Eu te saúdo, Gaza
Publicado em: 27 de março de 2024O cineasta Jean-Luc Godard examinou, ao longo de várias décadas e em dezenas de filmes feitos em diferentes formatos, o estatuto da imagem no mundo contemporâneo – um mundo em estado de guerra. Em uma espécie de trilogia (não planejada) de filmes de curta duração – realizados em 1993, 2000 e 2014 – sugere distinções e aproximações cruciais entre os campos da cultura e da arte e entre documentário e ficção. Em particular, discute neles o papel exercido por fotografias que registram conflitos armados. Embora mirasse, nos três trabalhos, o conflito dos Balcãs e a destruição de Sarajevo na década de 1990, suas reflexões tragicamente se atualizam, agora, no arruinamento em curso de Gaza. Ainda que não se refiram ao conflito entre Israel e Palestina – coisa que Godard e Anne-Marie Miéville haviam já feito, em 1974, no filme Ici et ailleurs (Aqui e acolá) –, esses três filmes breves se tornam, por tragicidade e urgência, de novo atuais.
Je vous salue, Sarajevo (Eu te saúdo, Sarajevo), produzido em 1993, é um dos filmes mais curtos e de maior poder de afetação de Jean-Luc Godard. Nele, estão exemplarmente encapsuladas práticas construtivas recorrentes em sua trajetória e a ideia de que a arte ocupa lugar central e transformador na vida compartilhada. Por cerca de dois minutos são exibidos fragmentos de uma única fotografia, feita em 1992 pelo fotojornalista Ron Haviv, quando cobria para a imprensa o conflito nos Balcãs. Alternando entre planos menos ou mais fechados da imagem que investiga até mostrá-la por inteiro, o cineasta aos poucos apresenta uma cena que sintetiza a suspensão seletiva de humanidade que qualquer guerra engendra: três soldados armados e de pé se acercam de duas mulheres e de um homem deitados sobre uma calçada. Um dos soldados parece estar prestes a chutar a cabeça de uma das mulheres, talvez para ter a certeza de que está já morta. Tendo ao fundo uma música de Arvo Pärt (Silouans’ Song), Godard articula, em simultâneo, fala que une textos seus e de outros, criando um quase-manifesto ético-estético no qual distingue os campos da cultura e da arte. Afirma que cultura pertence ao âmbito do que é norma, enquanto arte é parte daquilo que produz dissenso. E assim como é da natureza da regra suprimir a exceção, seria da natureza da cultura sufocar a arte. Embora essa distinção entre cultura e arte possa parecer extremada, o que está em jogo nela não é uma oposição absoluta entre uma e outra, mas a explicitação de uma dinâmica na qual a arte sempre desassossega e põe à prova o estabelecido pela cultura, alargando, continuamente, o que de fato conta nos acordos sociais vigentes. Ao final do filme, já sem música ou texto, uma outra imagem aparece antes do escurecimento da tela, retirada da peça televisa de Samuel Beckett chamada Ghost Trio, levada ao ar em 1977: um homem sentado e com a cabeça baixa segura um objeto em estado de espera sem fim. Referência à obra do escritor irlandês que parece apontar, paradoxalmente, para a fragilização do poder emancipador da arte em um mundo regido pela violência melancólica do consenso.
Realizado em 2000, De l’origine du XXIe siècle (Da origem do século 21) prospecta o século que então se iniciava voltando-se para o outro que se concluía, como se neste já se anunciassem as engrenagens futuras do mundo, atravessadas por continuada violência entre povos e indivíduos. Articulando imagens ficcionais e documentais produzidas ao longo do século 20 por autores os mais distintos, Jean-Luc Godard replica prática construtiva comum a vários de seus filmes do período. Não por acaso, muitas das sequências que cria para este projeto são de novo vistas na primeira parte do filme Notre musique (Nossa música0, feito quatro anos mais tarde e interessado em questões semelhantes. Em sua quase totalidade, são imagens de opressão, desolamento, morte e humilhação, pontuadas por poucas outras onde se vislumbra alguma redenção ou alívio. Mesmo em uma dessas raras ocasiões de alento, as frases ditas em simultâneo frustram qualquer esperança para o porvir do mundo, associando a felicidade não a um bem-estar, mas a uma calma sensação de amargura. O olhar retrospectivo do cineasta define alguns marcos temporais que recuam e avançam ao longo do filme: 1990, 1975, 1960, 1945, 1930 e 1915. Datação que coincide com aquela proposta pelo historiador inglês Eric Hobsbawm em seu livro Era dos Extremos, no qual define o século 20 como um século “breve”, tendo seu início vinculado à primeira grande guerra (1914) e seu término ao desmanche do bloco comunista (1991). A mistura desconcertante entre sequências pinçadas da história do cinema e outras selecionadas de registros filmados de fatos acontecidos, reforça a crença de Godard na capacidade de a ficção acercar-se do real e, simultaneamente, na indefinição de sentidos que ronda esforços documentais. Sem impor hierarquias fixas entre um e outro campos, sugere que, independentemente de suas origens, imagens podem servir a incessantes disputas pelo direito de narrar o que se vive. Valendo-se da música do compositor Hans Otte e de citações de artistas e pensadores de várias épocas, o cineasta esboça uma historiografia torta que fratura entendimentos assentados sobre os laços que unem fatos e gentes.
Em Pont des soupirs (Ponte dos suspiros), produzido em 2014, Jean-Luc Godard faz uma série de retornos, como se fosse preciso reafirmar práticas inventadas em outros trabalhos e revisitar imagens antigas para delas extrair conhecimento sensível novo. Em termos formais, Pont des soupirs articula trechos de outros filmes do diretor, como Toutes les histoires – uma das oito partes de Histoire(s) du cinéma – e Ecce Homo – feito de pedaços do anterior –, além de incorporar, em sua inteireza, o já mencionado Je vous salue, Sarajevo. Trabalhos que exibem uma das principais marcas do cinema de Godard a partir da década de 1990: a apropriação incessante de imagens fotografadas ou filmadas por terceiros ou por ele mesmo e o avizinhamento por vezes insuspeitado entre esses registros. Aproximações quase sempre acompanhadas de textos do cineasta e de outros autores – impressos na tela ou lidos com voz pausada e grave –, misturados aos outros sons ouvidos ali. Tessitura de uma cacofonia de cenas e falas que desmonta os significados que cada uma delas possuía no contexto em que foram inventadas, promovendo uma arqueologia de imagens e textos que tiveram origem e circularam em lugares apartados uns dos demais. O assunto de que fala Pont des soupirs é também recorrente tanto nos filmes apropriados por Godard quanto naqueles que produz com o material que ajunta: as dificuldades para criar-se equivalentes sensíveis de momentos-limite nas vidas de pessoas envolvidas em conflitos armados. Dificuldades inscritas na própria natureza das imagens feitas com o propósito de registrar guerras, atravessadas que são por desigualdades radicais que existem nos “contratos” estabelecidos entre quem é sujeito e quem é objeto em cenas “tomadas” em situações de acuamento e medo da morte. Para além do que Godard chama de “faux-tographie” – neologismo que expressa a falsificação imagética da miséria das guerras –, a insistência em retornar a essas representações falhadas sugere, contudo, sua persistente crença na potência de afetação da fotografia e do cinema (da arte, portanto) sobre um outro qualquer.
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Se é certo que esses três filmes se referem, principalmente, às violências extremas contras os povos envolvidos no conflito dos Balcãs – sobretudo contra civis bósnios – é defensável que podem também remeter a outras etnias, populações ou grupos sociais despossuídos de sua condição de humanidade. Que já foram os milhões de africanos de diferentes origens escravizados pela empresa colonial europeia nas Américas. Que já foram armênios e que já foram judeus. Que são yanomamis e que são palestinos. Que serão outros mais. Povos colocados, em momentos e situações distintas, em zonas de abandono social e feitos vítimas de uma política ativa da morte. A “limpeza étnica” que ora ocorre no território palestino já matou mais de 32.000 pessoas, a imensa maioria de civis, vítimas do bombardeio indiscriminado do exército israelense. Entre elas, milhares de crianças. Não tivesse escolhido “fechar o livro” de sua vida enquanto podia fazê-lo com autonomia (o cineasta morreu em 2022, aos 91 anos, por suicídio assistido), Jean-Luc Godard certamente estenderia, a Gaza, a saudação feita a Sarajevo no passado. Não porque tal gesto pudesse ou possa fazer muita diferença frente à devastação humana e física ali em curso. Mas porque nada menos que isso pode ou deve ser feito ante tais fatos. Porque, ainda que seja certamente pouco, desafiar o consenso é o que arte melhor pode e deve sempre ofertar. ///