Um garotinho jaz de bruços na praia
Publicado em: 8 de setembro de 2015Um garotinho jaz de bruços na praia, como se dormisse. Está usando camisa vermelha, calça azul, tênis e tem os cabelos bem penteados. Seu aspecto é pacífico. Alguém deveria acordá-lo, antes que o sol queime sua pele e as ondas geladas o alcancem.
Esta imagem começou a aparecer no Twitter, no Facebook e nas demais redes sociais na manhã de quarta-feira passada e rapidamente se tornou viral. Demorou até que surgissem mais informações a seu respeito. O menino era curdo e vinha da Síria; seu nome, Aylan Kurdi. Seus pais, fugindo de Kobane e dos fascistas do EI, pagaram a alguém 2300 dólares por cabeça por um lugar num barco de borracha que os levaria de Bodrum, na costa da Turquia, à ilha grega de Kos, distante cerca de cinco quilômetros dali; em seguida, planejavam seguir viagem rumo ao norte, até o Canadá. O barco estava superlotado, o mar Egeu, agitado, e o piloto pago para fazer a travessia era incompetente e covarde. O barco virou, lançando ao mar os 17 passageiros a bordo; pelo menos 12 se afogaram, todos sírios, incluindo-se o garotinho, Aylan, de três anos de idade, seu irmão Galib, de cinco, e a mãe deles, Rehan, que tentou erguer o filho caçula para mantê-lo fora d’água. Apenas o pai dos meninos sobreviveu para, enlutado, levar os corpos de volta a Kobane.
Esse garotinho é a mais recente vítima dentre os 2500 refugiados que já morreram este ano na tentativa de alcançar a Europa, muitos deles crianças. A maioria morreu afogada no Mediterrâneo, mas ao menos 85 se afogaram também no mar Egeu, boa parte durante a noite. O corpo tenro e sem vida jazendo na areia como se dormisse logo se tornou símbolo inescapável da tragédia humana que constitui a presente crise de refugiados. Essa crise de grandes proporções, que envolve centenas de milhares de pessoas, sintetizou-se subitamente no corpo de um garotinho numa praia. Ele parece estar tentando ouvir a voz do mar, que há de lhe dizer por que essa coisa terrível aconteceu.
O descompasso entre a inocência do menino e a brutalidade das circunstâncias de sua morte torna a imagem impossível de esquecer. Como foi que chegamos a esse ponto?
No Twitter, a imagem muitas vezes apareceu acompanhada da hashtag turca #KiyiyaVuranInsanlik, algo como “humanidade lançada na praia”. Muitos europeus xenófobos que criticam em altos brados tamanho afluxo de pessoas descrevem essa recente onda de refugiados como “um mar” ou “uma maré” que se lança na costa europeia, trazendo consigo doenças e pobreza. Mas, de repente, a onda adquiriu outro aspecto – o corpo de uma criança inocente arrebatado pela história. Talvez isso mude a maré.
Algumas pessoas criticaram a difusão da imagem on-line e em papel impresso, alegando que teria se dado pelos motivos errados, e que a fotografia apenas explora os sentimentos do público. Essa sempre foi a acusação dirigida a imagens que documentam temas difíceis. Mas esta imagem produzirá um efeito e pode, de fato, vir a mudar as coisas. Na verdade, parece já ter surtido efeito em David Cameron.
Uma das primeiras personalidades políticas a reagir a ela foi o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan. “As nações europeias que transformaram o Mediterrâneo num túmulo para imigrantes compartilham da culpa pelo pecado que representa cada imigrante morto”, disse ele. “Não são apenas os imigrantes que estão morrendo afogados no Mediterrâneo: é a humanidade também”. E isso vindo de um homem que faz vista grossa às atrocidades perpetradas pelo EI contra a família de Aylan Kurdi e contra tantas outras no norte da Síria, em particular contra os curdos, e que retomou sua guerra unilateral contra estes para obter vantagem política em sua luta para se manter no poder.
É quase certo que a fotógrafa que fez esta imagem, Nilufer Demir, da agência de notícias turca Doğan, não se deu conta da importância simbólica da foto no momento em que a tirava. Trata-se de uma daquelas imagens que parecem aflorar do inconsciente coletivo. A fotografia do garotinho morto já foi comparada à de Nick Ut, que mostrava uma menina vietnamita fugindo de um ataque de napalm em 1972, imagem da qual se diz que ajudou a voltar a opinião pública contra a guerra do Vietnã. Tampouco se pode deixar de comparar a imagem do menino à do corpo de Michael Brown, estendido na rua de cara para o chão durante horas. Também esta forneceu o combustível para as revoltas do ano passado contra a violência policial em Ferguson, no estado norte-americano de Missouri, deflagrando o movimento Black Lives Matter.
A foto que retrata a morte de Aylan Kurdi é, na realidade, uma imagem simples, mas ela não vai desaparecer, não por um bom tempo.
tradução de Sergio Tellaroli
David Levi Strauss (1953) é ensaísta e crítico de fotografia, autor de Words Not Spent Today Buy Smaller Images Tomorrow: Essays on the Present and Future of Photography (2014), From Head to Hand: Art and the Manual (2010) e Between the Eyes: Essays on Photography and Politics (2003), entre outros. A ZUM #9, a ser lançada em outubro de 2015, contará com um texto inédito de sua autoria.
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