ZUM Quarentena

A fotografia como objeto pós-industrial

Márcio Seligmann-Silva & Vilém Flusser Publicado em: 12 de maio de 2020

No centenário de nascimento de Vilém Flusser, abrimos o ensaio “A fotografia como objeto pós-industrial”, publicado na ZUM #7. Nesse texto profético escrito em 1985, o filósofo tcheco naturalizado brasileiro descreve o mundo pós-revolução digital, da imagem virtual às redes sociais. A matéria traz ainda nota do professor Marcio Seligman-Silva sobre Flusser, além de um ensaio visual do artista Mario Santamaría.

 

Objetos

Tanto o termo latino obiectum como seu equivalente grego problema designam aquilo que se “lança contra”, o que implica a existência de algo contra o qual o objeto é lançado: um subiectus, ou sujeito. Como sujeitos, estamos diante de um universo de objetos, de problemas que, de alguma forma, nos são lançados. Essa oposição é dinâmica. Provenientes do futuro, os objetos se aproximam do sujeito. E os sujeitos, por sua vez, se projetam no futuro, no universo dos objetos. O choque entre sujeito e objeto ocorre pela abismal alienação que os separa. A tendência hoje é transferir esse choque, deslocando-o dos sujeitos humanos para os aparelhos automáticos. As câmeras automáticas são um exemplo disso.

O choque com os objetos ocorre porque eles atravessam nosso caminho. Estão onde não deveriam estar. Esse choque entre sujeito e objeto é o choque entre “o que é” e “o que deveria ser”, entre realidade e valor. O sujeito busca injetar valor no objeto mediante “trabalho”. Objetos modificados pelo trabalho são objetos culturais. A tendência atual é transferir esse trabalho, que passa a ser realizado não por sujeitos humanos, mas por uma aparelhagem automática. Os objetos contra os quais ocorre o choque são, de alguma forma, dados – eles são data. Os objetos culturais são feitos – eles são facta. Trabalhar é processar dados e transformá-los em fatos. A aparelhagem automática é capaz de realizar esse processamento dos dados. Somos hoje testemunhas de uma revolução cultural.

Objetos culturais

Dados apresentam-se ao sujeito sob várias formas (ou Gestalten). O sujeito tenta modificar essas formas de modo a torná-las o que elas deveriam ser, e o faz “informando” os dados. Para tanto, é necessário que ele os imobilize (ou seja, que os entenda) e os apreenda (isto é, os conceba). O ato de entender vincula-se aos olhos; a esse olhar que faz com que os dados se detenham, os gregos chamaram theoria. A concepção, por outro lado, está ligada às mãos e aos dedos; os gregos deram a esse tipo de gesto o nome de praxis. Para eles, havia uma contradição entre o entendimento teórico e a ação prática. (Kant formalizou essa contradição entre as “razões” teórica e prática por meio de uma distinção entre as categorias da razão pura e do “imperativo categórico”.) O primeiro parece conduzir ao saber (sophia); a segunda, à mera opinião (doxa). Assim, na tradição ocidental, a filosofia (o amor pelo saber) acabou por desprezar a ação.

Em decorrência disso, o entendimento teórico lançou pouca luz sobre os objetos culturais (dados transformados em fatos). O trabalho era, em grande parte, um gesto empírico. Os objetos culturais eram, em grande medida, produto das mãos e dos dedos, trabalho de artesãos e artistas.

Objetos industriais

O século 15 estabeleceu uma dialética entre teoria e práxis. Passou-se a olhar com o propósito de apreender melhor, e a apreender com o intuito de ver melhor. A teoria tornou-se hipotética: a prática podia desmenti-la. E a práxis fez-se experimental: ela aplicava o conhecimento teórico. Nasceu assim a ciência moderna.

O século 18 valeu-se da ciência moderna para decompor o trabalho em dois elementos: um, concernente à forma a ser imposta aos dados; outro, à imposição em si dessa forma. Isso resultou nas máquinas e nas máquinas-ferramentas – a Revolução Industrial. Um objeto (ou datum) é introduzido numa máquina (uma aplicação prática do entendimento teórico no gesto de trabalhar). Ali, ele é impresso por uma máquina-ferramenta (aplicação prática do entendimento teórico acerca da conformação). O resultado é um novo tipo de objeto cultural: o objeto industrial. As consequências disso se revelaram profundas. Artesãos e artistas foram marginalizados, e a sociedade foi dividida entre proprietários de máquinas e máquinas-ferramentas, construtores de máquinas e máquinas-ferramentas, e servos de máquinas e máquinas-ferramentas.

Os objetos industriais distinguem-se dos pré-industriais em dois aspectos. Em primeiro lugar, são mais numerosos – mais rápidas que os humanos, as máquinas produzem mais objetos que eles, o que resulta numa inflação, numa desvalorização dos objetos culturais. Em segundo, os objetos industriais são estereotípicos: a mesma ferramenta imprime uma mesma forma a uma série de objetos, tornando os objetos culturais equivalentes entre si. Essa progressiva desvalorização dos objetos culturais, essa indiferença em relação a eles é chamada de “cultura de massa”.

Objetos pós-industriais

À medida que os objetos culturais foram se tornando cada vez mais baratos, e as máquinas e ferramentas, cada vez mais caras, disseminou-se a crença de que os proprietários de máquinas e ferramentas possuíam também o poder de decisão. Essa crença é uma das raízes do marxismo. Mas, tão logo ficou evidente que “forma” e “valor” são sinônimos, que são os construtores de ferramentas que conformam o futuro da sociedade, tal crença se modificou. Hoje, acredita-se que o poder de decisão esteja com os construtores de ferramentas (“programadores da informação”).

Assim, a produção de informação (a elaboração da informação a ser imposta aos dados) distinguiu-se claramente do trabalho (a imposição em si da informação aos dados). O trabalho passou a ser entendido como um movimento mecânico, indigno de sujeitos humanos. O resultado disso foram as máquinas automáticas, os robôs. Um pouco mais tarde, descobriu-se que até mesmo a elaboração da informação tem aspectos mecânicos. Resultou daí a inteligência artificial automática. Assim, o choque entre sujeito e objeto foi transferido do ser humano para os aparelhos, e o primeiro tornou-se uma espécie de juiz desse embate, porque é aquele que programa a informação a ser elaborada por computadores.

A sociedade pós-industrial será uma sociedade em que a maioria das pessoas se ocupará dessa programação. Objetos pós-industriais se distinguirão dos industriais na medida em que vão se tornar suporte quase sem valor para a informação programada. (Hoje, o valor de uma caneta-tinteiro de plástico reside quase inteiramente em sua forma, e apenas em medida insignificante em seu material, o plástico.) A rigor, objetos pós-industriais não serão mais “objetos” de verdade. Se definimos a cultura como armazenamento de valores, esse armazenamento não acontecerá mais em objetos, mas em outras formas de memória, como se verá adiante.

Para resumir a discussão do termo “objeto”: seres humanos são sujeitos de objetos que atravessam seu caminho. Eles precisam modificar esses objetos. Tal modificação é entendida cada vez mais pela teoria e pode ser melhorada na prática  –  isto é, até que os seres humanos não precisem mais deparar com objetos em seu caminho rumo ao futuro. Então, os seres humanos poderão ser substituídos por aparelhos. Desse ponto em diante, eles já não serão sujeitos de verdade.

Fotos

Fotos são, na prática, suportes de informação desprovidos de valor. A informação é elaborada por uma aparelhagem automatizada cada vez mais sofisticada. Uma análise crítica das fotos (uma “filosofia da fotografia”) pode, pois, ajudar a entender o que se passa ao nosso redor.

A informação que a foto carrega situa-se em sua superfície, e não no interior de seu corpo, como acontece com os sapatos ou as canetas-tinteiro. Embora isso pareça ser verdade para todas as imagens, não é bem assim. Imagens pré-industriais são valiosas como objetos porque, destruído seu corpo, perde-se a informação que elas carregam, da mesma forma como ocorre com sapatos e com canetas-tinteiro. Fotos não valem nada como objetos porque a informação que elas carregam está armazenada em outra parte e pode facilmente ser transferida de uma superfície sem valor a outra.

Fotos e qualquer material impresso têm em comum o seguinte: ambos podem gerar um desperdício despropositado de material. Em um texto impresso, porém, é um sujeito humano – um “autor” – que elabora a informação (a não ser que um processador de texto seja utilizado), ao passo que, na foto, isso é realizado por um aparelho. Um objeto pós-industrial é objetivamente desprovido de valor e carrega informação que pode ser replicada e que foi elaborada por um aparelho automatizado. Assim, se desejamos apreender a foto (e a cultura pós-industrial como um todo), devemos nos concentrar na câmera (e nos aparelhos de modo geral).

Aparelho

Um aparelho é uma máquina que elabora informação. Uma situação é tanto mais informativa quanto menos provável ela for. Em um texto em inglês, por exemplo, a letra z é mais informativa que a letra a, assim como um pinguim andando na rua é mais informativo que um carteiro. Um aparelho é uma máquina que calcula probabilidades. Os seres humanos costumavam fazer a mesma coisa e davam a isso o nome de “criação”. Eles elaboravam empiricamente situações improváveis e costumavam dar a seu empirismo nobres designações, como “intuição”. Os aparelhos têm melhor desempenho, porque se valem de teorias da informação.

Isso cria um problema filosófico. O universo dos objetos dados (“natureza”) tende a uma progressiva perda de informação, a uma distribuição (cada vez mais provável) dos elementos que o compõem. A cultura se constitui de um armazenamento de situações improváveis que a humanidade opõe a essa tendência insensata e natural à perda de informação, à “morte térmica”, ao esquecimento. É por isso que informação e valor são sinônimos. Todavia, se o aparelho pode substituir a humanidade na criação de informação, como fica o comprometimento humano? Como ficam os valores?

Três tipos de foto

Retomando e reformulando o problema filosófico, podemos diferenciar três tipos de fotografia: as fotos feitas por câmeras inteiramente automatizadas (por exemplo, uma foto feita por um satélite da Nasa); as fotografias amadoras (uma foto, por exemplo, do cachorro do fotógrafo diante do duomo de Florença); e as fotos profissionais (como é o caso de uma foto experimental). O primeiro tipo carrega informação programada por seres humanos e elaborada por um aparelho. O terceiro tipo carrega a informação pretendida pelo fotógrafo, mas essa intenção pode ser contrária àquela que programou o aparelho. É o segundo tipo de foto, muito mais comum, que nos interessa aqui.

O fotógrafo amador aperta o disparador sempre que possível, transformando-se, na verdade, num disparador automático. O amador fotografa tudo o que a câmera é capaz de fotografar, ele tenta exaurir o programa da máquina. O resultado disso é que a informação que suas fotos carregam na verdade não foi pretendida nem por ele nem pelo programador da câmera. Suas fotos são meras virtualidades dentro do programa da câmera, tornadas reais por um gesto automático de disparo. Isso enseja o mais puro terror: um aparelho escapou à intenção humana e agora realiza todas as suas virtualidades automaticamente (incluindo-se aí a autodestruição, de  acordo com o teorema de Gödel, que afirma que todo sistema contém sua própria destruição). Trata-se de uma visão apocalíptica, se aplicada, por exemplo, ao aparato político ou termonuclear.

Instantâneos fotográficos carregam pouca informação. Seu conteúdo é o provável. Alguns deles, no entanto, são altamente informativos, difíceis de transportar para o futuro, e por uma razão bastante curiosa: são  fotos ruins. Elas devem sua informação a um erro, a um desvio em relação ao programa da câmera. Conhecemos bem esse tipo de informação que resulta do erro. Novas espécies biológicas surgem por intermédio de erros na transmissão do programa genético. Na verdade, esse desvio em relação ao programa, desvio provocado pelo erro, é responsável por toda a informação produzida pela natureza. Um aparelho que escapou à intenção humana, que realiza automaticamente todas as suas virtualidades – e que, por erro, desvia-se de seu programa  – trabalha como a natureza. Isso implica que uma sociedade dominada por aparelhos incontrolados será lançada de volta ao terror da automaticidade cega e absurda, a um estágio pré-cultural.

O desafio é controlar o aparelho. É o que mostra o terceiro tipo de foto. Quando o fotógrafo experimental se desvia do programa da câmera, ele o faz intencionalmente, e não como consequência de um erro. Permanece, contudo, um problema: a despeito da intenção de  se desviar do programa, o fotógrafo só pode fotografar o que está contido como virtualidade no programa da câmera. Esse é o aspecto da famosa “dialética interna da liberdade” que teremos de enfrentar no futuro pós-industrial.

Para resumir essa discussão da foto como exemplo do futuro pós-industrial, pode-se dizer que os objetos tendem a se tornar suportes para a informação desprovidos de todo e qualquer valor. A maior parte dessa informação é elaborada pelo aparelho automático em consonância com um programa humano (em sua origem). O aparelho tende a escapar dessa intenção humana (original). O comprometimento humano se volta, portanto, não mais para a elaboração de programas, e sim para o desvio: ele já não se dedica à criação de valores, e sim a se desviar desses valores.

Fotos eletromagnetizadas

As fotos estão prestes a migrar de  seu  suporte  mate- rial para o campo eletromagnético, a abandonar sua química: elas não serão mais vistas  em  papel,  e  sim em telas.  Isso  constitui  uma  revolução  técnica,  e,  em essência, todas as revoluções culturais possuem uma base técnica. A revolução neolítica, por exemplo, baseou-se na  agricultura,  assim  como  a  industrial  se baseou nas máquinas. Estamos, pois, em meio  a  uma revolução cultural.

A nova foto distingue-se da fotografia química de três maneiras: 1) na prática, ela é eterna; não está  sujeita à entropia, o segundo princípio da termodinâmica; 2) ela pode se mover e produzir som; 3)  ela pode  ser  modificada  por  seu  receptor.  Isso  se  aplica a toda informação eletromagnetizada (ao vídeo, por exemplo, ou a toda sintetização computadorizada), mas, no caso da fotografia, pode-se ver de que  manei-  ra a informação abandona sua base material.

Memória

Objetos são ruins como memória: o papel se transforma em cinzas; edifícios, em ruínas; civilizações inteiras caem no esquecimento. Os seres humanos se empenham na preservação da informação que criam, na luta contra a entropia, contra o esquecimento. Em sua busca pela imortalidade, eles sempre tentaram encontrar algo aere perennius, algo capaz de resistir mais que o bronze à entropia. E encontraram: o silício (e, melhor ainda, a memória do futuro próximo, feita de fibras nervosas) garantirá que toda informação criada sobreviva à espécie humana. As novas fotos podem ser armazenadas nesse tipo de memória.

Arte total

Desde o século 15, a civilização ocidental padece do divórcio entre duas culturas: a ciência e suas técnicas (a cultura “verdadeira” e “útil”), de um lado; as artes (a beleza), de outro. Essa é uma distinção perniciosa. Toda proposição científica, todo dispositivo técnico, tem uma qualidade estética, assim como toda obra de arte apresenta uma qualidade epistemológica e política. Mais importante que isso, inexiste qualquer distinção fundamental entre a pesquisa científica e a artística: ambas são ficções em busca da verdade (hipóteses científicas são ficções). Imagens eletromagnetizadas põem fim a esse divórcio, porque resultam da ciência e estão a serviço da imaginação. Elas são o que Leonardo da Vinci costumava chamar de fantasia esatta. Uma imagem sintética de uma equação fractal é tanto uma obra de arte como um modelo a serviço do conhecimento. Assim, a nova foto acaba não apenas com a classificação tradicional das várias artes (ela é, a um só tempo, pintura, música, literatura, dança e teatro) como também com a distinção entre as “duas culturas” (ela é ambas as coisas: arte e ciência). Ela torna possível uma arte total com a qual Wagner jamais sonhou.

Diálogo

A sociedade totalitária é discursiva: ela emite informação, como a imprensa diária ou a televisão. A sociedade democrática é dialógica: ela permite a troca de informações, como ocorre com o telefone. No momento, essas duas formas se sobrepõem, mas o discurso predomina. A nova foto mudará isso. Cabos e outros canais de mão dupla carregarão informação nos dois sentidos. A nova foto pode ser modificada por seu receptor e, uma vez modificada, enviada de volta ao remetente. Todos serão capazes de colaborar na elaboração da informação (dentro dos limites impostos pela automação). Pela primeira vez desde a Revolução Industrial, a democracia se tornou tecnicamente possível.

Em resumo, a nova foto será diferente da fotografia química porque, na prática, será eterna; ela tornará possível a arte total e permitirá que a democracia funcione.

Les immatériaux

O propósito da recente mostra organizada por Jean-François Lyotard, intitulada Les immatériaux e sediada no Centro  Pompidou de Paris [aberta em março de 1985], foi mostrar que aspecto terá a futura sociedade da informação pura. A exposição contou com vários tipos de imagens eletromagnéticas: fotos em movimento tanto dos satélites de Júpiter como de partículas e de intestinos durante a digestão, além de imagens de equações matemáticas e de objetos “impossíveis”, como cubos de quatro dimensões e hologramas cambiáveis, tudo isso regado a som sintético e com comentários feitos por vozes sintéticas. Não havia um único objeto presente: apenas informação imaterial. Do ponto de vista da cultura industrial, era tudo completamente inútil: nada ali se prestava ao consumo, apenas à contemplação. Se, no futuro, as pessoas se concentrarem na produção de informação tão inútil e relegarem a produção de objetos úteis a máquinas automáticas e inteligências artificiais, então teremos uma cultura igualmente inútil.

Mas, de outro ponto de vista, a mostra sugere que é precisamente essa inutilidade da informação pura que, pela primeira vez na história, permitirá à humanidade levar uma vida plena de significado. Os antigos acreditavam que o ócio (scholé) era o propósito de toda ação (a-scholia). Graças às máquinas automáticas, a humanidade está se tornando desempregada e, portanto, livre para dedicar-se à inútil elaboração dialógica da informação pura. Isso, é claro, se chama “brincar” ou “jogar”, e a presente revolução cultural pode ser vista como uma transformação do homo faber em homo ludens. Todas as questões sérias serão relegadas aos aparelhos, e a nova geração vai jogar seus jogos e olhar com desdém para o passado, para a seriedade animal das gerações anteriores.

Intersubjetividade

A futura cultura da informação imaterial, como a nova foto exemplifica, desdenhará dos objetos: ela os consumirá sem prestar nenhuma atenção neles. Nesse sentido, o ser humano não se sujeitará mais aos objetos. Livre de enfrentar o universo dos objetos, o indivíduo estará, antes, e por numerosos canais, ligado a outras pessoas, com as quais trocará informações. Essa comunidade estará fora do espaço-tempo. Todas essas pessoas, onde quer que estejam, estarão sempre presentes com o indivíduo. Pode-se chamar essa espécie de existência de “intersubjetiva”, a fim de distingui-la da existência subjetiva. Por enquanto, é impossível formular as categorias de tal existência. Se pudéssemos, teríamos transposto o abismo que separa a velha forma de existência da nova.

A nova foto, pois, é exemplar da cultura emergente da informação imaterial. Toda as atividades úteis serão executadas por aparelhos. Cada indivíduo vai se tornar livre para elaborar a informação pura num diálogo com os demais. Essa informação será armazenada em memórias imperecíveis. Teremos a arte total, e todo ser humano se converterá, potencialmente, num artista universal. O ser humano não mais existirá como sujeito de um universo objetivo, e sim como um nó no interior de uma rede social que transcenderá espaço e tempo. Isso, claro, é utópico. Catástrofes poderão impedir esse desenlace. Ainda assim, essa é uma utopia que se tornou tecnicamente possível. ///

 

A câmera no espelho: os autorretratos acidentais da câmera-robô do Google Art Project, no Palais Garnier de Paris, lembram, muitos anos depois, o mundo das máquinas discutido por Vilém Flusser. As imagens de tela, extraídas do projeto que oferece visitas virtuais a museus e galerias de arte do mundo todo, foram encontradas pelo artista Mario Santamaria

 

Bibliografia

Este texto se baseia em quatro ensaios de minha autoria. Dois deles foram publicados em português, no Brasil: Naturalmente e Pós-história. Os outros dois saíram na Alemanha: Für eine Philosophie der Fotografie (Filosofia da caixa preta) e Ins Universum der technischen Bilder (O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade), 1985. Além disso, ele contém elementos de um ensaio que ora escrevo sobre o futuro da escrita.

A sessão que trata dos objetos foi influenciada pela distinção heideggeriana entre Ding (“coisa”) e Zeug (“instrumento”), pela obra de Abraham Moles sobre a teoria dos objetos e pela crítica adorniana da dialética marxista.

O segmento que versa sobre a fotografia química (a fotografia comum) é parte de uma resposta à argumentação de Roland Barthes sobre o assunto e dá continuidade às reflexões de Walter Benjamin. De certo modo, é também uma aplicação da teoria da informação ao problema da criatividade, experimentada, por exemplo, em Estrasburgo. O final dessa sessão é uma tentativa de incorporar à discussão as contribuições de Adam Schaff e Ernst Bloch.

O último segmento, que trata da foto eletromagnética (o novo tipo de fotografia), é uma síntese entre a “nova crítica” (conforme proposta por Sedlmayer e outros) e a análise de Martin Buber da existência intersubjetiva. O bloco final foi escrito quando preparava um colóquio com Jean Baudrillard, a ser transmitido pela televisão alemã, em evento marcado para 26 de fevereiro de 1986. ///

 

Traduzido do inglês por Sergio Tellaroli

 

 

Uma nota sobre Vilém Flusser

por Márcio Seligmann-Silva

 

Vilém Flusser foi um dos filósofos mais originais da segunda metade do século 20. E só agora começamos a compreender muito do que ele escreveu nos anos 1980.

Nascido em 1920, em Praga, refugiou-se na Inglaterra em 1939. No ano seguinte, emigrou para o Brasil, onde viveu até 1972. Embora seu primeiro livro, Língua e realidade, de 1963, já apresente traços da força de seu pensamento, foi sobretudo com sua teoria da fotografia e das imagens técnicas que se destacou como poderoso intelectual. Em debate com os pensadores de seu tempo, pode ser considerado o herdeiro da teoria da fotografia de Walter Benjamin.

Em “A fotografia como objeto pós-industrial” (1985), suma do trabalho como teórico das mídias, ele descreve com precisão o mundo da web antes de sua criação. Os dilemas desse universo, que oscila entre a sujeição ao controle da tecnocracia administrativa e a promessa de uma utopia da comunicação, ainda são um desafio.

Benjamin, um dos grandes críticos do historicismo – o triunfo da visão moderna segundo a qual tudo deve ser historicizado –, percebeu que a era da reprodução técnica é um momento pós-tradição, em que rompemos com o passado. Na era da fotografia, não faz mais sentido a diferença entre cópia e original, tampouco o conceito de autenticidade. Flusser, por sua vez, notou que o historicismo era o resultado de uma luta milenar entre escrita e imagens, e que o homem pós-histórico, depois do fim do pensamento conceitual e da crítica, seria fruto do novo triunfo das imagens sobre a escritura. Na fotografia, ele viu, acima de tudo, um dispositivo, um aparelho que funciona como uma caixa preta (Filosofia da caixa preta, 1981). O mais importante – e que Benjamin não notara – é que, para dominá-la, não precisamos saber como ela funciona. A fotografia abre a era pós-deciframento; com ela passamos a lidar com o mundo mediante uma “capacidade imaginativa de segunda ordem”: os aparelhos imaginam por nós. Sua importância equivaleria à invenção da escrita e à liberação do uso das mãos, decorrente da passagem da postura quadrúpede à ereta. As imagens técnicas teriam como tarefa reunificar o pensamento e libertá-lo do império do conceitual.

O caminho que Flusser identifica na revolução aberta pelas imagens técnicas só poderá  ser trilhado se praticarmos uma crítica radical dessas imagens, hoje nas mãos de programadores que impõem suas mensagens. A imagem técnica nasce, por assim dizer, fascista – e o fascismo histórico seria o auge desse culto das imagens. Na sua filosofia da caixa preta, Flusser concluía que caberia a nós a desconstrução de uma sociedade dominada por aparelhos. Para ele, a crítica da fotografia coincide com a crítica do funcionalismo – que permanece na ordem do dia.

Já no livro O universo das imagens técnicas, de 1985, a fotografia aparece como uma espécie de pioneira das imagens técnicas, ainda anterior às imagens eletrônicas, que agora assumem o primeiro plano das reflexões. Nessa obra, Flusser aprofunda sua crítica da sociedade moderna ao mesmo tempo que apresenta uma nova sociedade, dialógica e telemá- tica, composta por criadores de imagens e colecionadores de imagens. Essa sociedade da informação seria comandada pela ludicidade e não pelo trabalho – uma utopia, portanto, com tons baudelairianos e benjaminianos. Se em Filosofia da caixa preta o modelo crítico de Flusser tendia para uma distopia – assume agora um caráter mais próximo da utopia.

Como em Benjamin, vemos nessa filosofia da tecnologia e da mídia um entrecruzamento com a filosofia da história, da linguagem e da tradução. Flusser continua no encalço de seu projeto, pensando a circulação entre línguas e linguagens, e entre passado, presente e futuro. Sua visão de um tempo fora do tempo, de uma nãohistória capitaneada pela era das imagens técnicas é tão vertiginosa quanto a de Benjamin, que também apontava para um momento em que passado, presente e futuro se encontrariam sob a égide de uma sociedade sem exploração e sem violência. Em Flusser – como em Benjamin – essa utopia nasce da sensação conhecida em alemão como Bodenlosigkeit (ausência de chão sob os pés). ///

 

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Leia também no #IMSquarentena uma seleção de ensaios do acervo das revistas ZUM e serrote, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia.

 

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