Exposição mapeia os percursos criativos de Anna Bella Geiger
Publicado em: 7 de fevereiro de 2020
Brasil nativo/Brasil alienígena é o título de um dos trabalhos mais importantes da artista carioca Anna Bella Geiger (1933). É também o nome da exposição atualmente em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no Sesc Avenida Paulista. A mostra apresenta trabalhos de várias fases de Anna Bella, dos anos 1950 até obras mais recentes, o que possibilita estabelecer conexões entre estratégias criativas, permanências, diversidade de suportes e de temas.
Em um dos primeiros núcleos apresentado no Masp, denominado “Viscerais 1965-1969”, pode-se ver trabalhos abstratos informais, desenhos e gravuras de órgãos do corpo humano, produzidos no início da carreira da artista. Como os trabalhos foram agrupados, colocados próximos uns dos outros, em detrimento do formato tradicional do isolamento de cada obra, há certa dificuldade em se reconhecer detalhes, saliências, relevos e texturas em algumas gravuras. Os órgãos humanos criados pela artista aparecem cindidos e isolados do corpo, sobretudo em algumas gravuras realizadas em metal.
Como um modo de reforçar a volumetria das vísceras, as partes separadas do corpo se destacam no espaço, por conta da intervenção da artista no processo de impressão. As bordas das partes impressas produzem sulcos volumétricos; no papel de impressão, as partes recortadas e impressas separadamente produzem pequenas saliências, transformadas em relevos de sutil volumetria e textura, que se destacam e se desprendem da superfície do papel. Esse procedimento tem sido considerado um marco experimental na produção da artista, apontando para sua produção conceitual iniciada na década de 1970, momento em que ela expande as escalas e os formatos dos trabalhos, interessando-se também pela fotografia, vídeo, postais, objetos, etc.
Essa ampliação de suportes pode ser mais bem observada na instalação Circumambulatio, apresentada pela primeira vez 1972 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), e agora em exibição no SESC da Avenida Paulista. Em um espaço generoso, dividido em dois ambientes, foi disposto um conjunto fragmentado e contrastante de materiais artesanais e não-artesanais, como textos manuscritos dispostos nas paredes, texto impresso, fotografias e filme. Essa montagem, cabe aqui lembrar, seguiu a versão guardada pela própria artista, anteriormente mostrada no MAM/RJ. Talvez pela ausência do material pertencente à coleção do Museu da Universidade de São Paulo (MAC/USP), adquirido em 1973, o aspecto documental não se evidencia nessa nova montagem.
Na relação entre as duas obras, importa notar a reversibilidade entre um corpo partido em pequenos órgãos volumétricos da fase visceral dos anos de 1966-67, e esse outro corpo ambiental em escala ampliada dos anos de 1970, explorada em Circumambulatio. Dessa sutil reapropriação do corpo como espaço, ou do espaço do corpo, podemos derivar um novo interesse pela representação territorial e, em seu sentido mais amplo, pela dimensão cósmica própria às imagens espaciais, bem representadas nas fotosserigrafias expostas no MASP, agora no núcleo denominado “Mapas e geografias 1972-2018”.
Despertado o interesse pela simbologia do espaço cósmico em Circumambulatio, Anna Bella cria, na primeira metade da década de 1970, uma cartografia cósmica em um conjunto considerável de fotosserigrafias nomeadas Polaridades/Lunares. As tensões da Guerra Fria quase se esmaecem diante da qualidade cromática e das impressões cuidadosas desse conjunto. De modo sutil, os Estados Unidos, que protagonizavam uma corrida à Lua em disputa com a União Soviética, estão presentes nessas representações relacionadas à conquista espacial. A partir de material cedido pelo consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, a artista se apropriou de fotografias do planeta Terra e da superfície lunar produzidas por viagens espaciais da NASA.
Presente em diversos trabalhos da artista, o formato do X se relaciona às imagens fotográficas que lhe foram cedidas pelo consulado, imagens em que a falta de nitidez as levaria ao descarte e inutilização. Nas mãos da artista, a marca de rejeição foi retrabalhada e positivada, tornando-se sinal da barreira de acesso aos espaços produzidos pela própria imagem, ao mapear a superfície de um ponto de vista, por assim dizer, geopolítico. O sinal neutro X aparece também entre palavras, como certo-errado, fora-dentro, por exemplo, em outros trabalhos na exposição. A pretensa neutralidade da imagem produzida pela ciência – mas advinda de um lugar demarcado, os EUA – ao ser retomada em seus aspectos menos “precisos” (fotos que seriam descartadas pela imprecisão de sua técnica), ao ser retrabalhada em seus sentidos de dentro/fora, permite que a neutralidade cósmica ou científica confronte e seja ao mesmo tempo confrontada às territorialidades menores, “nacionais”, presentes em outras obras da mostra. Essas imagens cósmicas apontam, assim, para a cartografia e os mapas que a artista utiliza, repondo a relação órgão/coletivo, parte/todo.
Os mapas possuem lugar privilegiado na produção da artista e podem ser encontrados em diversos momentos da exposição, inclusive nos vídeos exibidos no Masp e no Sesc. Diante da pretensa objetividade com a qual são tradicionalmente apresentados, na sua obra eles se transformam em representações contingenciais e seletivas que revelam e reforçam as narrativas políticas, econômicas e ideológicas de suas informações. Por meio de deformações e exageros de projeções, a artista enfatiza o sentido próprio de cada uma das projeções cartográficas utilizadas como referência e evidencia que a ação do cartógrafo, que busca produzir mapas científicos acurados, carrega narrativas prévias e insuspeitadas. Tornando-se ela mesma cartógrafa, Anna Bella desobedece às epistemologias espaciais clássicas e mostra que nenhum traçado é imparcial.
Posicionados sobre mesas, colocadas nos núcleos da exposição do Masp, estão alguns objetos da série Fronteiriços, que teve início na década de 1990. Naquele momento, a artista se interessou por gavetas velhas de arquivos metálicos, tratadas, então, como receptáculos, que tiveram seus espaços internos preenchidos por encáustica, espécie de cera derretida, tingida com pigmentos variados. Sobre a superfície da matéria que se endurece, a artista cria relevos, molda mapas em lata, chumbo ou cobre e insere ali objetos de naturezas diversas, originando mundos bastante peculiares. Ao mesmo tempo em que o embalsamamento parece proteger os elementos adicionados pela artista às superfícies das gavetas, há certa impressão de que a qualidade gasta, própria à encáustica, suspende os mapas ali posicionados. Como um demiurgo, a artista manipula a matéria com fogo e cria topografias com memórias pessoais e coletivas, como também arquiva representações de sua própria obra. Suspensos do fluxo do tempo, esses mapas/moldes carregam um sentido mais sublime, condição diversa daquela de sua cartografia inicial em que os mapas impressos em papel ou nas folhas gastas dos cadernos, exibidos no Masp, apresentavam uma fisicalidade mais mundana.
No que diz respeito aos seus trabalhos fotográficos, espalhados por diversos núcleos da mostra, cabe destacar aqueles realizados no contexto da década de 1970, momento em que inúmeros artistas visuais incorporavam esse suporte às suas práticas e ampliavam os próprios sentidos do que se definia por fotografia. Percorrendo-os, percebe-se que, em sua grande maioria, são inexpressivos, com imagens pobres, sem apuros formais ou estéticos e se caracterizam pelo enquadramento e pelo foco descuidados. No núcleo “Autorretrato 1951-2003”, há montagens de Anna Bella andando na plataforma do metrô de Nova Iorque. Organizadas com sobreposições, manipulações de fotogramas ou no formato de espelhamento, as fotografias anulam o sentido de registro objetivo e documental e esvaziam o conteúdo da própria performance da artista na estação do metrô.
A série Passagens, realizado em 1975, por exemplo, é composta de seis pares de retratos da artista sentada em um vagão de trem, montados de forma especular. Nem todos eles têm a sua própria imagem invertida e a repetição torna-os indiferenciados, sem qualquer remissão à matriz germinal. O exercício de duplo torna o corpo pura aparência, pois a imagem ‘real’ e a invertida não se distinguem, interferindo no pretenso estatuto de objetividade do (auto) retrato.
Talvez aqui possamos lembrar que a repetição de imagens é uma constante na produção da artista, o que remete ao seu passado de gravadora, em que as matrizes, agora conceituais, podem ser reimpressas, mas com pequenas ou grandes variações. As operações técnicas de recortar e repetir, próprias aos experimentos da gravura, assim como a operação, por assim dizer estética, de atomizar partes, reaparecem nas montagens fotográficas e materializam o próprio suporte. Como uma das características da fotografia conceitual, o termo amadorismo refere-se às imagens que se opõem à sofisticação técnica, à imaginação, à concepção autoral e ao refinamento pictórico e, portanto, não se enquadram na tradição formal, técnica e a conteudística da fotografia.
É nesse sentido que a série Indagação Sobre a Natureza, Significado, significado e função da arte, realizada em 1973, pode ser pensada. Imagens desfocadas, mal enquadradas e com clara rejeição ao conteúdo dividem o espaço com textos e desenhos. De aspecto precário, sem unidade narrativa e formal, há descontinuidade entre palavras e fotografias. A banalidade, a precariedade, a fragilidade e o descuido formal das imagens contrastam com o exímio domínio técnico identificado na produção de suas gravuras e de tantos outros trabalhos expostos. Seguramente, são trabalhos localizados temporalmente, momento em que artistas visuais exploravam o suporte fotográfico para alargar o próprio sentido do meio, tanto em seu aspecto objetual e material, como ainda na própria condição ontológica da fotografia.
Nessa perspectiva, a fotomontagem foi um recurso recorrente na produção da artista. Nas duas séries Artes e decoração e Diário de um artista brasileiro, ambas de 1975, expostas lado a lado no núcleo “Sobre a arte 1973-2018“, se reconhece a ironia frequente nas narrativas criadas pela artista. Para a primeira delas, Anna Bella selecionou ambientes de revistas de decoração, fotografou-os e encaixou nelas imagens de diversos momentos de sua vida. Mas, pelos desajustes de perspectiva da própria montagem, percebe-se que a personagem artista está alheia aos espaços requintados e refinados em que está envolta. Como sinais de distinção social, as obras de arte que decoram as paredes daqueles espaços são definitivamente incompatíveis com a arte, representada pela presença do corpo da própria artista naqueles ambientes.
Também em Diário de um artista brasileiro, fotomontagens e xerox sobre papel, de 1975, Anna Bella cria encontros com icônicos artistas homens e, com isso, subverte ironicamente a hegemonia cultural masculina e eurocêntrica. Na criação de pares tradicionais, masculino-feminino, ela apresenta-se como noiva de Duchamp, companheira sexy de Andy Warhol, modelo impecável de Lichtenstein, companheira de Barnett Newman e um retrato na mão de Matisse. Dividindo o prestígio com esses famosos personagens da arte, parece se colocar na posição de coadjuvante em todas elas. Mas a sujeição e o lugar subalterno são aparentes, pois as manipulações irônicas, a desconstrução transgressiva de modelos artísticos e o caráter fictício nas narrativas são subversões autorais da própria artista.
O ato apropriativo está outra vez presente em Brasil Nativo/ Brasil Alienígena, produzido em 1976/1977. Compõe-se de nove pares de cartões postais organizados em duas colunas: na primeira, à esquerda, estão postais com imagens de índios vendidas em bancas de jornais e também fotografias retiradas do arquivo da Editora Bloch (Revista Manchete) que foram transformadas em postais. Na segunda coluna, Anna Bella simulou as mesmas imagens em cenários escolhidos e montados por ela, os fotografou e os transformou em cartões postais.
O emparelhamento de ambos os conjuntos revela a impossibilidade de pertencimento das cenas montadas e as simuladas ao Brasil Nativo. Assumir a condição de ‘homem primitivo’, como pretende a artista, só lhe é possível em Brasil Alienígena. A repetição de gestos não é suficiente para estabelecer conexões e reconstruções identitárias. O paralelismo entre a coluna “autêntica” e a “montada” revela que a fixação de significados é sempre ficcional, pois o universo indígena foi igualmente construído pela fotografia.
Por fim, cabe dizer que a mostra Anna Bella Geiger: Brasil nativo/Brasil alienígena possibilita igualmente compreender como práticas artísticas vêm há muito tratando subversivamente as assimetrias de poder, as hierarquias de gênero, a hegemonia cultural, os cânones eurocêntricos da história da arte e o lugar da produção de artistas identificadas como mulheres latino-americanas, temas caros às narrativas que buscam repensar modos de decolonização das artes. ///
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A exposição Anna Bella Geiger: Brasil Nativo/Brasil alienígena está em cartaz no Masp e no Sesc Avenida Paulista
Dária Jaremtchuk é professora de História das Artes na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Autora de Anna Bella Geiger: passagens conceituais (C/ARTE, 2008) e Arte e Política: situações (Alameda, 2010).
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