A São Paulo do início do século 20 pelo olhar imigrante do fotógrafo Vincenzo Pastore
Publicado em: 25 de janeiro de 2018As fotografias emblemáticas do fotógrafo ítalo-brasileiro Vincenzo Pastore (1865-1918), feitas nas ruas da capital paulista, têm uma história interessante: feitas na década de 1910, permaneceram guardadas numa caixa de papelão até 1996. Sobreviveram como coleção familiar até Flávio Varani, neto do fotógrafo, doá-las ao Instituto Moreira Salles. Tal especificidade iniciou um percurso de migração das fotos que passaram a integrar o acervo do instituto. Na cadeia de apropriação a qual foram submetidas, agenciamentos surgiam na aquisição, na organização curatorial da exposição São Paulo de Vincenzo Pastore (1997), na divulgação, na produção do livro e catálogo, na disponibilização de parte da coleção na internet, contando ainda o impacto causado entre os historiadores sociais, atentos à chamada “história vista de baixo”, na esteira dos estudos do cotidiano, que lançavam luz às ações dos grupos tidos como subalternos. A coleção Vincenzo Pastore foi então produzida como documento, tomada como fonte histórica repleta de registros vibrantes porque indiciavam a economia de subsistência paulistana movida pela força de trabalho de mulheres e de homens negros, tão obscurecidos nas tramas da história.
Nas andanças tão comuns na urbe paulistana, Pastore se aproximou e retratou homens negros trabalhando ao lado de muitos imigrantes também lançados à experiência do desterro. Pouco se falou do imigrante vendedor de tecidos mascateando ao lado do homem negro, um possível assistente. Mas a cena não escapou ao fotógrafo. Na lida diária de empurrar o carrinho ou carregar caixas de tecidos, convivências foram construídas. Na fragmentação de suas comunidades tradicionais, o trabalhador negro e o imigrante, antes enraizados nas práticas camponesas, lançaram-se em uma experiência comum. Compunham a leva saída do interior ou chegada ao porto de Santos em busca de melhores condições de vida.
O fotógrafo que deixou para trás a comuna de Cassamassima, região da Puglia, em sua trajetória como retratista, atuava ora no Brasil, ora na Itália. Uma vida entre dois continentes, que nos revela a complexidade das experiências de imigração. A sua própria experiência de imigrante talvez tenha se projetado nas fotos realizadas nas ruas da capital paulista, entre os anos de 1908 e 1914, pois seus registros imprimem experiências citadinas multifacetadas e contraditórias, constituindo-se como uma importante documentação visual para a história social da cidade e da imigração, enunciando um fotógrafo que sobrevivia e ganhava dinheiro com o retrato comercial de estúdio, mas também interessado pelo espaço urbano paulistano que preservava traços ainda coloniais, apesar de todos os esforços modernizantes.
Pastore retratou também um homem negro, já idoso, que tentava garantir seu modo autônomo de trabalhar e viver. Foi preciso, para uma leva de trabalhadores das cidades, encontrar formas de sustento mais imediatas, o que os impeliu para uma cultura mais independente e adaptada aos trabalhos temporários. O senhor encostado na grade de ferro fundido leva seu cesto no braço. Os muitos rasgos nas pontas do cesto são as marcas do quanto era usado, surrado, desgastado pelo ir e vir de um possível vendeiro angariando seu sustento na rua São João. Provavelmente tenha sido ele um morador dos quartos alugados nas casas sob risco iminente de desapropriação para a viabilização do projeto de remodelação, que visava tornar essa rua uma grande avenida. Possivelmente sem recursos suficientes para montar uma barraquinha e contribuir com o fisco, o homem fotografado por Pastore contava apenas com suas andanças esperançosas pelas quadras próximas do burburinho e do agito do mercadinho da São João, depois transferido para baixo do viaduto Santa Ifigênia. Talvez fosse morador de um casebre localizado na Várzea do Carmo.
O Brás, antes local de abrigo para escravizados fugidos, no novo século tornou-se bairro de moradia daqueles que fugiam dos custosos aluguéis. Da cidade das águas, repleta de bicas, chafarizes, pequenos riachos, córregos e rios como parte vital dos costumes dos moradores da cidade, Pastore se aproximou das vicissitudes de canoeiros e barqueiros, mas também das lavadeiras. Em suas experiências pouco favoráveis, em condições de desamparo, enfrentando situações de insegurança em muitos minutos de uma vida inteira, as lavadeiras ocupavam as extensas margens do rio Tamanduateí. Pastore as retratou em contingências que descortinam seus esforços diários de trabalho. O fotógrafo desceu ladeiras para encontrá-las. Deixava seu estúdio na Rua Direita e deslocava-se pela ladeira Porto Geral ou pela General Carneiro. Seguia rumo ao parque Dom Pedro II, onde entrevia o quanto os aspectos mais antigos da velha província resistiam, apesar de tudo.
Era exigido vigor nesse cotidiano da urbe. Era preciso vontade de enfrentamento. No Arquivo Público do Estado de São Paulo, encontrei em minhas pesquisas um relato carregado de observações parciais e pejorativas sobre as lavadeiras. De modo velado, porém, despontam atos de resistência. Não era com passividade nem com desânimo que Anna Pagano tentava sustentar seus três filhos: Miguel (12 anos), Antonio (10 anos) e Constantino (8 anos). “É lavadeira, vivendo em extrema miséria, sem meios para manutenção dos filhos, que se vestem de trapos”, foi a descrição feita ao juiz de órfãos sobre a família que vivia na rua Santa Rosa, número 16, onde “residiam diversas famílias”, como indica a documentação consultada no Arquivo, em maços dos Processos de Orphãos, número 10.726, 31 jul. 1911.
Anna foi mais uma mãe a integrar o grupo de mulheres sós e sem recursos que sonhavam em ver o filho mais velho aprender um trabalho: “O mais velho está aprendendo o ofício de sapateiro, sem nada ganhar ainda, porém”. Apesar dos equívocos de leituras presas ao conteúdo da imagem, é quase impossível não ter a sensação de entrever Anna na fotografia de Pastore, com as lavadeiras tomando o primeiro plano da imagem, algo incomum ao padrão paisagístico dos cartões postais que registraram cenas tidas como pitorescas.
Na mostra realizada pelo IMS, que apresentava Pastore ao público como fotógrafo da cidade, o conjunto de imagens foi dividido em duas salas. Painel, paredes e vitrines tornaram-se suportes de memória, apresentando as fotos protegidas por vidros. O público finalmente via homens e mulheres egressos da escravidão ou oriundos da imigração, tipos populares trabalhando nos arredores dos mercados e nas ruas da cidade, na venda feita também de porta em porta, ágeis na improvisação submetida a uma conjuntura na qual o trabalho era marcado por fluidez e mobilidade, feito de pequenos expedientes, considerado instável e temporário, mas fundamental para ganhar a vida.
Pastore surgia então como fotógrafo da cidade, curioso em flagrar encontros, conversas e possíveis trocas de informações. Deixou em primeiro plano as duas mulheres, destacando seus cestos nos braços. Possivelmente trata-se de vendeiras, retratadas de corpo inteiro, em situações corriqueiras, claramente privilegiando os aspectos materiais que cercavam as retratadas em seu cotidiano. São claros os indícios das condições da vida material, da valorização de panos e xales usados pelas retratadas, das pequenas posses e de como decidiam em conjunto a pose, o instante em que iriam simular a desatenção, dando a ver aspectos de um retrato negociado, como mostra a imagem na qual Pastore experimentava aproximações incomuns à fotografia do período. De forma respeitosa posicionou-se bem perto delas, e ambas revezavam o momento de olhar para o fotógrafo.
É também surpreendente o registro do homem negro costurando seu próprio sapato. Esse retrato revela-se como uma afirmação. Era preciso forte improviso para integrar-se ao mundo dos livres. O gesto colocado em cena inscreve um importante elemento no reconhecimento da cidadania. Pastore rastreou subjetividades historicamente construídas, mas em um conteúdo imagético criado na condição de uma vida livre. Costurar o próprio sapato, importante símbolo de distinção, foi um gesto revelador de afirmação e recusa em andar descalço. Talvez dali, ao rés do chão, o retratado tenha espiado a curiosidade do fotógrafo, dando-lhe pouca confiança. Era preciso ser escorregadio na tessitura social urbana, ser hábil em aprender rapidamente a lidar com poucas posses e paradeiro incerto.
As imagens de Pastore surpreendem porque escapam do circuito de produção de fotos encomendadas. Não apresentam vínculos institucionais comuns à fotografia paulistana do período, de viés promocional, como aquelas alinhadas à produção da Light. Não deram corpo à tradição de álbuns comparativos estruturados em um discurso que contrapunha o velho e o novo, como signos respectivos do colonial preterido frente ao progresso que se edificava, perspectiva comum à visualidade da época, empreendida por fotógrafos como Militão e Becherini, por exemplo. São fotos que não cumpriam solicitações governamentais, tampouco formaram álbuns de lembrança, que reiteravam visualmente a conquista do espaço urbano. Fotos que não foram veiculadas como cartão-postal nem publicadas em jornais. As imagens de Pastore possuem uma especificidade que atordoa o pesquisador, e causam grande impacto na audiência porque, apesar de a coleção não ter tido circulação documentada em seu contexto de produção, a força de seu referente era notável. Suas imagens mostram como nem toda fotografia do início do novo século destinava-se à comemoração e que a cidade estava longe de ser aquela desejosa em reproduzir as ambiências parisienses.
A coleção doada ao IMS mostra meninos engraxates, carregadores de lixo e o velho homem negro carregando seus panelões no Largo da Sé, todos tomando o primeiro plano da imagem. Traz ainda homens e mulheres trabalhando em suas pequenas roças, cuja colheita seria vendida pelas ruas da cidade e arredores dos mercados, revelando a ainda forte convivência entre o rural e o urbano. A futura metrópole surge como um complexo de fenômenos diversificados, em um contexto social onde o comércio ambulante era parte vital da experiência citadina, não como contradição ao urbano, mas intrínseca ao seu processo de expansão, sendo antes uma especificidade dessa dinâmica acionada por Pastore, que revelou sujeitos históricos que não se abatiam diante das dificuldades impostas. Por certo, foi um olhar crítico sobre o processo de metropolização da cidade, não obscurecendo as experiências daqueles que tentavam recuperar permanentemente a centralidade dos espaços perdidos. A São Paulo de Pastore não foi fetichizada pelo viés modernizador, abstrato e generalizante. É como se o fotógrafo fizesse uma invocação: Olhemos para as coisas que estão aqui! ///
+
Livro Na Rua: Vincenzo Pastore
Editora: IMS
Formato: 15 x 20cm
Páginas: 108
Conheça mais sobre a vida e a obra de Vincenzo Pastore aqui.
Vincenzo Pastore (1865-1918) trabalhou como fotógrafo em São Paulo em 1884, numa primeira passagem pelo Brasil. Retornou ao país em 1899, estabelecendo estúdio e residência na capital paulista. Em 1914, mudou-se para a Itália e inaugurou, em Bari, o estúdio Ai Due Mondi. Com a Primeira Guerra, voltou a morar em São Paulo e seguiu trabalhando com fotografia. Publicou fotografias em revistas ilustradas, como A Cigarra e A Vida Moderna.
Fabiana Beltramim (1975) é professora e pesquisadora de História e Cultura Visual. Sua tese de doutorado, defendida na FFLCH-USP, foi publicada pela Editora Edusp com o título Entre o estúdio e a rua: a trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo do cotidiano.
Tags: Fotografia de rua, São Paulo, Século 20