deixa dúvidas de que sua captura foi contingencial, afinal parte das palavras que o compõem estão fora de quadro. Em sua ponta superior há o desenho de um botão de rosa. Logo abaixo, a frase: Até 1964, o Brasil era apenas o país do futuro. E então o futuro chegou. A conclusão da frase é seguida de um novo desenho, dessa vez, a rosa desabrochada.
Observar uma imagem implica, muitas vezes, em ver algo diferente daquilo que o próprio fotógrafo – ou cinegrafista- enxergou no ato do registro. Como nos alerta o filósofo francês Didi-Huberman, as imagens podem sempre testemunhar contra aquele que as tirou. Nesse sentido, cabe a nós não ter medo de olhar. Olhar não como a denotação redutível característica de um regime de transparência, mas, sim, como um esforço contínuo em estabelecer uma relação singular com o próprio tempo. Ao passo que a identificação completa significa a impossibilidade de enxergá-la. Para compreendê-la, é preciso tomar distância, por meio de recortes, escolhas e perspectivas.
Ao assumir esse recuo somos lançados ao paradigma brechtiano: distanciar é historicizar. Nesse sentido, entendo que o trabalho de análise das imagens só é possível mediante o esforço de pô-las em relação à constelação histórica que as produziu.
O fato de o cartaz sangrar para além dos limites do enquadramento, já é, por si só, bastante significativo. A retórica da frase, no entanto, se mostra tão dramática quanto reveladora. Ela contempla a ideia de que, antes do golpe civil-militar, o Brasil era apenas uma promessa fracassada de todo potencial que poderia ser. Com o golpe, essa promessa parece, aos olhos dos militares, tornar-se realidade. A mensagem indica uma fórmula temporal relativamente simples, embora extremamente eficaz. Ela irá permear todo um conjunto de filmes, propagandas e cinejornais da época, a ideia da chegada de novos tempos.
A sobreposição temporal inscrita na frase é central para a mobilização do consenso social que sustentou o imaginário do Brasil Grande. Há, em sua construção, a expressão de uma crença instrumental no projeto desenvolvimentista dos militares enquanto elemento dotado de uma espécie de movimento teleológico que conduziria do passado (atraso) ao futuro (progresso). Ideia reiterada por um dos slogans mais famosos da ditadura militar: esse é um país que vai pra frente. Para eles, o passado é um território a ser superado. Ainda mais grave é o fato de que, na frase em questão, a experiência social e histórica anterior a 1964 é negada, apagada e tratada como um grande desvio. O projeto dos militares impunha apagar o passado, depredar o território, silenciar os opositores e negar o próprio Brasil.
Na fúria por legitimar a narrativa da correção de rota que, nos termos dos golpistas, a “revolução de 1964″ teria resultado, a consequência foi o fortalecimento de símbolos e acessórios preexistentes, aos quais foram atribuídos significados inteiramente novos. Um projeto de lei que visava a alteração do Hino Nacional em 1970, proposto pelo senador Cattete Pinheiro, é um exemplo disso. Segundo a autoridade, a passagem “deitado eternamente em berço esplêndido” revela um imobilismo constitutivo. A alternativa dada: “ativo eternamente, em gesto esplêndido“.
Ainda que não tenha sido aprovado, o projeto de lei é bastante revelador naquilo que se refere ao imaginário da época. De um lado, a superação de uma atitude passiva, na qual, a valorização do novo, do grande e moderno, indicaria uma nova atitude da nação que emerge no pós-64. Portanto, não faria mais sentido representá-la “deitada eternamente”, mas, sim, “ativa eternamente”. De outro lado, é o local no qual a nação estaria deitada: o berço esplêndido. Na nova versão, a natureza exuberante é substituída pelo gesto esplêndido. É a ação que daria o tom na nova versão, a pátria passaria a ser representada por essa imagem.
Essa substituição enunciativa indica o que estaria por vir. A natureza, no Brasil dos militares, não poderia ser representada apartada do projeto desenvolvimentista. Muito pelo contrário, a natureza converte-se no palco onde a ficção do Brasil Grande seria encenada em todo seu vigor. Os principais biomas do Brasil central e setentrional -o Pantanal e o Cerrado – foram afetados, mas foi na Amazônia que a extensão da destruição socioterritorial foi mais desastrosa.
A fantasia de senhorear a selva amazônica é um sonho antigo. Inúmeras empreitadas de ocupação foram realizadas. A maioria falhou categoricamente. Como exemplos, a cidade de Fordlândia e a fatídica construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Monumentais projetos de ocupação demandam estruturas ideológicas à altura de suas empreitadas. O projeto de colonização da Amazônia, durante a ditadura militar, não foi diferente, sustentado por sofisticadas estratégias que celebravam a épica da destruição como signo de progresso. Compreender a maneira como o discurso dos militares é articulado para legitimar o projeto de colonização da região implica em reconhecer uma perturbadora distorção, na qual a destruição da floresta é celebrada como uma das mais belas páginas da história moderna nacional.
O território das florestas tropicais no imaginário moderno sempre esteve associado à ideia de um estado pré-contratual, pré-moderno e selvagem, cujos habitantes eram pouco (ou nada) civilizados. No caso da região amazônica esses paradigmas tornam-se ainda mais radicais, tal como a ânsia por ocupá-la. Um dos slogans mais famosos ligados ao projeto de ocupação da região durante a ditadura “É preciso integrar para não entregar“, reflete a voracidade com a qual o regime militar tomaria a região. Em 1967 são descobertas as jazidas de ferro de Carajás e começa o Projeto Jari, anunciando o que estaria por vir.
Ainda em 1967 é estabelecida a Zona Franca de Manaus. Três anos depois, em 1970, tem início a construção da Transamazônica. Em 1973 o projeto Radar da Amazônia (RADAM) começa a mapear os recursos naturais utilizando tecnologia de radar. Em 1975 começa a construção da usina de Tucuruí. Em 1980 as primeiras pepitas de ouro são encontradas em Serra Pelada. Em 1982 começa a construção da Hidrelétrica de Samuel. Finalmente, em 1985, é inaugurada a usina hidrelétrica de Balbina. Estes são alguns dos projetos estruturais realizados que converteram a região em um imenso canteiro de obras, alterando de maneira definitiva sua paisagem e as relações sociais da região.
A imagem presente na edição especial de 1973 da Revista Manchete é desoladora. A impressão da fotografia ocupa uma página dupla, uma escolha que reitera a grandiosidade da empreitada. Na parte superior, a frase “Aqui vencemos a floresta” atravessa ambas as páginas, redigida em caixa alta na coloração laranja terrosa, semelhante ao tom do solo recém-exposto pelos tratores. À esquerda do início da frase, está escrito “o norte amazônico”, também em caixa alta. No entanto, a fonte é bem menor e ocupa apenas uma pequena parte do canto superior da imagem. Ao centro, vemos a rodovia Transamazônica ainda em construção, rasgando a imagem. Não há asfalto, apenas terra e o maquinário abrindo caminho em meio a selva. A escala das árvores reforça a dimensão do obstáculo. Algumas delas transcendem o limite do enquadramento. Ainda que imensas, essas árvores não são capazes de deter a arrancada do progresso que se impõe na selva virgem.
Há um elemento notável nessa imagem que é a opção pela escrita da frase na terceira pessoa do plural, sugerindo que a construção da Transamazônica, símbolo fundamental da epopeia do Brasil Grande, é resultado do esforço coletivo de toda uma nação que trabalha em prol do desenvolvimento. A destruição da floresta é uma vitória nacional. A imagem e o texto celebram o gesto de violência enquanto manifestação de uma suposta civilidade.
A história escrita pelos militares transformou a ocupação da Amazônia em uma guerra, em que aquilo que está em jogo é uma disputa entre civilização e natureza. Analisar o regime de visibilidade que emerge nesse contexto é compreender a imagem como um dos mecanismos fundamentais para legitimação do projeto de colonização, que tem na conquista do imaginário um estratégico e poderoso território para o avanço da empreitada política militar.
É indiscutível que a ditadura militar brasileira, em sua busca pela construção visual do Brasil Grande, transformou a “destruição” em signo do progresso técnico. Nesse sentido, analisar a constelação visual desse contexto implica compreender o embate acerca do signo da “destruição”. O regime visual oscilava entre o encobrimento da utopia autoritária e das especulações distópicas, que buscavam romper o discurso oficial e a censura, denunciando o caráter ficcional do projeto do Brasil Grande. Assim, a distopia emerge como figuração realista e, portanto, testemunho da devastação, ao revelar o impacto predatório do modelo desenvolvimentista na região.
A terceira imagem que trago para este ensaio é um frame do filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema: uma transa amazônica (1974). O road movie realizado pela dupla de cineastas distancia-se da lógica tradicional do gênero, em que o deslocamento pelo espaço geográfico funciona como uma metáfora para o processo de transformação subjetiva de seus viajantes. Muito pelo contrário, ao percorrer a Transamazônica, a jovem Iracema (interpretada por Edna de Cássia) se dilacera, é devorada e regurgitada em meio à rodovia. Não há uma parada final em sua errância. “Meu destino é correr mundo“, anuncia a protagonista. Sem ponto de chegada, é apenas o esparso vagar que dá o tom de sua ação.
Distante da representação de “mãe” da nação brasileira, como é figurada a protagonista do romance Iracema, de José de Alencar, descrita como “virgem dos lábios de mel e dos cabelos negros como a asa da graúna”, a protagonista de Bodanzky e Senna é uma jovem de 15 anos que se prostitui em troca de carona. Iracema arca com o custo fatal ao deixar sua comunidade próxima aos rios e igarapés para aventurar-se no mundo dito civilizado. Seu “correr mundo” a leva ao encontro de Tião (Paulo César Pereio), e o início de uma jornada de mutilação através da Transamazônica. Quilômetro após quilômetro, à medida que adentramos a rodovia, novas relações sócioterritoriais são desveladas, absolutamente opostas àquelas difundidas pelo discurso ditatorial triunfalista. Testemunhando uma predatória forma de ocupação do território: trabalho em condições análogas a escravidão, queimadas, garimpo ilegal, desmatamento, prostituição infantil, avanço desregulado das fronteiras agrícolas e agrárias. À medida em que os personagens avançam, as contradições sociais se apresentam mais profundas, e tal violência é reproduzida no corpo da jovem protagonista.
Não é possível cindir o corpo do território, são o mesmo organismo vivo. A forma predatória como as relações de trabalho e ocupação ocorrem na região reflete diretamente no corpo de Iracema, que se converte em uma das mais fatalistas alegorias produzidas pelo nosso cinema. É no corpo da protagonista que o mito do Brasil Grande revela sua face enquanto trágica ficção.
Agir sobre o território era, portanto, agir sobre os corpos de quem os ocupa. Florestas eram esquadrinhadas para construção de estradas e, posteriormente, doados pelos governos a colonos, fazendeiros e empresários. Indígenas eram torturados, assassinados, escravizados, mulheres estupradas e prostituídas, além das devastadoras epidemias decorrentes do contato com novos ocupantes.
Como reconhece a cineasta e pesquisadora Clarisse Alvarenga, da expansão colonial até as políticas indigenistas empreendidas pelo Estado, o gesto do contato se atualiza sistemicamente. As formas são as mais diversas: rodovias, hidrelétricas, doenças, catequização, garimpo. A devastação segue em curso nessas distintas expressões do contato. Erguer-se à certeza de que sobreviver significa seguir mesmo na iminência de novas formas de contato.
Os retratos realizados por Claudia Andujar, com objetivo de exercer um controle vacinal, dão origem à série Marcados. Há inscrito no gesto da fotógrafa um conjunto de deslocamentos acerca dos signos da tradição do retrato. Ela se distancia do gesto de catalogação do “outro exótico” para convertê-lo em um gesto de proteção. Ainda assim, a utilização do número como categoria de identificação não nos deixa esquecer que o reconhecimento deste outro só é possível quando inscrito em uma ordem social que não a sua.
A ficha cadastral de saúde garantiria aos médicos o controle das vacinas aplicadas nos Yanomamis. No entanto, a presença da imagem do cadastrado chama atenção. Disposta ao centro da ficha, a fotografia é um retrato PB do paciente. Ao lado da imagem, há uma coluna que também chama atenção: nomes, no plural. Na cultura Yanomami o nome de pessoas e lugares não tem importância. Eles são temporários e por isso a dificuldade de controlar aquilo que não se pode nomear.
Dispostos sobre corpos, os números sugerem um procedimento de marcação. Ao longo da história, a marca sobre o corpo teve uma função de controle sobre parte das populações por um poder dominante. É um método que foi e segue sendo utilizado todas as vezes em que os corpos são reificados pelo poder: presídios, campos de extermínio e métodos de quantificação que amparam as teorias do racismo científico e determinismo biológico.
Novamente a contradição emerge enquanto possibilidade de ação, não como a paralisia da dúvida. Somente quando estes corpos foram marcados em códigos próprios da episteme do ocupante é que tornou-se possível a demarcação da terra. Demarcar exige o uso da marca, como observa a pesquisadora e curadora Stella Senra. Mais uma vez, as ambiguidades que movimentam a dialética interna desta problemática se fazem presentes. São as marcas do solo que desenharam no mapa o contorno do território de proteção, que só foi possível através da marcação destes corpos que habitam a floresta.
Conforme defende o historiador italiano Enzo Traverso, a história não é apenas a narrativa das batalhas travadas por homens; ela é, em si, um campo de batalha. Exaltada como a ciência “do lembrar”, frequentemente negligenciam sua capacidade de “esquecer”, de repetir e reiterar. Nesse sentido, é na memória que as batalhas mais decisivas da humanidade são travadas. Compreender o projeto da ditadura militar brasileira para a Amazônia é, antes de tudo, ser contemporâneo.
Diante da iminência da queda do céu tornar-se realidade, debater as imagens que disputaram a legibilidade do signo do Brasil Grande, é tão urgente quanto necessário. Ao colocá-las em relação ao contexto que as produziu, observamos a destruição não como uma anomalia, mas como uma constante em nossa história. Uma realidade que se atualiza desde os tempos coloniais até a atualidade na forma de pastos transgênicos e rios intoxicados de mercúrio.
Distancio-me do deslumbre autoritário proclamado na frase do cartaz da primeira imagem, que reconhece na chegada do futuro uma espécie de “redenção” histórica. Ao analisar as imagens do passado recente, reconheço o presente não como um estado de superação do passado; pelo contrário, o contemporâneo é o tempo do acúmulo de catástrofes pregressas e de um futuro que se anuncia em tom apocalíptico. Frente à encruzilhada histórica que nos deparamos, na qual o passado se perpetua enquanto experiência de devastação e um por vir desastroso, resta-nos apenas a ação no tempo presente. ///
Mariana Lucas é pesquisadora, historiadora e professora na Faculdade de Cinema da FAAP. Doutoranda em Cinema e Audiovisual pelo PPG Cine da UFF, com o projeto de pesquisa “Pista para Mina de Ouro: cinema e imaginário político na Amazônia dos militares”.