Curadores e pesquisadores apontam destaques na fotografia e no audiovisual em 2023
Publicado em: 14 de dezembro de 2023“O que você viu no campo da fotografia e do audiovisual que te marcou neste ano?” As respostas para essa pergunta foram as mais variadas e contemplaram exposições coletivas, retrospectivas e individuais, artistas, séries fotográficas, trabalhos acadêmicos, produções audiovisuais e festivais. A jornalista Anna Ortega conversou com 13 curadores e pesquisadores brasileiros sobre os destaques de 2023. As indicações apontam para uma produção imagética situada em diferentes cidades do país, como o trabalho fotográfico de Thays Medusa na Favela do Bode em Recife; o festival Efêmero, que discutiu a fotografia contemporânea em Fortaleza; a produção audiovisual dos cineastas indígenas Alberto Alvares e Genilson Guajajara; e a celebração da ampla mostra Retratistas do Morro com seus registros de décadas da comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.
Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves
Exposições retrospectivas costumam engessar a produção dos artistas em linhas do tempo, tentando ressaltar um traço evolutivo, artificialmente construído. Por esse motivo, organizar uma mostra individual panorâmica é um convite que exige entender o contexto da obra em sua perspectiva do presente e relevância para o futuro, ainda mais no caso de alguém que segue em atividade. A curadoria de Eder Chiodetto evidenciou a dificuldade de colocar marcos temporais na trajetória de quase quatro décadas de trabalho do artista Eustáquio Neves.
Para quem não conhecia esse mestre da justaposição de intervenções químicas e camadas pictóricas sobre imagens de arquivo, a exposição Outros Navios trouxe algumas séries que levaram anos até encontrar sua textura e formato final, como a entrevista que resultou em Crispim: Encomendador de Almas, 2006-2022. No entanto, para quem vinha acompanhando o artista desde os anos 1990, a abordagem panorâmica revelou uma jornada dedicada ao estatuto ético da imagem, investigação cujo caráter experimental cumpre a tarefa de expressar infinitos graus de incerteza diante do desmanche do significado de uma verdade única e totalizante.
Por Lisette Lagnado, pesquisadora, crítica e curadora de arte.
Retratistas do Morro
Fiquei muito impressionado com a exposição Retratistas do Morro, reunindo cerca de 50 anos de produção dos fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta, com curadoria de Guilherme Cunha no SESC Pinheiros. Ali, vemos como a fotografia nos acompanhou em sentido rememorativo, comemorativo e identitário. Uma comunidade negra da periferia de Belo Horizonte se organiza, se arruma e posa para a fotografia, resultando em imagens, cujos signos estão, também, em nossos guardados, nos arquivos de um Brasil plural e alegre.
Por Marcelo Campos, curador e professor.
A exposição apresentou a maior seleção de fotografias até agora exposta deste projeto coletivo que coleta, restaura e, principalmente, introduz, no chamado campo da arte, imagens feitas originalmente para registrar eventos cotidianos (bailes, aniversários, formaturas de escola, casamentos) de uma região periférica de Belo Horizonte – Aglomerados da Serra. Imagens de pessoas pobres e majoritariamente negras que expressam situações de celebração, conforto doméstico e felicidade, contrastando fortemente com as imagens de sofrimento e desamparo dessa população do país que hegemonicamente povoam o jornalismo, estudos acadêmicos e mesmo o campo da arte. Uma exposição que promove o trânsito de imagens do álbum de retratos para o espaço expositivo e que, nesse processo, desafia o imaginário dominante do que é o país.
Por Moacir dos Anjos, curador e pesquisador.
Solastalgia, de Lucas Bambozzi
A exposição, apresentada no MAC-USP, tinha como título Solastalgia, um estado de estresse mental e/ou existencial causado por mudanças ambientais abruptas, não só por consequências naturais, mas também, por modelos de extrativismo que estão na base do antropoceno. Reuniu uma videoinstalação homônima, focando exclusivamente nas montanhas e paisagens dilaceradas, evidenciando as tragédias causadas pela mineração de ferro no entorno de Belo Horizonte (MG). Uma outra obra que merece meu destaque aqui é uma instalação em cinco telas em que Lucas, com seu talento ímpar, navegava pelo espaço aéreo explorando as áreas de mineração em Minas, exclusivamente com recursos do Google Earth Studio – ferramenta que agrega imagens aéreas de diferentes fontes, a partir de coordenadas de latitude e longitude.
Por Giselle Beiguelman, artista, curadora e professora.
Thays Medusa
Eles tem medo de nós. Foi fotografando a Favela do Bode, no Pina, zona sul de Recife, que a artista Thays Medusa encontrou a frase escrita em uma pilastra. É, de fato, uma excelente síntese que reúne geografia, cor, classe: a favela ocupa o imaginário recifense como um local a ser temido, evitado, contornado. Thays passou quatro anos fotografando o local de dentro e, desse vasto material, selecionou 31 fotografias que compõem sua primeira exposição, inaugurada em novembro deste ano no Museu da Abolição, Recife (em cartaz até 25 de janeiro). O cotidiano de crianças, marisqueiras, cozinheiras, donas de casa, trabalhadores de aplicativos, etc, é trazido em imagens que demonstram intimidade entre quem mira a lente e quem é mirado. A curadoria da exposição foi realizada por Shell Osmo.
Por Fabiana Moraes, jornalista, professora e pesquisadora.
Vênus, de Val Souza
Ao desorganizar a ordem dos significados colonial/racial/capital estabelecidos para a beleza/o belo, Val Souza complexifica o imaginário social de Vênus em uma redistribuição imaginativa. Sem fugir dos estereótipos raciais e de gênero, pelo contrário, a artista os satura. Val nos faz ver a beleza numa encruzilhada de imagens vindas de tempos e lugares distintos. Com Vênus aprendemos que a beleza pode ser uma prática amorosa que infunde qualidades vitais em nossos corpos, e não apenas um padrão estético de dominação racial/colonial a serviço do capital. O trabalho foi exibido neste ano em um painel na exposição Entre nós: dez anos da Bolsa ZUM/IMS no espaço Pivô, em São Paulo.
Por Marina Feldhues, artista, professora e pesquisadora.
Alberto Alvares e Genilson Guajajara
O processo de inserção dos Povos Indígenas no mercado de trabalho sempre foi algo doloroso para muitos indígenas. Na maioria das vezes, ter que deixar o território para procurar emprego em grandes centros nos afasta de nossa família e de tudo que nos conecta à natureza. Enxergar as novas perspectivas que têm surgido na contemporaneidade, para nós, é muito gratificante. Dois indígenas que trabalham com imagens têm me chamado atenção: Genilson Guajajara e Alberto Alvares. Os dois encontraram na imagem uma forma de retratar suas comunidades com a beleza e complexidades que elas merecem. Acompanho o trabalho fotográfico de Genilson pelas redes sociais há uns dois anos e me chama a atenção como suas fotografias aparecem carregadas de sentido para mim, pois é como conhecer a realidade dos Guajajara através de seu olhar cuidadoso. Ele sempre busca retratar a cultura, os desafios dos povos indígenas pela luta de seus territórios.
Alberto Alvares é conhecido diretor de cinema do Povo Guarani e tem feito um belo trabalho com audiovisual retratando o jeito de ser Guarani. Lançou recentemente o filme Yvy Pyte – Coração da Terra, que faz uma jornada em retorno à sua aldeia natal. Historicamente, diversas fronteiras são impostas em território Guarani, causando uma série de mudanças, encontros e deslocamentos. Imagino Alberto e Genilson como mensageiros do futuro.
Por Olinda Tupinambá, jornalista, cineasta e integrante da Katahirine – Rede Audiovisual das Mulheres Indígenas.
Série Montsho, de Bongani Tshabalala
Bongani Tshabalala é um jovem fotógrafo sul-africano cujo trabalho me marcou em 2023. Entre seus projetos, destaco a série Montsho (‘preto’, em Sesotho). Ela evidencia uma particularidade do processo criativo de Tshabalala que, a meu ver, consiste em uma de suas mais relevantes características: a melanina como matéria-prima. O projeto reflete sobre o impacto do colorismo nas famílias sul-africanas, com foco nos efeitos do racismo e socialização racial entre adolescentes. Outro projeto de Bongani Tshabalala que vale a pena conferir é a série (em construção) onde ele usa o próprio corpo em interação com a câmera para abordar as maneiras pelas quais o direito à fragilidade é negado aos homens negros.
Por Ana Paula Vitorio, pesquisadora e pós-doutoranda, com foco em fotolivros e processos criativos.
Crying People, de Isaac Chong Wai
Meu destaque vai para a série Crying People do artista Isaac Chong Wai (Guangdong, China, 1990 – vive em Berlim), em exibição na 22a Bienal Sesc Video Brasil. O trabalho registra velórios de líderes políticos autoritários e a encenação do luto, expressa no vigoroso lamento dos participantes. As fotos, capturadas pelos jornais e resgatadas em processo de pesquisa de arquivos digitais por Chong Wai, são reimpressas por meio de serigrafia. A técnica não apenas reforça a textura da impressão, como aponta para a sensação de gotas, como as lágrimas intencionalmente posicionadas no rosto das figuras retratadas nas fotos. A instalação se completa como uma cortina flutuante feita de correntes à frente de cada foto, mesclando o registro histórico ao trabalho artístico, um passado futuro, numa imaginação cinemática e política. Vale destacar o papel que as Bienais Sesc Video Brasil sempre tiveram em nos apresentar artistas do Sul Global, nos permitindo ampliar nosso contato com arte além do cenário nacional.
Por Amanda Carneiro, curadora, pesquisadora e educadora.
Cruzos: encruzilhadas entre arte, fotografia e periferia, de Luiz Baltar
Luiz Baltar, artista consagrado pelas fotomontagens que reconstituem os fluxos da paisagem urbana, concluiu em 2023 sua pesquisa de mestrado na UFRJ. O resultado é Cruzos, uma dissertação que é também um experimento de montagem: imagens e textos que ora se articulam, ora se desgarram, compondo três grandes percursos que ele pensa como “linhas de ônibus” a atravessar sua cidade. Ali encontramos as referências que reverberam em seu trabalho: memórias da vida no subúrbio, professores e colegas da Escola de Fotógrafos Populares, artistas e escritores que admira, muitos afetos, pensadores que conheceu ao longo do mestrado e Exu.
E então descobrimos em Baltar um cronista muito habilidoso, capaz de fazer teoria por meio de uma escrita sempre moldada pela vivência. A pesquisa tem potencial para ser publicada e exibida de muitas formas. Mas merece ser lida como dissertação, porque assim enxergamos o modo como a universidade tem sido capaz de acolher os métodos dos artistas e, em contrapartida, como eles podem fazer da escrita e do pensamento acadêmico matéria de seu trabalho visual. A pesquisa está acessível na plataforma Academia.edu.
Partilho aqui uma pequena amostra: Não podemos nos banhar duas vezes na mesma água de um rio, mas precisei voltar ao subúrbio da minha infância, para o oco do meu mundo, e de lá, desse início, resgatar o encantamento do menino que descobria o mundo pelas janelas do ônibus, anunciava a todos “vou à cidade” com a animação de quem vai realizar algo admirável, entendi então que a minha atração pelas paisagens, pelos personagens e histórias do subúrbio eram anteriores às escolhas estéticas e políticas que fiz ao optar por assumir um olhar que tem na periferia o seu centro
Por Ronaldo Entler, pesquisador e crítico de fotografia.
Exposição 15 anos de Coletivo Coletores, Museu Nacional da República, Brasília
O Coletivo Coletores, uma instigante experiência artística da dupla Toni Baptiste e Flávio Camargo, que une o campo da imagem com o das tecnologias eletrônicas, com ações minuciosamente elaboradas para repensar as estéticas artísticas, a política, a história e o direito à cidade. Trabalhando há quase duas décadas em diferentes territórios da cidade, principalmente nas chamadas bordas periféricas, reafirmando a elas o direito a ser e ter imagens. A exposição de 15 anos do coletivo foi um marco tanto comemorativo quanto artístico-curatorial. Como fazer exposições apenas com imagens digitais? Apesar do debate não ser novidade, ainda se faz um desafio.
Efêmero – Festival Experimental de Fotografia, Fortaleza, Ceará
O Efêmero teve a sua 2ª edição coordenada por Felipe Camilo e Igor Cavalcante, contando com diversas ações em torno da imagem fotográfica e suas elaborações contemporâneas. Um dos principais desejos do festival é discutir e exibir a produção nordestina, entendo-a como elaborada fonte de criação dentro do campo nacional. Entre feira de fotolivros, palestras, oficinas, destaco as exposições realizadas em diálogo com a cidade e suas dinâmicas. De lambes em ruas a instalações em estações de metrô, as imagens puderam fazer de Fortaleza um suporte para suas existências.
Por Luciara Ribeiro, educadora, pesquisadora e curadora.
Histórias Impossíveis
O destaque vai para esta série antológica, pelo falo de ser mais que um produto audiovisual, dada a sofisticação e riqueza que as autoras Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza tiveram na ideia de criação da série Histórias Impossíveis (Tv Globo). Uma série que contou com o brilhante trabalho de muitas roteiristas incríveis, e que neste ano foi a produção mais inovadora que pude presenciar e participar como roteirista e diretora. Histórias impossíveis questiona estruturas até então nunca televisionadas de uma maneira tão profunda em cadeia nacional, conduzida com uma destreza e inteligência impressionantes.
A série traz para a pauta do dia os atravessamentos das mulheridades com toda sua diversidade e pluralidade, sem muitos filtros, desmistificando muitas camadas atribuídas às muitas identidades femininas, como o feminino originário, que pela primeira vez na história da emissora trouxe uma narrativa orgânica e construída com quem de fato tem prioridade neste lugar. Outro ponto muito positivo foi como a narrativa se utiliza do fantástico para construir elementos de força sem se tornar fuga. Para mim um marco na televisão brasileira.
Por Graciela Guarani, cineasta, curadora e produtora cultural.
Libera abstrahere, de Rodrigo Cass
Muitas foram as exposições que pude visitar em 2023, mas nenhuma me impactou como Libera abstrahere, de Rodrigo Cass. Já conhecia o seu trabalho há algum tempo, mas não havia tido a oportunidade de ver uma instalação com tantos de seus vídeos reunidos – e, neste caso, todos inéditos. Chama a atenção a maneira como Cass lida com a noção de mistério, repetição, edição de som e pesquisa cromática. Ao entrarmos no espaço da galeria, nosso corpo recebia diversos estímulos simultâneos e, num segundo momento, percebíamos como esses vídeos com suporte escultórico traziam pequenas ações feitas pelas mãos do artista – fogo, luz, texto, vento, terra e a planaridade do vídeo eram alguns dos tópicos tensionados pelo artista.
Nas paredes, alguns trabalhos feitos com guache, concreto e papel conversavam de forma pictórica com as imagens que se movimentavam pela sala. Ao passar um bom tempo na mostra e sair de seu espaço, levávamos – felizmente – mais dúvidas do que respostas. Distante das ilustrações fáceis – algo tão comum na produção de arte hoje não apenas no Brasil, mas em âmbito internacional -, trata-se de uma pesquisa que acredita nas muitas camadas de experiência sensorial, complexidade interpretativa e ascese espiritual que as imagens ainda podem nos trazer.
Por Raphael Fonseca, curador, professor e historiador da arte. ///
Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos e educação. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Select, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.