Uma conversa com Paula Gaitán
Publicado em: 1 de fevereiro de 2024Não estávamos juntas quando assistimos a Luz nos trópicos nem Canto das amapolas. Mas do encontro entre o assombro prolongado de uma com o assombro prolongado da outra, veio a certeza de que era preciso conversar com Paula Gaitán, retraçar os fios que a trouxeram até aqui. Quem era aquela cineasta que julgávamos conhecer e que, aos 70 anos de idade, nos entregava dois filmes tão imensos e, ao mesmo tempo, tão distintos entre si.
Devíamos estar preparadas. Nada na trajetória da Paula segue o curso normal das coisas. Conhecemos o seu cinema em Diário de Sintra (2007), realizado quando ela tinha já 56 anos, e uma carreira de quase 20 anos atrás de si. Nascidas nos anos 1980, só assistimos a Uaká (1988), seu primeiro longa, e LygiaPape, um curta de 1991, muito mais tarde. Nos anos 1990, com seus três filhos, ela se mudou para a Colômbia, onde passou anos trabalhando para a televisão pública sem que por aqui se tivesse muitas notícias suas.
Desde seu retorno e de Diário de Sintra, quando então conhecemos seu cinema, Paula realizou mais de vinte filmes; todos eles inquietos, radicais, livres, assentados ora em um senso de intimidade e curiosidade quase cândidas, ora em uma ambição e segurança que visam à monumentalidade sem se deixar intimidar por ela. Na idade, portanto, em que o mais comum em muitos artistas é uma desaceleração da prática, Paula iniciou, podemos dizer, sua fase mais produtiva.
Seguindo um percurso muito próprio, à margem das correntes e agendas do cinema e da arte de seu tempo, e sem qualquer concessão ao gosto e às ansiedades de seus contemporâneos, Paula vem trabalhando discreta e solitariamente, contando, no máximo, com um grupo reduzido de colaboradores, desde que registrou as primeiras imagens da família, lá em Sintra, em 1980.
Com uma obra que inclui documentários experimentais, retratos de artistas, diários memorialísticos, ficções rarefeitas, Paula chega aos 71 anos na sua fase mais radical, fresca e, ao mesmo tempo, mais madura. São raros os cineastas que conseguem conjugar liberdade de experimentação com rigor e precisão. Paula é uma delas. São ainda mais raros aqueles que, a cada filme, chegam a uma terra nova, um pouco mais distante, um pouco mais aventurosa, sem perder o fôlego ou o senso de orientação.
Fôlego foi algo que não faltou nas mais de oito horas de conversa que tivemos, ao longo de dois dias quentes e chuvosos em outubro retraçando sua história. Descobrimos uma artista inquieta, cuja errância e liberdade assentam-se em uma rara capacidade de autorreflexão sobre os próprios métodos, processos e escolhas.
Vamos começar do começo. Quem é Paula Gaitán? Onde você nasceu, qual sua história até chegar ao cinema?
Paula Gaitán: Eu nasci no dia 18 de novembro de 1952, no meio de uma tempestade de neve em Paris. Me colocaram esse nome por causa do Paul Éluard, que morreu naquele mesmo dia.
Meus pais se conheceram em Paris. Meu pai, José Gaitán Duran, era poeta. Ele vinha de uma família relativamente rica, católica, do interior da Colômbia, Cúcuta, na fronteira com a Venezuela. Minha mãe, Dina Moscovici, era filha de judeus imigrantes russos e tchecos, que vieram muito cedo para o Brasil. Era uma família modesta. Minha mãe começou a trabalhar muito jovem, ganhou uma bolsa para França e foi estudar na Sciences Po e também cinema no Idhec, queria ser cineasta. Meu pai estava no processo de criar uma revista de literatura, inspirada pela Sur de Jorge Luis Borges, que veio a ser a Mito. Ele foi um dos primeiros a publicar parte da produção dos escritores do boom latino-americano.
Nasci em um hospital metido, aristocrático, no Bois de Boulogne, onde a filha, acho que do Picasso, tinha nascido. Meus pais moravam numa banlieue (periferia) de Paris, mas meu pai queria que eu nascesse nesse hospital lendário. E, pra isso, a família rica latino-americana, lá daquela cidade no fim do mundo, enviou o dinheiro.
Mas você não foi criada na França, correto?
PG: Quando tinha uns dois ou três anos nos mudamos para a Colômbia. Mas vínhamos ao Brasil visitar meus avós. Minha mãe foi assistente de Orfeu Negro, do [Albert] Camus. Depois ela fez um filme lindo na Colômbia, Esperando el milagro. Mas acabou se tornando uma diretora de teatro importante; ela tinha uma frustração porque quase não existia cinema na Colômbia. Ela sempre dizia: “Ah, você não está no cinema por causa do Glauber, é por minha causa”. E eu dizia: “Sim, com certeza!”
Depois ainda voltamos para a Europa. Meus pais tinham se separado, minha mãe se casou de novo, com um filósofo, Francisco Posada. Fomos primeiro para Paris, depois para a Alemanha. Meu pai morreu em um acidente de avião em 21 de junho de 1962 em Point-à-Pitre, Guadalupe. Eu tinha 10 anos, tínhamos voltado há pouco tempo para a Colômbia. Ele morava em Paris antes da sua morte trágica. Recentemente, soube que esteve envolvido com a Alejandra Pizarnik. Encontrei a correspondência dos dois por causa da revista Mito. Há uma rica correspondência de meu pai com vários intelectuais latino-americanos: Octavio Paz, Cortázar, Vargas Llosa, Gabo.
E como foi sua vinda ao Brasil?
PG: Minha mãe voltou para o Brasil no início da década de 1970. Eu quis ficar na Colômbia. Estava na faculdade, tinha um namorado. Ele era do Movimento Operário Independente Revolucionário, o Moir. Eu também era, fazia trabalho de base. Conheci o Glauber Rocha nessa época. Em 1974, eu estava na casa de uma amiga, Maria Tereza Viecco, com meu poncho e meu cabelo longo, e muito beligerante, com o temperamento forte que sempre tive. E a mãe dela, Beatriz, chega com um homem muito bonito, de cabelo encaracolado, moreno: era o Glauber. Eu estava tranquila preparando o jantar com a Maria Tereza. De cara começou uma polêmica sobre política. Ele falou alguma coisa do Perón. Eu, maoísta, fui logo dizendo: “que Perón, que cosa, que nada, és un nacionalista”. Começou uma discussão interminável. Eu era 14 anos mais jovem que ele, um tanto impaciente. Daí, uma hora eu perguntei: “Mas você faz o quê? Super 8?”. Até o final da vida, toda vez que surgia uma discussão, ele lembrava: “Você não sabia quem eu era, você achava que eu era um diretor de super 8”. Em1976 eu venho visitar minha mãe no Brasil, passar o ano novo. Reencontrei o Glauber, que regressava da Europa, do exílio. A gente se apaixonou e logo me mudei pro Rio.
Antes de passar para a realização, sua primeira experiência com o cinema foi como diretora de arte de Idade da terra (1978), do Glauber. Você também fez vários desenhos para um roteiro não filmado dele: O nascimento dos deuses. Como foram essas colaborações?
PG: Eu fiz os desenhos para quase todos os personagens do Idade da terra e d’O nascimento. Foi aí que aprendi a decupar, a fazer análise técnica do roteiro e a criar imagens a partir dele. Tinha tudo a ver com o que eu fazia na Colômbia. Tinha estudado belas artes. Aquela coisa tradicional: pintura a óleo, gravura, escultura. Eu desenhava, esculpia, fazia umas fotogravuras. Já tinha uma ideia de cor, de cromatismo. E imaginação. Então o Idade da terra reuniu essas aspirações, mas muito voltado para a parte do figurino, direção de arte, construção de alguns objetos.
Você consegue sintetizar o que você levou do Idade da terra para sua trajetória como cineasta?
PG: Para quem participou, a experiência foi decisiva. Não tinha como não entender qual era o seu destino como artista. Idade da terra era um atelier de produção de imagens em tempo real. Tudo estava no papel, escrito, o Glauber sabia o que queria. Mas a equipe ia criando junto as sequências, reinventando o roteiro. As coisas estavam vivas.
O Glauber morre em 1981, você tem dois filhos pequenos, tinha passado um tempo fora do Brasil, e você se vê, nessa nova realidade, recomeçando a vida, se estabelecendo e fazendo suas primeiras incursões no cinema. Faria sentido que, com sua experiência em Idade da terra, você tivesse uma entrada no meio de cinema brasileiro. Mas você fica bem sozinha nessa época, com poucos trabalhos. Por quê?
PG: Eu não existia para essas pessoas, não fazia muito parte do meio. Nunca ninguém me convidou para fazer nada. Além disso, depois da experiência de Idade da Terra, seria muito banal estar com pessoas com quem eu não tinha nenhum diálogo ou admiração. Então fui fazendo meu caminho lentamente. Eu poderia ter produzido muito mais do que produzo agora. De 20 anos para cá, não parei um minuto. É uma carreira curiosa. Se você estabelece linhas, traça uma história do cinema brasileiro, é um projeto estranho. Há alguns momentos de muita solidão, de não me sentir muito adaptada ao ambiente do cinema nem das artes.
Isso não quer dizer que eu não tenha tido diálogos importantíssimos. Com a Lygia Pape foi um encontro determinante. Tinhauma série de documentários da Rio Arte sobre artistas. Não sei como eu fui parar lá, e sugeri a Lygia como tema de um filme. Ela foi muito generosa. Era professora, eu ainda estava encontrando meu lugar e ela me abriu um espaço de muita relevância. Nós reproduzimos todas as instalações dela para o filme, várias que já não existiam. Ela me pôs pra frente.
Com o Leon Hirszman e o Hélio Oiticica também. O Leon viu meu primeiro curta, um filme que eu preciso recuperar, encontrou uma qualidade no projeto e me motivou a continuar fazendo cinema. O Hélio também. Ele viu uma cenografia que eu fiz para uma peça da Norma Bengel e da Ítala Nandi e adorou. Isso quer dizer o quê? Que bem ou mal, dentro de pequenos comentários, pequenas conversas, alguns artistas muito importantes me jogaram para frente.
Seu primeiro longa é Uaká, no Xingu, com o povo Kamaiurá. Se hoje nós temos uma rica produção indígena, naquele momento isso não era tão comum. E o Xingu é um dos territórios indígenas mais difíceis de acessar. O que te leva ao Xingu em 1985-86? Qual era sua relação com o universo indígena?
PG: Eu estava no Festival de Brasília. Tinha um avião com um jornalista saindo para o Xingu. Ele me convidou, eu topei. Cheguei no meio do Kuarup. Estava calor, quase desmaiei e terminei na maloca do Takumã Kamaiurá. Acho que passei toda a festa lá, com insolação, na rede, vendo aranhas. E comecei a ver o movimento das mulheres dentro da maloca, cozinhando. Percebi que a produção da comida estava ligada à festa, ao comum. Fiquei pensando em toda essa teoria marxista, zapatista “La tierra es a quien la trabaja”, tudo isso configurando-se numa experiência total, entre a vida e a morte. Tudo era muito forte. Ali eu conseguia me comunicar melhor do que com todo mundo lá no Rio. Pensei: “encontrei meu lugar”. Daí voltei e comecei a trabalhar nessa ideia do mês de agosto, que é quando se celebra Kuarup. E a tentar conectá-la com a história do Brasil.
Curioso o projeto ter começado em Brasília, com um convite inesperado. A cidade é muito importante no filme. É a época da constituinte, início da redemocratização. Tem duas ideias de origem em Uaká: o Xingu, com os povos originários, e Brasília que também pretendia ser uma origem para a modernidade brasileira. O contraponto entre Xingu e Brasília é forte.
PG: Isso era uma ideia que me chamava atenção. Da conexão de Brasília, com o congresso. Tinha todo esse trânsito do povo Kamaiurá e do pessoal do Xingu, por lá. Eles iam e colocavam suas questões com os ministérios. Era um diálogo sem restrições, entravam nos gabinetes…. Fiquei próxima do Ianaculá Rodarte, de quem sou amiga até hoje, ele ajudou na escrita. Ele aparece no filme, perto da Granja do Torto. Depois de ir muitas vezes à Brasília falar com ele, voltei pro Xingu pra filmar.
A ideia era fazer a interseção do Kuarup, o ritual fúnebre, e o Brasil. Era um renascer de forças ocultas. O Glauber também falava muito disso, dessas forças ocultas.
No filme tem trechos do Méliès, outra origem, agora do cinema. Em outro filme, Kogi, com o povo indígena da Colômbia, você inclui cenas do Muybridge, um retorno ao pré-cinema. Há uma relação entre povos originários e a origem do cinema para você?
PG: Olha, até hoje eu acho isso, que o cinema indígena é o que mais se conecta com a história do cinema. Quando eu vi aquele filme Maxakali, Tatakox, senti isso. Era como ver o cinema nascendo ali na minha frente. É o olhar da invenção do cinema. É uma conexão muito direta, aguda… Acho que em Uaká eu já pretendia conectar essa ideia do cinema, de um olhar reinventando a história do cinema. A lua do Méliès vai chegando no olho do Takumã, como se fosse o próprio cinema. Acho que os únicos cineastas natos são os indígenas.
O confronto entre esses dois Brasis, entre esses dois sistemas de organização da vida (o projeto moderno de Brasília e os povos da floresta) é reforçado pela montagem e pela banda sonora do filme. Você justapõe as falas e os cantos dos Kamaiurá, na sua maioria deixadas sem tradução, com sonoridades que trazem a marca da violência de uma história militar-industrial. Em um momento você toca “A face do destruidor” dos Titãs para os indígenas sentados no centro da aldeia. Em outro, você sobrepõe imagens dos indígenas com sons de bombas de gás.
PG: Tem muita construção no Uaká, muita mise en scéne. Aquela cena toda do começo, do movimento no lago, quando eles vão caminhando em plongée. Isso foi feito umas oito vezes. É um filme de ficção também.
O som foi todo reconstruído, eu demorei mais tempo montando o som do que a imagem. Porque eu perdi uma parte… o menino do som perdeu umas fitas, caíram na água. Também levou muito tempo para fazer todos os layers, a espacialização. Tem som direto, óbvio, mas ele é todo construído. E as intersecções do Heavy Metal. Os Kamaiurá tinham uns rádios imensos, ouviam de tudo, pop, rock. Das coisas que mais me impressionavam era como os Kamaiurá se relacionavam com essas coisas diferentes, os óculos ray-ban, a música, as máscaras. E isso, de mundos que ao invés de se repelirem, se atraem e integram, me pareceu fundamental na construção do filme. Foi aí que entendi que o que mais me entusiasma é trabalhar com o som. Eu sinto que as experiências do som são mais atrevidas que as da imagem.
E a montagem?
PG: Montagem é como psicanálise. Eu trabalhei com a Aída Marques, eu sou muito verborrágica e ela é muito cuidadosa, muito econômica. Então o filme tem essa coisa mais associativa minha, e tem essa precisão dos cortes finos dela. Tenho uma memória muito grande, repasso o material uma única vez, depois vou montando como se tivesse pintando. Tem uma coisa racional, mas também pictórico. De associar ritmos, cores, imagens, ir juntando esses elementos.
Depois de Uaká você some por um tempo. Vai para a Colômbia. Por quê?
PG: Era a época do Collor. Já era mãe pela terceira vez, tinha uma filha pequena, não era casada, passava por dificuldades econômicas. Na Colômbia eu não pagaria aluguel, tinha uma casa própria.
Lá todos os cineastas trabalhavam na televisão… Nessa, eu consegui fazer quase 40 documentários: série infantil, sobre design, teve uma chamada Estética da comida, outra chamava Sexo, desejo, amor, erotismo e beleza; uns projetos mais livres; um filme sobre o meu pai, Presença / Ausência.Os filmes estão todos na Colômbia. Aos poucos, em minhas idas, estou conseguindo recuperá-los.
Foi uma universidade. Eu tinha que entregar os projetos com certa regularidade e aprendi a ter agilidade. Isso de trabalhar com materiais pequenos, de ter um ritmo na produção, a televisão te dá. Eu levava as crianças pro estúdio para trabalhar de madrugada, a Ava com 13 anos e a Maíra, que era bem pequena. O Eryk, o mais velho, começou a trabalhar como assistente lá, e foi logo para Cuba.
Você volta pro Brasil no início dos anos 2000 e faz Diário de Sintra, onde retoma um material que tinha registrado 28 anos antes, quando vivia com o Glauber e as crianças ainda pequenas em Portugal. Por que voltar a esse material naquele momento?
PG: Eu fazia muito super 8 quando estava em Sintra. E fotografava muito a natureza, os filhos, o Glauber. Ele tinha uma aura. As fotos são lindas, uma delas vira protagonista no filme. É uma foto muito reveladora do momento dele. Aquele olhar doce e tão melancólico ao mesmo tempo. Fiz várias experiências com a foto emergindo no leito do rio, na superfície da água, brotando da terra, como se a imagem pudesse ganhar vida. Essa história com a fotografia já está desde o meu primeiro trabalho, lá em Sintra eu colocava as fotos na paisagem. Não sei dizer porquê, mas as fotos são protagonistas. Não é só fazer filme com fotos, como o La Jetée, por exemplo, ou aquele da Agnés Varda em Havana [Salut les cubains], que é mais uma relação com os 24 quadros. O meu é outra coisa, é uma ideia de trabalhar com uma espécie de transmutação, algo alquímico… a foto renasce a partir dessa inserção na natureza.
Você trata a foto como um corpo…
PG: Como um corpo, exatamente. Mas não estou ilustrando a morte de ninguém. As fotos vão se tornando natureza morta.
Mas você ainda não comentou por que voltar a essas memórias nesse momento.
PG: Porque eu já tinha feito outros filmes, tinha provado que eu não era uma pessoa oportunista. Existia um rigor de não escolher o caminho mais fácil, eu precisava seguir meu caminho, encontrar minha linguagem. Eu nunca faria um filme colado na história e na morte do Glauber. Tinha que ser um processo individual, com honestidade e ética. Esse descolamento do Glauber fui eu mesma que fiz, não porque ele não seja fundamental.
Eu acho o Diário um filme importante porque é um antirretrato. Vamos falar de cinema, não vamos falar do Glauber. Até porque o Diário não é um filme sobre o Glauber, é um filme sobre mim, como os outros. Quando um escritor escreve, você não pergunta como é que ele foi atravessado; ele foi atravessado pela própria história da sua vida, pela história da arte, por pequenas histórias, por tudo. Eu acho que a obra de certos artistas é atravessada por essas totalidades. O Diário de Sintra não é um filme da viúva do Glauber.
Essa ideia de antirretrato é boa. Você tem retratos de atrizes, cineastas, músicos, intelectuais. Você considera esses filmes antirretratos?
PG: São projetos descolados dos retratados. Eu os vejo como diálogos entre artistas, eles são sempre uma relação entre duas pessoas. Por exemplo, o Arrigo [Barnabé]: é um encontro, uma conversa; eu me manifesto. Quando percebi estava fazendo vários retratos e tinha essa visão do outro, me colocava de igual para igual. Então é um tipo de documentário um pouco irreverente, que incomoda, porque começo a falar mais do que o entrevistado. No Sutis interferências (2016), tem o Arto [Lindsay], a música, mas não é a música dele pura, pura, eu interrompo, fragmento. Boto umas pausas que parecem erro, não é. Também tem uma vontade quase analítica de chegar ao corpo dele, na anatomia. Não é o conteúdo, o tema, o que me interessa do cinema. São as matérias e como lidar com elas.
Você fez muitos retratos para a televisão, algo te leva a esse gênero, o quê? São os diálogos, a chance de estabelecer relações?
PG: Eu tinha um projeto chamado “Resistentes”, de encontros com pessoas mais velhas do que eu: Éliane Radigue, Antônio Negri, Agnès Varda e Renato Berta. Era pra ser uma série sobre artistas e intelectuais inquietos. Pessoas que não tivessem ficado atadas a um movimento e que resistiram aos modismos. Admiro artistas assim. Só existiram duas temporadas, uma de personagens da Europa e outra do Brasil. Na Europa, filmei Varda, Ariane Mnouchkine, Berta, Negri, Radigue. Eu pretendia fazer uma temporada americana, cheguei a filmar Yvonne Rainer, Matana Roberts e o Ken Jacobs, mas o Canal Brasil não se interessou. Depois eu filmei os brasileiros: Zé Celso [Martinez], Sônia Guajajara, Jean-Claude Bernardet, Alice Ruiz, Negro Léo – é por isso que existe o longa – e o Arrigo.
Tem um dos retratos que eu quero muito terminar, com o Ken Jacobs. É o filme que mais trabalho já me deu. É uma loucura e é o mais simples. Conheci o Ken em Tribeca em 2014 e me encantei por ele. A questão judaica começou a voltar através dele. O Ken me trouxe essa memória do que é ser judeu; ele fala de um jeito muito específico. Seu jeito de ser, seu humor, foi algo em que me reconheci nele. O Ken sempre foi muito acessível, muito generoso e a gente construiu uma amizade. Cada vez que eu ia a NY, o procurava. Uma vez eu peguei a câmera, era um pretexto para encontrá-lo, e propus que a gente fosse caminhar pelo Anthology Film Archives. Eu queria conversar sobre o cinema que mais me apaixona, da escola experimental americana, Marie Menken, Stan Brakhage, Kenneth Anger, Jack Smith. Conheci o Jonas Mekas porque ele me apresentou. Não conseguiria pensar o mundo se o Ken partisse. E eu não estou conseguindo terminar de montar, é difícil, é um filme cheio de delicadeza, de coisas que talvez não sejam possíveis dizer publicamente, tem muitas arestas. Quero que seja uma coisa afinada e precisa para não ser irresponsável.
Pouco depois dos primeiros retratos, você faz Exilados do vulcão (2013), sua primeira ficção. É a primeira vez que você dirige atores, trabalha com uma equipe maior, incluindo um fotógrafo celebrado, o Inti Briones. O filme tem uma direção de arte marcante, cenas meticulosamente compostas e uma forte presença da paisagem. Até então, todos os seus filmes tinham um sentido de modéstia e intimidade, uma câmera mais próxima das coisas, dos corpos, o que não aconteceu com Exilados. É uma mudança grande no seu cinema, um filme ambicioso, visualmente exuberante. Como foi essa mudança?
PG: O Exilados é um filme marcado por um certo assombro meu diante de Minas Gerais. É um filme bonito, apolíneo, muito por causa da fotografia do Inti Briones e da montagem, que divido com Fábio Andrade. O filme foi muito maltratado internacionalmente, porque não estava de acordo com o que os festivais esperavam de um filme brasileiro ou latino-americano. Acho que ele sofreu as consequências de ser um projeto autônomo e pouco demagógico. Sinto que houve pouca generosidade para entender um projeto que talvez nas mãos de uma diretora estrangeira teria rodado o mundo. Criticar pela beleza é a pior ofensa. Muita gente me agrediu porque o filme era belo. E eu falei, “tudo bem, vamos brincar de outro jeito. Vou fazer um filme que não tem mixagem, com câmera na mão, fora de foco, cortes violentos, sonoridades radicais. Vamos para uma outra linguagem. Vamos ver o que é que vocês acham”.
Você se refere ao Noite e Sutis interferências?
PG: O Sutis interferências, o Arto falou para não mixar. O Noite (2014), eu escolhi. Noite foi um documentário sobre um momento histórico da noite carioca na Audio Rebel, que eu conheci por causa da Ava e do Negro Leo, meu genro. Eu já gostava de música eletroacústica. O Arto é mais ou menos da mesma época. Fui levar o filme para um desenhista de som e ele falou: “Eu não posso fazer nada. Isso daqui é uma tragédia, tá tudo errado, cheio de ruído, sujeira”. Falei: “bom, tá tudo errado, mas me ajuda a equalizar, nem que seja um pouco.” Ele falou que faria, mas que não era para botar o nome dele. Quando o filme estreou em um festival no Rio, o curador perguntou se eu tinha certeza que queria projetar o filme naquela altura. Falei que sim. Compramos 200 protetores de ouvido e oferecemos na entrada do cinema.
Eu não usei, gosto desse choque, dessa música que bate aqui no peito. Você tem duas maneiras de estabelecer contato com isso: ou você sai correndo ou fica imóvel e vira lagartixa. Você fica paralisada e a mente começa a se mexer. É uma questão de sensibilidade.
Por que o desenhista de som achou que estava tudo errado?
PG: Porque o filme trabalha com noise. Tem uma ideia de não limpar o material. Eu filmei tudo com uma câmera Z1; não tinha equipamento de som, não tinha microfone, a entrada do som era um buraquinho na câmera. Assumi o som sujo, achei interessante. Não é só som direto, tem muitas outras camadas misturadas, coisas que peguei na internet. Só não queria que tivesse muita manipulação. Eu queria que houvesse sons abruptos, violentos, trágicos. Não é só volume, você não chega a ficar com um apito no ouvido, é densidade sonora.
Cinco anos depois de Noite, você lança Luz nos trópicos (2020), que de certa forma retoma o mesmo tipo de ambição compositiva e relação com a paisagem que foi tão criticada em Exilados. Luz é um filme imenso, assombroso, mas de uma narrativa muito rarefeita. Como você o descreveria?
PG: É um canto, um poema longo, nutrido de divagações, fontes históricas, etnográficas, filosóficas e literárias. É um pouco como uma história do mundo, do mundo que se estende para as Américas. Mas com muitos elementos que também fazem parte da minha própria vida. Acho que o Luz aglutina muitas pesquisas.
Você pode compartilhar um pouco da pesquisa e da gênese do projeto?
PG: Começou em 2002, com uma vontade de pesquisar a luz, o embate entre a luz europeia e a americana, e tentar conectar isso com a história da fotografia. A ideia era filmar na França, na casa do Niépce. Também tinha a Expedição Langsdorff, onde estava o Hercule Florence, que foi como desenhista. Ele era um pesquisador, uma mistura de cientista e inventor, e fez a descoberta isolada da fotografia. Era contemporâneo do Niépce. Mas a histórias das pessoas da expedição, o que aconteceu com elas, me interessava pouco. Me interessavam as pesquisas, os diários, e como a expedição conectava povos indígenas pelos rios.
O Niépce e o Florence se perdem no filme. Mas as origens da imagem técnica ainda estão lá. Como naquela passagem em flicker, com o cavalo girando em círculos, filmada em super 8.
PG: Fizemos várias pesquisas de daguerreótipos, da história da fotografia, mas isso ficou mais pincelado, como anotações. Por exemplo, naquela parte que a gente constrói uma câmera obscura em forma de pirâmide, com quatro metros de altura. A gente construiu no Mato Grosso, a câmera com a lente em cima. O Carloto Cotta aparece manipulando a lente e depois colocando o papel fotográfico, e a gente vê a inversão da imagem. Aquela cena da Carolina Virguez andando pelo campo foi criada naquela câmera. Eram como essas experiências originais da fotografia.
Trinta anos depois de Uaká você voltou ao Xingu, por quê?
PG: Eu queria filmar com os Bororo. O povo estudado pelo Lévi-Strauss, que dá origem às Mitológicas. Tinha umas conexões entre o trajeto do Florence e o do Lévi Strauss. A aldeia dos Bororo ficava no Mato Grosso. Por conta de uma presença forte dos evangélicos, a gente entendeu que ia ser difícil filmar ali… Eu já tinha trabalhado com os Kamaiurá, do alto Xingu, conhecia a região e as suas dificuldades. Tinha o Takumã Kuikuro, que é um colega, e eles me convidaram.
Não é para me vangloriar, mas tem algo muito próprio, eu venho de um cinema muito pobre. De experiências de pobreza, trabalhar com orçamentos mínimos, sem recursos. E desenvolvi essa habilidade da velocidade, de não esperar um ideal. Como que eu parti dos Bororo? Tinha uma questão de urgência… E eu não faço calote, não ia tentar que os Kuikuro parecessem Bororo.
Em Luz nos trópicos há duas viagens que correm em paralelo sem exatamente se cruzarem: uma expedição do século 19 pelo interior, em paisagens tropicais, supostamente a Langsdorff; e a da personagem indígena, que parece fazer um caminho inverso, nos dias de hoje, partindo da cidade, no caso Nova York, em direção a sua aldeia Kuikuro. Uma jornada de retorno.
PG: É a história do Ianuculá Rodarte, filho de Sapaim [pajé Kamaiurá], que conheci na época do Uaká. Por alguma questão, quando ele era pequeno, foi mandado para o Rio de Janeiro para morar com uma família de dentistas. Só voltou aos 16 anos para reencontrar seu povo, e daí se tornou uma liderança importante na região do Alto Xingu.
Tem muitos contrastes no filme. O Xingu e Nova York, a floresta e a neve. É inevitável não pensar em Nanook vendo o personagem Kuikuro naquela paisagem gelada. O Flaherty também estava nas suas pesquisas?
PG: O Flaherty me fascina. O Luz também é inspirado no Nanook. O percurso do personagem sempre me intrigou. Daí, quando fui à aldeia Bororo, eles me deram uma chave pro gelo. Eu perguntei pro cacique: “Como você imagina o mundo lá longe, na cidade?” Ele falou que, para ele, tudo o que não era a aldeia era outro país: “Um mundo gelado, caótico e hermético”. Aí conectei com Nanook. Fiquei querendo esses contrastes com a passagem do calor sufocante para o gelo, como se tivesse um mundo gelado, congelado, e, a partir dele, o mundo fosse abrindo espaços para a história da humanidade.
Interessante isso da água abrindo caminho para a história da humanidade. No filme do Negro Leo, que tem rio no nome, tem um pouco disso.
PG: É rocha e rio (2020) é um filme totalmente diferente, mas dialoga inteiramente com Luz nos trópicos. Na verdade, são filmes irmãos, feitos simultaneamente. Os dois são atravessados por uma ideia de música, de sonoridade, de rio, de fluidez. O Leo fala da história do mundo também. São duas óticas da história, os dois filmes são histórias do mundo. O do Leo é quase um manifesto, e o Luz, vincula a questão indígena à formação dos outros povos que habitaram as Américas.
Voltando pro Glauber. Esse tipo de liberdade de tornar a história das Américas em um grande afresco é uma inspiração. Eu já sabia que o filme não caberia em duas horas, que iria se expandir. Cinema expandido, rizomático, fluido, conectado por rios. A experiência da filmagem foi se tornando a própria linguagem. Muitas vezes, enquanto filmávamos, eu já imaginava a montagem. Ia esculpindo mentalmente o filme.
Nessa escultura, há ainda um contraste na última parte que nos intriga. Luz é um filme épico, muito construído e grandioso, mas você muda o registro para algo diarístico e íntimo no final. Você filma sua filha Maíra no ateliê dela em Nova York, e isso não integra a narrativa. Por que era importante trazer essas imagens para o filme?
PG: Porque essas imagens – a Maíra trabalhando, esculpindo – faziam parte do meu cotidiano. Muita coisa ali é filmada com a câmera na mão, solta, como se fosse action painting, às vezes fora de foco. Tem muito super 8. Tem essa vontade de pensar a matéria, a película, como se fossem camadas de óleo superpostas, texturas diversas. Luz é estruturado em três partes, essa última foi a primeira que montei. No Diário de Sintra tem uma que a imagem começa a se desestruturar e esfacelar. Aqui também tem essa ideia de construir uma obra e depois destruí-la. Você pode fazer isso no cinema. Começar com algo mais linear e enganar, e daqui a pouco vira outra coisa, e depois não é nada daquilo.
E o som, Paula?
PG: Eu trabalhei o som do mesmo jeito que em Uaká, só que dessa vez eu tô editando o som diretamente na ilha. Noite, Sutis inferências, o clipe da Mulher do fim do mundo da Elza Soares, É rocha e rio, Negro Leo, Se hace camino al andar e o Luz são filmes que montei sozinha. O Marcos Lopes da Silva, que fez o som direto com muito rigor, se inspirou nas pesquisas do Florence de zoofonia [método de transcrição da vocalização de animais] e inventou um microfone-gambiarra que gravava sons diversos. Tem também o trabalho do Thiago Belo na mixagem. Era um oceano de sons, digamos que os sons são como algas, como peixes de várias famílias. Quando você vê a timeline, você vê todos os bichos que têm nessas diversas pistas, nessas curvas. É como uma sinfonia mergulhada em um lago. Essa ideia do som sinfônico é muito minha onda.
O Canto das amapolas (2023) é um filme muito pessoal. Ele traz uma Paula que até então desconhecíamos. Você já tinha trazido seus filhos, o Glauber. Aqui, essa parte da sua vida quase não está presente. Sozinha, com a voz da sua mãe, você fala de um antes de você, a partir do lugar da filha. Parece um coming of age tardio.
PG: Chegar à mãe é sempre mais difícil. Porque a mãe para mim é essência. E o filme só tem a voz dela, não tem a sua imagem. Talvez o filme seja uma maneira de estar perto dessa voz materna que me acompanhou muito durante o tempo em que eu estive na Alemanha. Encontrar essa voz e transformar o sofrimento em ato de criação é uma cura. Acho que o Diário de Sintra também é isso, só que eu demorei mais tempo para entender como criar sem emular emoções falsas. O Glauber era uma pessoa pública, minha mãe não. Fazer filmes de materiais trágicos ou dolorosos é perigoso. Talvez muitos filmes nessa modalidade queiram, no fundo, criar uma adesão imediata do público. São filmes que em geral me distanciam.
É um filme muito austero, de luto, minimalista.
PG: É um sentimento profundo chegar nessa austeridade, até porque minha mãe era muito austera. Eu acho que cheguei à maturidade de um projeto artístico, ao ponto mais sofisticado de todo o meu trabalho.
O Canto é um filme de transmissão e esquecimento, você está tentando recuperar a história da sua família, os deslocamentos, a diáspora. Nesse processo, você vai se identificando cada vez mais com o judaísmo. Só aqui nós descobrimos que você é judia. O que é o judaísmo pra você?
PG: Acho que o judaísmo está em você. Talvez seja a minha primeira pátria, meu primeiro lugar. Não era uma coisa muito clara, com a idade eu fui encontrando. Não éramos praticantes, mas a idade foi me levando para esse lugar. Também não sei porquê. Um povo errante, talvez esse seja o ponto de maior conexão com minha vida. Eu sou errante.
Para fazer os seus filmes mais pessoais, você precisa sair do Brasil. No Diário você vai para Sintra, aqui para Alemanha. Por que você precisa sair da “luz dos trópicos” pra falar da Paula?
PG: Porque distante me encontro do jeito que sou. Porque talvez eu encontre mais liberdade de ser qualquer um. Quando você vai envelhecendo você também se sente mais livre. Ninguém vai me domesticar, ninguém vai colocar limites na minha imaginação e liberdade criativa. Eu vou ser uma discípula dessa estética do sonho.
Mas tô pensando em um próximo filme que vai ser todo sem sair de casa. Essa ideia da casa está reverberando em mim atualmente, um pouco por causa da questão da minha imobilidade. Fico olhando para essa casa onde moro e ela me remete a outras casas que tive durante a vida. Não vai ter personagem. Somente espaço. Será um retorno às artes visuais, à instalação mesmo, somente com objetos.
Você se sente uma cineasta brasileira?
PG: Nem colombiana. Eu me sinto estrangeira onde eu piso. Não tenho sentimento de pertencimento. Ao mesmo tempo, me sinto muito acolhida por uma geração mais jovem. Sou uma ativista desse diálogo intergeracional, um diálogo de igual para igual. Eu me sinto uma mulher latino-americana. ///
Patrícia Mourão de Andrade é ensaísta, curadora de cinema e pesquisadora. Pós-doutoranda no Instituto de Artes da Unicamp, com bolsa Fapesp, tem doutorado em cinema pela USP, com bolsa sanduíche na Columbia University. Sua pesquisa versa sobre as relações entre arte e cinema.
Maria Chiaretti é pesquisadora e programadora de cinema e audiovisual. É mestre em teoria e história do cinema pela Université Paris 8 Vincennes/ Saint-Denis e doutora pela ECA-USP, onde desenvolveu pesquisa sobre cineastas improvisadores dos anos 1960-70. Entre 2009-2010, programou o Cine Humberto Mauro (Palácio das Artes, Belo Horizonte). Curou e produziu diversas mostras para espaços como CCBB, Caixa Cultural e CineSesc. Atualmente integra a equipe da Ubu Editora.