Alta voltagem
Publicado em: 19 de setembro de 2013No futuro, os historiadores que desejarem resgatar o clima da década de 1960 nos Estados Unidos, uma época que já parece lendária e remota, terão uma excelente fonte de informações nas fotografias de Garry Winogrand. Outros fotógrafos deixaram um registro mais factual das passeatas contra a Guerra do Vietnã e a favor dela, das convenções partidárias, dos assassinatos políticos, das manifestações hippies e dos lançamentos de foguetes rumo à Lua. Para um cronista da década de 1960, esses são os fatos óbvios, os elefantes na sala, e Winogrand não deixou de registrá-los, mas tomou conhecimento deles como os cegos da fábula, pegando o rabo, as orelhas ou a tromba. Concentrando-se nos aspectos marginais dos fatos, e não em seus núcleos, ele destacou fragmentos, sem buscar uma síntese.
Quem vê seus melhores trabalhos pode pensar que ele esteja tentando descobrir quantos elementos discordantes podem ser inseridos numa fotografia harmônica. No entanto, o próprio Winogrand se via como repórter, e não como um formalista: “Pode-se dizer que sou um estudioso da fotografia… e sou mesmo… mas na verdade estudo os Estados Unidos”. O que lhe interessava era a descontinuidade. Em sua versão da vida americana, as lacunas que separavam as pessoas eram mais importantes que os vínculos que as uniam. Os americanos eram como passageiros de ônibus ou de elevadores (e ele fotografou tanto estes como aqueles), pessoas comprimidas num espaço limitado, mas envolvidas por membranas invisíveis de isolamento. Eram, para usar o título do conhecidíssimo estudo sociológico de David Riesman, a multidão solitária.
Para melhor perceber a sensibilidade que permeia as fotos de Winogrand, podemos compará-lo com dois ilustres predecessores na fotografia de rua, Henri Cartier-Bresson e Robert Frank. As fotografias de Bresson capturam momentos líricos, aquelas justaposições oníricas em que tudo ganha coerência num todo mágico. Mesmo os temas mais vulgares – cachorros acasalando na rua, um homem saltando uma poça d’água atrás de uma soturna estação ferroviária – transformam-se em lampejos de beleza, epifanias que uma pessoa religiosa chamaria de momentos de graça. Os cacos dispersos da vida foram reunidos em algo unificado, e a beleza é ressaltada pelo contraste entre a fixidez da fotografia e a evanescência do tema. Bresson fez a crônica do efêmero. Já as fotografias de Frank evocam o imobilismo. Seus temas são mais estáticos, à maneira de Walker Evans, um dos primeiros a inspirá-lo. Mesmo nas ocasiões em que Frank fotografou, digamos, uma multidão em movimento ou um casal caminhando com pressa pela rua, as pessoas parecem estar paradas. Entretanto, essa quietude não é sua característica mais marcante. Ele mostrou, sobretudo com o livro Os americanos, que marcou época, que a fotografia documental podia ser tão expressiva quanto a poesia. Podia-se falar dos Estados Unidos de Frank como se falava do de Walt Whitman. Tratava-se de algo novo. Emoções baratas como o sentimentalismo e a indignação moralista eram adulterantes comuns da fotografia documental; o engajamento distante (ou o alheamento intenso) de Frank era muito pessoal, e por isso revolucionário. Em algumas fotografias, uma cena é vista através de anteparos diáfanos – uma bandeira transparente, uma porta de tela ou uma cortina de tule – como que para enfatizar a constrangida percepção do fotógrafo de que as imagens que registra são filtradas por sua sensibilidade.
Tal como Bresson, Winogrand costumava registrar seus temas enquanto se moviam e se transformavam rapidamente diante dele. Fez algumas fotografias com um toque bressoniano. Duas das melhores são Feira Mundial, Nova York, 1964, em que três grupos de pessoas, num banco de parque, gesticulam com movimentos que lembram um friso helenístico; e Barca da Estátua da Liberdade, c. 1968, em que turistas se distribuem numa embarcação de traços modernistas com a regularidade de um bolo de casamento. Mas essa não é sua marca registrada. Ele não tinha o gosto do francês pela ordem, a ânsia de discernir constelações clássicas num céu estrelado. Essa diferença de sensibilidade pode ter sido produto de suas origens. Bresson nasceu numa abastada família de industriais. Gradações hierárquicas e regras de decoro eram parte de sua formação. Winogrand, tal como Frank, imigrante suíço, era um outsider judeu. Deleitava-se com a desordem. Criado num ambiente operário no Bronx, onde o pai trabalhava como cortador de couros na indústria de confecções, ele abandonou o curso de pintura no Columbia College para se tornar fotógrafo, depois de descobrir, com um amigo, a alquimia do laboratório. Na prática, essa decisão levou-o a trabalhar para revistas, como ele fez a princípio, ou para clientes de publicidade, mais tarde. Em 1950, quando Winogrand começou a fotografar, fazia três anos que ele, então com 22, deixara o exército. Uma fotografia que fez naquele ano, de um jovem e bem-apessoado marinheiro caminhando com uma sacola de viagem sob uma fileira de luminárias de rua em Nova York, é descaradamente romântica. É como um dos “stills de cinema” de Cindy Sherman, sem a ironia. Tanto Winogrand como o país sentiam-se otimistas. Uma década depois, fotografou uma moça bonita às voltas com uma bolsa e uma mala numa rua de Nova York, sozinha no fluxo humano, de olhos baixos, a boca determinada e as perspectivas incertas. As fotos poderiam servir como epígrafes de suas respectivas décadas.
Por volta de 1960, quando seus parcos rendimentos vinham ainda de revistas e agências de publicidade, Winogrand aumentou substancialmente a produção de fotografias não encomendadas. Havia descoberto seu filão. O temperamento encrespado e a formação proletária o condicionavam para a energia das massas das ruas de Nova York, e ele tinha uma visão da América tão singular quanto a de Frank. Embora tivesse Frank como ídolo, a ponto de evitá-lo pessoalmente, devido a um respeito reverente, era mais diretamente influenciado por seu amigo e mentor Dan Weiner, colega de profissão que, antes de morrer, ainda jovem, num desastre de avião, explorou os aspectos absurdos da vida americana com um humor comparável ao de Winogrand. Outros fotógrafos talentosos rondavam as ruas de Manhattan. Um deles era Lee Friedlander, amigo de velha data; e outro, Joel Meyerowitz, que no futuro viria a trabalhar em estreita ligação com Winogrand. No entanto, a maneira como Winogrand captava a cena era sem igual. Ele compreendia intuitivamente – talvez devido à familiaridade com conversas em família em que cada um falava sem ouvir o que os demais diziam – que uma cidade grande superpunha vidas individuais numa tela única, mais ou menos como um quadro de Pollock combinava meadas de cores, umas sobre as outras. Cada vida tinha sua própria configuração, e a superposição dessas configurações formava outra configuração, mais complexa. Uma das metas de Winogrand era encerrar a cacofonia palpitante da vida urbana num todo coerente. Ele tinha modos de impor coerência formal a cenas de atividades aleatórias: faixas de luz rasante, diagonais fortes (conseguia usar bandeirolas de golfe como Paolo Uccello usava lanças), perspectivas exageradas feitas com grande-angulares, e as repetições contínuas de colunas, caixilhos de janelas, aleias de árvores, paredes de blocos de concreto e cercas de tela de arame. Era um truque de pianista de jazz: se a mão esquerda está produzindo um ritmo regular, a direita pode fazer o que bem entender.
A tática de um fotógrafo para representar a vida moderna não é muito diferente da de um pintor. Uma maravilhosa fotografia feita por Winogrand na esquina da rua 42 com a Quinta Avenida utiliza várias das mesmas estratégias de composição da obra-prima de Gustave Caillebotte, Rua de Paris, dia de chuva, de 1887. Registrando as atividades díspares de estranhos que dividem um mesmo espaço público, os dois artistas lançam mão de elementos fortes para tornar a imagem coesa: dois grandes protagonistas à direita (aos quais o pintor acrescentou parte das costas de um terceiro); um enfático poste de luz, um pouco fora do eixo central; um meio-fio que demarca o espaço da calçada e o da rua; longos trechos de fachadas de prédios nos dois lados da cena; e uma extensa perspectiva em que pedestres, mais próximos ou mais distantes, caminham. Ambos destacam o espaço vazio que separa as pessoas. Mas como essas cenas parecem diferentes! Caillebotte, de criação burguesa como Bresson, posiciona seus transeuntes de classe alta – os dois protagonistas são um homem e uma mulher, bem vestidos, que dividem um guarda-chuva – no palco da Paris de Haussmann, executando um número de balé que não é menos civilizado por ser improvisado. No primeiro plano de Winogrand, uma velha com um lenço na cabeça olha de cara fechada para o fotógrafo, enquanto outra mulher, perto dela, com ar preocupado e distante, as mãos entrelaçadas e os lábios comprimidos, olha para baixo. Apesar da fachada clássica da Biblioteca Pública de Nova York, o que vemos é uma selva urbana.
Nas fotografias de Winogrand, é comum que as pessoas olhem em direções diferentes, mesmo quando falam entre si. O olhar delas é esquivo: uma idosa está ferida no chão, mas quase ninguém lhe dirige um olhar; uma garota fita a câmera, e não o rapaz que a beija com ardor. Na rua de uma cidade, tal como num circo de três picadeiros, a pessoa não sabe para onde olhar. Quando a multidão presta atenção a alguma coisa (um lançamento espacial, uma aparição dos Beatles ou algum outro foco de interesse que Winogrand normalmente não incluía na imagem), é quase certo que alguém, um sucedâneo do fotógrafo, estará olhando para o outro lado.
Winogrand não precisava de multidões para transmitir a sensação de solidão. Viajando, ele a encontrava a sua espera em casas isoladas e garagens abertas dos subúrbios de classe média. Numa foto famosa, Albuquerque, 1957, uma criança pequena brinca diante de uma casa que algum incorporador plantou no meio do deserto. A grande-angular do fotógrafo expande as distâncias, o que faz a entrada de concreto estender-se enormemente e o velocípede no meio dela parecer distante demais para que a criança, na porta da casa, consiga buscá-lo. Nos subúrbios americanos, um veículo é a única forma de sair, e esse subtexto irônico paira no ar seco. Afinal, aonde um carro pode levar alguém? Essa é a pergunta que faz Los Angeles, 1964, foto em que uma jovem elegante aparece em sua garagem, ao lado de um carro moderno, sob o beiral de uma edícula barata, no amplo mar de concreto que é a entrada da garagem.
Tudo isso pode dar a impressão de que as fotografias de Winogrand são sempre amargas, quando na verdade, por frias que possam ser, muitas vezes são engraçadíssimas. Trata-se de um tipo especial de humor, mordaz e judaico. Certa vez Winogrand disse a Tod Papageorge que todos os grandes fotógrafos eram judeus. Até mesmo Atget, certamente, era. E, com efeito (excetuando Atget), muitos dos grandes fotógrafos eram judeus. Mesmo nesse grupo, Winogrand era insuperável quando se tratava de encontrar as estranhezas felizes e inesperadas da vida urbana, as surpresas kafkianas. Talvez sua foto mais perturbadoramente cômica seja Zoológico do Central Park, Nova York, 1967. Um negro e uma loura, ambos jovens, bonitos e elegantes, carregam nos braços dois chimpanzés, carinhosamente vestidos. O que torna a fotografia inesquecível é a expressão séria e determinada do casal, como se vivessem um pesadelo com a paciência de Gregor Samsa. A foto impressiona com tanta força porque eles parecem pais preocupados, enfrentando com dignidade a surpresa que o destino lhes trouxe.
O que estava mesmo acontecendo nessa fotografia? Existe uma explicação simples, mas quando alguém quis dá-la ao crítico e fotógrafo John Szarkowski, um dos mais influentes promotores da carreira de Winogrand, ele disse que não queria saber, pois isso só serviria para diminuir o impacto da imagem. Como disse a fotógrafa Lisette Model, para Szarkowski uma fotografia não é o registro de uma realidade externa, e sim um objeto que “leva sua própria vida independente e projeta, queiramos ou não, sua magia”. No entanto, há uma razão mais particular para não nos aprofundarmos demais na origem das estranhas imagens de Winogrand. Elas são encontros fugazes, as coisas que notamos numa rua e que se esvaem antes que possamos fazer uma pergunta. Por que um macaco está gritando no banco traseiro de um conversível na Park Avenue? Por que uma mãe com duas crianças pequenas parou diante de uma lata de lixo em chamas? Na extrema variedade da vida moderna, esses enigmas saltam para longe assim que são propostos. Não há tempo para investigá-los. Como se quisesse realçar a velocidade da percepção, muitas vezes Winogrand clicava suas fotos em ângulos inesperados, de modo que as imagens parecem vislumbres entrevistos de esguelha. Em lugar das percepções da essência eterna de Bresson, ele evocava esquisitices fugazes.
A “estética do instantâneo” de Winogrand (uma expressão que ele detestava) levou algumas pessoas a desvalorizar seu trabalho por reputá-lo amadorístico. Não eram só críticos obtusos que pensavam assim. Walker Evans, o fotógrafo que Winogrand mais respeitava, não via valor nenhum em sua arte – na verdade, nem via seu trabalho como arte. Julgava as fotos muito atabalhoadas, seus temas crus e rudes demais. “Por que você gosta de fotografar pessoas assim?”, Evans perguntou certa vez a um estudante. “Elas parecem as pessoas que aquele cara, o Winogrand, fotografa. São tão vulgares!” Evans ajudou a promover a carreira de Lee Friedlander e Diane Arbus, os outros dois fotógrafos que – juntamente com Winogrand – Szarkowski incluiu na influente e hoje lendária exposição Novos documentos, de 1967. Por Winogrand, ele não moveu um dedo. Mesmo hoje, a indisciplina e o volume impressionante dos trabalhos de Winogrand ainda prejudicam sua reputação, menos sólida que as de Arbus e Friedlander.
Em 1984, aos 56 anos, Winogrand morreu de câncer. Seus últimos anos foram difíceis. Embora trabalhasse constantemente, até o fim, praticamente todas as suas fotografias conhecidas são de antes de 1971, quando ele deixou Nova York. Mudou-se primeiro para Chicago, depois para Austin (lecionou em universidades dessas duas cidades) e, por fim, para Los Angeles. Com o passar do tempo, fotografava mais que nunca, mas já não produzia ampliações de qualidade ou, por volta de 1979, não fazia nem provas de contato. No final, nem se dava ao trabalho de revelar os filmes. Quando morreu, havia exposto mais de 20 mil rolos de filme, ou mais de 700 mil imagens; 6500 desses filmes ele próprio nunca viu. Que tesouros estaria guardando?
Não muitos, ao que parece. Na retrospectiva da carreira de Winogrand organizada este ano pelo fotógrafo e escritor Leo Rubinstein, foi exibida pela primeira vez uma seleção desses trabalhos tardios. De modo geral, essas imagens não têm o vigor e a originalidade das fotografias antigas. Há muito menos atividade nelas. E o humor, quando surge ocasionalmente, é pueril ou cruel: por exemplo, um menino gordo, que lembra um carneiro, é mostrado numa feira agrícola ao lado de um carneiro premiado. O fascínio das melhores fotografias de Winogrand está em passar a ideia de empatia com as pessoas isoladas que elas mostram. Nos últimos trabalhos, ele está tão alheio a essas pessoas quanto elas próprias parecem alheias ao mundo em geral.
O braço estendido é um gesto repetitivo na carreira de Winogrand – pessoas que buscam fazer contato, em vão. Numa imagem de 1968, a mão de um branco põe uma moeda na palma de um mendigo negro. Não se vê o rosto do branco, apenas o punho, mas percebe-se que ele está prestes a depositar a moeda sem fazer contato físico com o beneficiário de sua caridade. Os dois homens estão separados por um abismo de raça e classe.
Por maior que seja esse abismo, os mais pungentes exemplos de conexões frustradas na volumosa obra de Winogrand (e suas fotos de beldades que ele nunca conheceria podem ser incluídas nessa categoria) são aqueles que separam pessoas e animais. Um golfinho sorridente e de olhos vivos observa um homem que limpa seu tanque com um rodo; uma senhora de óculos escuros dá as costas a dois rinocerontes que lhe ignoram. Separados por vidros ou barras de aço, pessoas e animais nunca se tocam. Não obstante, as fotos levam a crer que gostariam de fazê-lo. Raramente os rostos humanos denotam alguma coisa, e os animais são menos expressivos ainda. Mais que nas cidades fragmentadas ou nos subúrbios gigantescos, é na companhia de animais que as pessoas de Winogrand revelam a solidão insuperável da condição humana.///
Tradução do inglês de Donaldson M. Garschagen
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imagens: © Espólio de Garry Winogrand, cortesia Fraenkel Gallery, São Francisco
Garry Winogrand (1928-1984) nasceu em Nova York e morreu em Tijuana, México. Um dos mais destacados fotógrafos americanos das décadas de 1950 e 1960, publicou The Animals (1969), Woman Are Beautiful (1975) e Public Relations (1977)
Arthur Lubow escreve sobre cultura para The New Yorker, Vanity Fair e a revista do New York Times, entre outras publicações. Atualmente trabalha numa biografia da fotógrafa Diane Arbus.
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