Há muito venho sonhando com imagens que nunca vi
Publicado em: 9 de janeiro de 2023Os últimos dez anos de ascensão y aceleracionismo digital trouxeram à nossa sociedade dinâmicas jamais vistas de comportamento social por meio das imagens, dos sistemas de comunicação y, assim, da estética gerando um novo fluxo global de produção imagética devido a democratização de ferramentas/dispositivos impulsionada por estratégias de consumo. Sim, o que filósofos, teóricos, futuristas anunciaram como escape em direção à liberdade foi arrematado por técnicas de produtibilização que interpelam desejos navegados pela existência, posse y pertencimento.
Óbvio que, dentro do contexto de construção da sociedade ocidental – da qual fazemos parte, a imagem sempre foi a projeção da humanidade y seus códigos de localização social entre a rota derradeira de identidades, privilégios y opressões. Porém, hoje, é possível perceber o enlarguecer dessas dinâmicas por meio de cognições visuais que não só categorizam, identificam ou expressam como, também, conduzem o ser humano à sua versão extendida, a interface.
A compactabilidade da tecnologia móvel se desenvolve a partir da imensa diversidade de versões que cobrem bilhões de usuários entre baixa, média y alta performance, com valores adaptáveis à renda bruta de várias economias entre os seis continentes, criando outros processos de agrupamento social por intermédio de métodos de instrumentalização. Todo mundo se tornou produtor de imagem y, para além da informação, as relações passam a se moldar pelo o que é registrado, projetado, publicado y, sobretudo, difundido.
O Instagram – plataforma, hoje, pertencente ao Facebook – possui um papel crucial nesse fenômeno, protagonizando a relação algorítmica contemporânea das imagens em muitas escalas que englobam desde arquivos pessoais destinados a círculos de intimidade até grandes audiências facilmente monetizadas pelas indústrias do entretenimento y cultural. Por mais que, atualmente, existam outras redes sociais regidas primeiramente pela difusão imagética (do gringo; image driven platforms) como Tiktok, BeReal y Snapchat, em 2022 o Instagram continua liderando a categoria contabilizando mais de 2 bilhões de usuários ativos mensais y 100 milhões de imagens carregadas (do gringo; uploads) por dia, sendo assim: uma média de 1000 imagens compartilhadas por segundo. Com a pandemia da COVID-19 y o distanciamento social, o espectro de produção de imagem difundidas nas redes sociais aumentou drasticamente. Inclusive, o Instagram teve um crescimento de mais de 300% na sua base de usuários, entre inúmeras gerações y tangibilidades existenciais – um termo bonito que eu encontrei para qualificar BOTs, uma vez que ao longo dessa pesquisa, questionar existência a partir do impacto sobre corpos sociais se tornou muito mais complexo.
São incontáveis os efeitos do principal movimento estético da nossa geração, que eu pessoalmente nomeio aqui em ECLOSÃO DE UM SONHO, UMA FANTASIA, 2022 – como Mobilismo Imagético. Especialmente quando nos deparamos com uma breve retrospectiva da história da imagem desde a pintura y a ilustração, o design gráfico, passando pela fotografia, o audiovisual y o 3D, somado a todas as ferramentas que acompanharam essas evoluções y todos os gatilhos político-econômicos que os dispararam por meio de vertentes de liberação mas, também sem negligências, de segregação, colonialismo, preterimento, elitismo, universalismos y manifesto. Hoje há, sim, uma percepção honesta sobre o quanto a democratização da produção de imagem é responsável pela visibilidade de culturas historicamente invisibilizadas dentro dessa linha do tempo. Porém, mais recentemente, se tornaram inegáveis as intervenções seletivas dos algoritmos sobre esse mundo onde tudo pode ser visualizado, adestrando comportamentos digitais, concentrando grupos de pessoas em bolhas, banindo tudo aquilo que se contrapõe às ideias tradicionais hegemônicas do velho mundo y um processo de institucionalização da internet estabelecido por ordens governamentais em uma linha sádica muito tênue entre a vigilância y a proteção do cidadão.
Contudo, dentro da categoria, além de táticas de operação, os algoritmos como os conhecemos hoje são, igualmente, frutos de um processo fotográfico teoricamente muito exercitado no século passado com os primeiros rascunhos do que seria um suposto aprendizado das máquinas (do gringo; machine learning). Entre ideias sobre ser controlado pela ferramenta até possibilidades de reprodução infinita de uma mesma matriz para o nascimento de outras imagens – através dos potenciais de mobilização popular em larga escala por meio de fragmentos de intenções originais. Caixa preta, Simulacros, Indústria Cultural, Punctum y Studium, sobre Vilém Flusser, Walter Benjamin, Theodor Adorno y Roland Barthes. Exatamente, todos os clássicos que desenharam os anseios imagético-culturais do neoliberalismo branco-hegemônico.
Ordem Algo(r)rítmica
Algoritmos aprendem, são completamente mutáveis y se desenvolvem através de perspectivas estatísticas y exercícios de probabilidades concebidos via repetição de padrões de comportamento. Poeticamente, algoritmos são vigilantes y, do mesmo modo, excelentes empatas. Obcecados, obstinados y, por que não, incitadores da liberdade paradoxalmente abusivos? Assim como as redes do cérebro, o algoritmo se molda de acordo com o benefício da desenvoltura. Comparado ao corpo humano, quanto mais alongamento se pratica durante a vida, mais flexíveis y abrangentes se tornam nossas articulações sobre a nossa capacidade de superar limitações físicas y gravitacionais. Ou seja: quanto mais alimentamos os algoritmos no decorrer de nossas ações, maior é a capacidade de reprodução, premeditação y automatização de qualquer plataforma ou dispositivo subordinado a esse esquema numérico, como por exemplo: Inteligência artificial, vulgo, BOT.
Nitidamente, todo ser contemporâneo possui uma memória especulativa sobre um futuro de robôs, seja nutrido pela vida intelectual de proto-web ou pelo imaginário comum futurista que se instalou na cultura popular, devido a um massivo incentivo audiovisual do cinema estadunidense. Há sempre uma saga, um confronto, uma dominação, apocalipse, filosofia, laser fluorescente, – das dramaturgias mais alternativas às superproduções – envolvendo maquinismos. Entre todas utilidades industriais (esse termo terá uma imensa importância na apresentação final de ECLOSÃO DE UM SONHO, UMA FANTASIA, 2022) que a automatização de sistemas já pode nos oferecer, existe – hoje – a proliferação de uma categoria sígnica de grande impacto no presente da produção de imagem y suas sapiências. Dessa forma, na arte. Oh, arte!
A inteligência artificial (do gringo; Ai) formulada por uma constelação algorítmica aprendeu, a partir do Mobilismo Imagético, a produzir imagens. Completamente atrelado ao nosso comportamento digital, na atualidade, podemos afirmar a existência intangível de algoritmos altamente otimizados, farejadores de números de compartilhamento, hormonizados pelas perspectivas de crescimento da indústria digital, onipresentes em bilhões de dispositivos em rede, beneficiário absoluto da saturação cognitiva que acompanha o fenômeno da Era da Imagem. Da abstração à figuração – no caso dessa abertura de processo essencialmente a figuração – uma quantidade imensa de figuras que superam a população global foi lida y associada com significados de transfiguração. Isso inclui: bancos de imagens digitais ou digitalizadas, redes sociais de painéis de referência y, por último, porém nada menos importante, muitas das imagens pessoais que nós já compartilhamos na internet.
Determinada atividade constrói um conglomerado de dados que além de acumular linguagens, histórias, territorios y sínteses do sentimento humano, armazenam estéticas y suas respectivas informações relacionadas para assim, não mais precocemente reproduzir mas, sim, compor visualidades semelhantes a tudo que já vimos, todavia inéditas. Foi decretada a Era da Pós-imagem que, muito provavelmente, arreganha a conceitualização da tão temida Pós-fotografia. Pois, o fato da produção de arte digital em algumas de suas especificações técnicas de acordo com ordens estabelecidas atravessarem o processo fotográfico como fonte de inspiração y referência, a exemplo da criação de imagens 3D, nunca houve um embate direto que rescindisse a fotografia analógica ou digital, em sua forma de execução. Partindo do princípio básico de que a fotografia é substancializada por meio da captura de luz y sombra sobre determinado sujeito – pessoa, tempo y/ou espaço – o que se torna a fotografia algorítmica da qual nada precisamos presenciar para materializá-la?
Aplicativos como Stable Diffusion, MidJourney, Dall-e-2 y uma série de outras protoversões se posicionam como uma alternativa à câmera fotográfica para a criação de imagens não vivenciadas por meio de um arquipélago de dados significativos capazes de descrever momentos do absurdo. Essas são as tão barulhentas Inteligências Artificiais TEXTO-PARA-IMAGEM (do gringo; text-to-image Ai). Basta descrever o que você deseja ver y retratar para o anseio se tornar concreto em 60 segundos. Entretanto, em relação à fotografia como em todas as outras faculdades visuais dessa tecnologia, o processo fotográfico se torna o protagonista dessa interação de linguagens, pois é ele que minuciosamente condensa y conduz os desejos técnicos de realização de uma imagem em textura, cor, luz, performance, perspectiva, tempo espacial y objeto. Sendo assim, confirmando a permanência do processo fotográfico nessa nova técnica operada por robôs, estaríamos ainda lidando com fotografias?
Ou, simplesmente, imagens? Ou, finalmente, afirmar que a tecnologia desenvolveu um lugar tão expandido y híbrido entre os atributos do visível ao ponto de vivermos em uma era de colisões mórficas não binárias que produz uma outra materialidade visual, pós-simulacro, pós-reprodutibilidade técnica, pós-colagem, pós-mixagem, não é mais algo tão distante assim a se pensar?
Ao caminhar por essa fortaleza de possibilidades, os valores y impactos das iconografias de organização (ou desorganização) do tempo presente são refutados, da mesma forma que o destino de nossas identidades, o estreitamento da malha entre futuro y passado, y o papel do poder da narrativa naquilo que se vê, se enxerga y se percebe. Há muito que venho sonhando com imagens que nunca vi. ///
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A artista Igi Lola Ayedun foi uma das selecionadas pela Bolsa ZUM/IMS em 2022, com o projeto Eclosão de um sonho, uma fantasia (2022).
Igi Lola Ayedun (1990, São Paulo, SP) é artista autodidata, diretora e fundadora da galeria/residência HOA e do MJOURNAL, editora digital para arte, moda e cultura. Trabalha com pintura, desenho, texto, vídeo, imagens em 3D, fotografia e som.