Um Robert Capa mais falível e humano: entrevista com A. D. Coleman
Publicado em: 18 de setembro de 2015Há cerca de um ano, em junho de 2014, o crítico de fotografia A. D. Coleman publicou o primeiro de uma série de posts questionando o desempenho fotojornalístico de Robert Capa no Dia D, o desembarque das tropas aliadas na costa litorânea da França, em 6 de junho de 1944. Em parceria com fotógrafos, um historiador e um militar reformado, Coleman concluiu que Capa, o maior ícone e protótipo do fotógrafo de guerra, esteve no campo de batalha por menos de 30 minutos e usou apenas um rolo de filme para fotografar o início das operações bélicas de um dos momentos mais importantes da Segunda Guerra Mundial.
Após um post inicial, em que toda a polêmica foi introduzida a partir de suas distintas perspectivas, o site da ZUM agora entrevista Coleman, que reafirma o que escrevera em seus posts sobre o trabalho do fotógrafo. Segundo o crítico, os negativos desaparecidos e supostamente destruídos de Capa no Dia D encontram-se hoje intactos e disponíveis no International Center of Photography (ICP), em Nova York, informação negada pela curadora do instituto, Cynthia Young. Coleman também explica por que não divulgou para provar a sua teoria as cópias em baixa resolução dos negativos fornecidas pelo ICP.
Ele acredita que o editor de fotografia da Life, John Morris, retratou-se parcialmente diante da teoria levantada, embora continue a insistir na versão de que a maior parte dos negativos de Capa se danificou durante a revelação em 7 de junho de 1944 no laboratório da sucursal da revista em Londres. “Qualquer fotógrafo pode atestar que um filme que não foi exposto à luz apresenta-se claro, transparente, quando é revelado, e não tem uma aparência uniformemente opaca, como Morris descreveu em vários relatos anteriores à minha pesquisa”, diz Coleman. “A atitude dele agora é de desespero.”
Embora denuncie o que chama de “Consórcio Capa” pela preservação do mito de um fotógrafo de guerra destemido, Coleman diz que a intenção de suas investigações não é apresentar Capa como um covarde. “Se elas o tornam menos mítico ou heroico, é porque o fazem mais falível, humano”, conta. “Como resultado, ele ficou, a meu ver, mais complexo e multifacetado.”
Quanto à crítica de que seu tom é belicoso, Coleman invoca como inspiração Émile Zola e Oriana Fallaci. “Escolhi de propósito um tom mais rude, abrasivo e acusatório”, explica. “Tenho tratado a todos os envolvidos como se estivessem num tribunal, como se fossem testemunhas hostis que cooperam relutantemente e tentam ocultar a verdade, em vez de trazê-la à luz do dia.” Afirma ainda que a subserviência é a principal marca dos curadores, críticos, historiadores e jornalistas culturais envolvidos no fortalecimento do mito em torno do desempenho de Capa no Dia D. Leia a seguir a entrevista, realizada em setembro de 2015.
Francisco Quinteiro Pires: O senhor escreveu em seu blog que os negativos desaparecidos e supostamente destruídos de Capa no Dia D – os que ele enviou de Weymouth para Londres na manhã de 7 de junho, arruinados em um acidente de laboratório na noite do mesmo dia – encontram-se hoje intactos e disponíveis para estudo onde estiveram por anos: no Arquivo Robert e Cornell Capa do ICP, em Nova York. Quando entrevistada para confirmar essa informação, a curadora do instituto, Cynthia Young, nos disse que o instituto detém apenas nove negativos sobreviventes do desembarque na praia de Omaha em 6 de junho de 1944. O senhor afirmou ter cópias em baixa resolução dos negativos oferecidas pelo ICP. Por que até agora não as publicou para provar sua teoria?
A. D. Coleman: É verdade que o ICP detém apenas nove negativos das dez exposições feitas por Capa na praia de Omaha. Elas representam todas as que Capa fez por lá, durante a sua breve passagem. Também é verdade – como eu revelei nos posts sobre a minha visita ao arquivo de Capa no ICP no ano passado – que o instituto possui partes de quatro rolos de filme 35 mm adicionais que registram imagens logo antes da invasão, feitas durante o embarque dos soldados em Weymouth e a caminho da Normandia, além de anotações que descrevem a existência de um quinto rolo que desapareceu. O ICP nunca publicou ou exibiu esses rolos do arquivo de Capa ou anunciou sua existência.
Todos esses rolos foram enviados para Londres em uma remessa quando Capa voltou a Weymouth na manhã de 7 de junho de 1944. Isso é o que Capa nos conta em seu livro de memórias [Ligeiramente fora de foco, 1947]. Eles chegaram a Londres às 21h junto com outros rolos utilizados em sua câmera Rolleiflex que registram imagens pré e pós-invasão. John Morris também nos contou essa história por 70 anos. Meu argumento é que Capa, de fato, enviou para Morris todos os seus filmes 35 mm da sua cobertura completa do Dia D, mas a maioria dos negativos contém imagens anteriores ao início das operações na praia de Omaha. Se seguirmos o princípio da navalha de Occam, essa seria a explicação mais direta para a presença dos rolos adicionais na coleção do ICP.
Quanto a não ter publicado as cópias em baixa resolução dos negativos da pré-invasão fornecidos pelo ICP, eu simplesmente honrei um acordo: Cynthia Young os forneceu para mim com o entendimento de que não seriam publicados, eram apenas para consulta. Penei bastante em meus posts para divulgar os números de acesso e dar informações em detalhes para qualquer estudioso qualificado chegar a esse e a outros materiais no arquivo de Capa no ICP e, assim, verificar as minhas descobertas. As cópias, devo dizer, foram feitas por minha sugestão. Essa ideia nunca ocorreu aos principais especialistas em Capa no ICP.
Agora Morris conta uma nova história que propõe uma explicação para esses rolos adicionais. Ele os recebeu numa remessa até então nunca mencionada e realizada pelo fotógrafo da Life David Scherman, para quem Capa magicamente teria transferido seus rolos sem nenhuma razão, enquanto Scherman e ele atravessavam o Canal da Mancha rumo à Normandia em embarcações separadas, na calada da noite e sem comunicação por rádio. Capa nunca mencionou a transferência de seus rolos com imagens da pré-invasão para Scherman numa remessa realizada mais cedo. Scherman nunca mencionou tê-las recebido e enviado.
Essa remessa anterior teria desaparecido da memória de Morris, e ele nos conta agora, depois de 70 anos e várias entrevistas. Ainda assim, quer que acreditemos que foi isso o que aconteceu: ele recebeu uma remessa mais cedo, revelou os rolos e os editou em 6 de junho, horas antes de as imagens do Dia D tiradas por Capa terem chegado separadamente. Isso não é impossível do ponto de vista lógico, mas contradiz todos os relatos que Morris fez sobre o envio dos filmes por Capa. Por que Capa teria se dado ao trabalho de transferir as exposições da pré-invasão para outro fotógrafo que não estava retornando para a Inglaterra, mas indo com as tropas aliadas para cobrir o início da invasão?
Quando entrevistei Cynthia Young sobre os seus posts, ela repetiu a mesma história sobre o derretimento da emulsão contada por John Morris e perpetuada por Richard Whelan, o antecessor dela na curadoria do ICP. Embora Morris tenha mencionado a existência da teoria que o senhor propõe, ele nunca fez um mea culpa definitivo. Não seria interessante para Morris confirmar sua teoria e assim se livrar da responsabilidade de ser o responsável pela administração do laboratório onde se arruinaram as imagens do Dia D tiradas por Capa?
Na verdade, Morris fez um mea culpa sobre partes centrais de sua história. Em uma entrevista conduzida por Mark Edward Harris para a revista B&W em 2014, em uma entrevista por e-mail para mim publicada em meu blog, em uma entrevista para o programa de Christiane Amanpour na CNN e em um texto de janeiro de 2015 que ele divulgou com o título “O Ataque de A. D. Coleman”, Morris confirma que nunca viu os negativos com qualquer sinal de emulsão derretida, que é bem possível que Capa tenha feito apenas as dez exposições do Dia D conhecidas e que tenha estado somente meia hora ou até menos no campo de batalha, e que está aliviado de não ser o responsável pela perda de nenhum dos negativos de Capa.
É risível a nova teoria proposta por Morris para explicar por que antes havia visto outros rolos de filmes cujas superfícies ele descrevera antes como uniformemente opaca. Ele diz que Capa lhe enviou uma segunda remessa, mais tarde, na qual o fotógrafo teria incluído três rolos de filme não usados e apenas um parcialmente usado. Até então Morris relatava ter recebido somente uma e não duas remessas.
Fotógrafos profissionais não misturam rolos usados com não usados, até porque estes e aqueles são diferentes. Em rolos não usados, uma parte do filme aparece fora de seu compartimento, enquanto nos usados essa parte some. Qualquer fotógrafo pode atestar que um filme que não foi exposto à luz apresenta-se claro, transparente, quando é revelado, e não tem uma aparência uniformemente opaca, como Morris descreveu em vários relatos anteriores à minha pesquisa. A atitude dele agora é de desespero.
De acordo com sua teoria, Capa esteve no campo de batalha por menos de 30 minutos e usou apenas um rolo de filme para fotografar o desembarque das tropas aliadas na praia de Omaha. O militar reformado Charles Herrick escreveu que Capa teria chegado à mesma praia duas horas depois do desembarque dos primeiros soldados. Essa teoria torna Capa um covarde e reduz o valor de suas imagens?
As fotografias que ele fez são o que elas são. Nossa investigação não desafia a autenticidade delas ou afeta seu significado como documentos históricos. Pelo contrário, eu acho que aumentamos seu valor ao descobrir fatos desconhecidos sobre elas. Essas imagens vêm dos únicos negativos que Capa usou aquele dia na Praia de Omaha. Elas não foram danificadas posteriormente durante a revelação, por isso representam exatamente o que Capa registrou no filme fotográfico. Os rolos de 35 mm da Kodak usados por Capa são um pouco menores para sua câmera Contax II, o que resultou em mudanças na superfície do filme exposto à luz, nada que se refira a uma catástrofe ocorrida em laboratório, como depois repetiram Richard Whelan e Cynthia Young. Além de indicar quando e onde foram tiradas, essas fotografias mostram cenas da segunda leva de soldados, não da primeira, o que confirma que Capa chegou depois do início das operações militares. As pessoas em algumas das imagens não eram soldados assustados com o fogo inimigo, conforme escrito na legenda da revista Life, e sim engenheiros militares responsáveis pela demolição dos obstáculos colocados na praia para evitar o avanço das tropas aliadas. Esperamos que futuros estudiosos examinem e aproveitem essas novas informações.
Documentos militares mostram que Capa não chegou com os primeiros soldados. E, após chegar, ficou apavorado e fugiu rapidamente. Isso faz de Capa um covarde? Acho que essa é uma questão equivocada. Certamente, não é o motivo de nossa pesquisa, cuja prioridade é o mito criado sobre a permanência de Capa na praia de Omaha e a história narrada por John Morris para explicar as poucas fotos que Capa tirou na ocasião. Esse relato, construído em 8 de junho de 1944, em Londres, foi depois confirmado por Capa em seu livro de memórias e animadamente disseminado pelo que chamo de Consórcio Capa.
Capa teve um ataque de pânico na Normandia. Ele admite isso em Ligeiramente fora de foco: afirma que passou boa parte da viagem de volta para Weymouth lamentando-se por ser covarde. Um momento de covardia, mesmo que em uma hora crucial, define o que uma pessoa é para sempre? Capa mostrou coragem antes e depois do Dia D, simplesmente por estar presente em situações altamente perigosas. Com a reputação de “o maior fotógrafo de guerra do mundo”, ele não podia aceitar que não estivesse na linha de frente durante uma batalha e que teve de deixá-la relutantemente.
Isso pode soar estranho, mas minhas descobertas não diminuem meu respeito por Capa e não deveriam ter esse efeito em outras pessoas. Se elas o tornam menos mítico ou heroico, é porque o fazem mais falível, humano. Como resultado, ele ficou, a meu ver, mais complexo e multifacetado. A história da criação desse mito, que passa pela imagens do Dia D e pelo destino de seus negativos, está mais rica e, também, reveladora dos mecanismos de funcionamento da indústria do fotojornalismo.
Alguns jornalistas franceses escreveram sobre sua teoria, mas a imprensa nos Estados Unidos permaneceu em silêncio. Recentemente, quando pesquisadores questionaram a legitimidade de outra fotografia célebre de Capa, A morte do soldado legalista, o New York Times publicou uma reportagem sobre o assunto. Há uma explicação para o silêncio dos jornalistas norte-americanos sobre seu trabalho?
Eu não tenho uma explicação para a falta de interesse em nosso projeto pela imprensa de meu país e de outros. Ainda assim, admira-me o fato de nosso projeto ter sido divulgado na França, Bélgica e Suíça depois de Patrick Peccatte ter escrito sobre ele em seu blog especializado em fotografias da Normandia feitas antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Le Monde, Libération, L’Obs, Le Figaro [periódicos franceses que criticaram os achados de Coleman], quem poderia prever a reação deles? Peccatte me contou estar tão surpreso quanto eu. É fascinante testemunhar o que está acontecendo.
Peccatte acompanhou nossa pesquisa enquanto ela se desenvolvia, tendo chegado a ela com grande conhecimento dos eventos do Dia D, vindos de seus próprios estudos; leu-a com ceticismo, mas gradualmente se convenceu diante das evidências de que estávamos pelo menos parcialmente certos. Depois, escreveu um resumo acurado e denso, em que menciona sua resistência inicial aos nossos argumentos e sua paulatina mudança de opinião.
Embora não fosse nossa intenção, o que acumulamos on-line é intimidador: cerca de 50 posts. A paciência de Peccatte com nosso trabalho e seu excelente sumário em francês colocaram à disposição de quem lê esta língua as principais questões de nossa pesquisa.
Jornalistas e críticos apontaram o tom agressivo dos seus posts. Qual seria sua resposta a eles?
Quanto ao tom, deixe-me antes declarar que os 70 anos de respeito e polidez de críticos, historiadores e jornalistas culturais em relação ao “Consórcio” resultaram no fortalecimento contínuo do mito do desempenho do fotojornalista no Dia D. Isso apenas consolidou a credibilidade daqueles que promulgaram o mito em proveito próprio e em benefício das instituições às quais pertencem. A subserviência de Yasmine Youssi em uma entrevista com Morris publicada na Télérama, em junho de 2014, exemplifica esse modo de escrever perfis bajulatórios em revistas. Notável e previsivelmente, Youssi devotou um artigo na mesma publicação para atacar o nosso projeto.
Escolhi de propósito um tom mais rude, abrasivo e acusatório. Tenho tratado a todos os envolvidos como se estivessem num tribunal, como se fossem testemunhas hostis que cooperam relutantemente e tentam ocultar a verdade, em vez de trazê-la à luz do dia.
Embora possa ser cansativa de ler, se avaliado o resultado de nossa sondagem descortês e brusca é possível perguntar o seguinte: o repentino desmoronamento desse mito ocorreu como consequência direta de nossa decisão estratégica de adotar, em vez de reverência, uma abordagem acusatória e confrontadora em relação a Morris e aos outros? Essa atitude não é uma raridade no jornalismo investigativo. Temos vários antecessores que usaram esse método, de Émile Zola a Oriana Fallaci. O fato de que poucos críticos de fotografia o tenham adotado não o torna inapropriado.
O senhor publicou o primeiro de seus posts sobre Capa e o Dia D em junho de 2014. Desde então não parou de escrever sobre o assunto. Há mais novidades?
Tenho mais posts para publicar, embora preveja que a série sobre Robert Capa será concluída até o fim deste ano. Em breve, Charles Herrick [militar reformado cuja pesquisa diz que Capa chegou à Praia de Omaha duas horas depois das primeiras tropas aliadas] vai mostrar onde exatamente e em que condições Capa desembarcou na Normandia. Patrick Jeudy, cineasta francês, vai descrever a resistência que encontrou para fazer seu filme Robert Capa, o homem que queria acreditar em sua própria lenda. E eu vou expor em detalhes os papéis desempenhados na criação e na promoção de um mito pelo Consórcio Capa, que inclui, é claro, o próprio Capa.///
Leia o primeiro post sobre a polêmica em torno das icônicas imagens do Dia D feitas por Robert Capa aqui.
Francisco Quinteiro Pires (1982) é jornalista. Nasceu no Brasil e vive em Nova York desde 2010.
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