ZUM Quarentena

Como fotografar a rua sem sair de casa

Geoff Dyer, Michael Wolf, Jon Rafman & Doug Rickard Publicado em: 13 de abril de 2020

Michael Wolf, GooGle Street View / Michael Wolf, Laif Photos & Reportagen

Quando eu era menino, na Inglaterra dos anos 1960, vários jogos de tabuleiro prometiam “todas as emoções e os tombos” da Fórmula 1 ou do futebol “na privacidade de casa”. Havia até uma cervejaria cujo slogan – “Cerveja em casa é Davenports” – acenava com a possibilidade de um cara se embebedar com canecas de chope sem ter de enfrentar a sociabilidade cansativa no pub do bairro. Hoje em dia, a vontade de ficar trancado em casa foi a tal ponto saciada pela internet que nos sentimos capazes de fazer e comprar qualquer coisa sem pôr os pés pra fora. Mas quem imaginaria que seria possível trabalhar como fotógrafo de rua sem sair de casa?

Só vim a saber dessa novidade no ano passado, quando o alemão Michael Wolf (nascido em 1954) [e falecido em 2019] recebeu menção honrosa num dos prêmios mais importantes do fotojornalismo, o World Press Photo, por um trabalho que fez diante da tela de um computador, fotografando – reenquadrando e ampliando – cenas que aparecem no programa Street View, captadas pelos carros do Google. Por ironia, Wolf passou a trabalhar desse jeito quando se mudou de Hong Kong para Paris, um dos lugares que definiram a fotografia de rua tal como a conhecemos. Wolf achou que a cidade onde sua mulher conseguira emprego não tinha nada a oferecer do ponto de vista fotográfico. Em comparação com as paisagens urbanas da Ásia, fervilhantes e diferentes a cada dia, Paris era um mausoléu a céu aberto, praticamente inalterado em mais de 100 anos. Em meados do século 19, a haussmannização transformou a cidade de maneira radical, embora os bolsões da Paris “antiga” fotografados por Eugène Atget ainda possam ser reconhecidos por qualquer turista. Atget ganhava a vida produzindo “documentos para artistas”, fotografias de lugares que eram vendidas a pintores, e a Wolf não escapou a semelhança entre o levantamento meticuloso da cidade feito por Atget e a possibilidade de utilizar, para fins artísticos, o registro detalhado, mas mecânico, feito pelas câmeras do Google. Wolf logo percebeu que o olhar indiferente da câmera do Street View registrava de modo aleatório o que ele chamou, numa de suas séries fotográficas, de “incidentes lamentáveis”: acidentes e brigas, furtos e altercações, gente urinando ou vomitando. No mais das vezes, o carro do Street View fazia seu trabalho sem ser notado – ou pelo menos sem que lhe dessem atenção –, mas de vez em quando as pessoas reagiam a sua presença onividente mostrando-lhe o dedo do meio (daí o título de outra série, fy, ou fuck you).

Vários sites amadores selecionam, comparam e mostram aos visitantes relances de mulheres nuas em janelas e coisas assim, onde quer que tenham sido captados pelo Street View, e Wolf bem poderia ter optado pelo caminho fácil da hiena, traçando esse tipo de necrofagia visual. Mas preferiu perseguir sua própria presa, percorrendo metodicamente cada rua de Paris fotografada pelo Google, vasculhando quilômetros e quilômetros de monotonia em busca de momentos que podem ou não ser decisivos. (E isso me lembra outro precedente da infância, um anúncio das páginas amarelas que dizia: “Deixe que seus dedos caminhem”.) Essa busca, que parecia destinada a reforçar a afirmativa de Michael Houellebecq de que “na vida pode acontecer tudo, principalmente nada”, acabou representando não uma ruptura, mas uma continuidade em relação ao trabalho anterior de Wolf.

Na série Cidade transparente (2008), Wolf usara teleobjetivas para fotografar edifícios em Chicago, um projeto que já ampliava a pesquisa da arquitetura de densidade que o fascinara no Oriente. Os resultados foram padrões de luzes e linhas muito chapadas, em que apareciam, vez por outra, imagens hopperescas de seres humanos encalhados na imensidão da geometria urbana. Imaginem o prazer de Wolf quando viu num desses apartamentos uma tevê enorme exibindo Janela indiscreta! Isso mesmo, lá estava James Stewart intrometendo-se com sua teleobjetiva num apartamento alheio, ao mesmo tempo em que era fotografado por Wolf com sua própria tele. (Seria simples sorte de um fotógrafo veterano? Ou será que o morador mantinha aquela imagem congelada na tevê, como um presente generoso e um puxão de orelha irônico a qualquer um que estivesse a espioná-lo? Ou haveria um toque de artifício à la Robert Doisneau?) Mais tarde, examinando outras imagens com lupa, Wolf viu algo que lhe escapara ao fazer a foto: na janela de um dos apartamentos distantes, o morador percebera que estava sendo fotografado… e mostrara o dedo.

Os pioneiros da fotografia indiscreta – Paul Strand na rua, Walker Evans no metrô – tinham se virado de todas as formas para passar despercebidos. Para Wolf, tanto em Cidade Transparente quanto no trabalho com o Street View, o fato de ser visto e insultado – quando as pessoas percebiam que estavam sendo fotografadas – além de ser uma afronta, acabou servindo de incentivo e convite. Uma vez tendo encontrado aquela figura ampliada e pixelada, ele se pôs a esquadrinhar todas as janelas, de todos os apartamentos da Cidade Transparente, em busca de detalhes que pudessem ter sido captados involuntariamente. Tratou as fileiras de janelas como ruas, espreitando metodicamente cada uma delas. E se o filme fosse capaz de produzir imagens que a realidade do dia a dia não produzia? Os resultados foram, em geral, decepcionantes e desanimadores: chatice, solidão em série (Hoppers, Hoppers em toda parte!), pessoas vendo tevê ou encarando telas de computador. Há ainda a possibilidade, só agora imaginada, de que outro tipo de reciprocidade estivesse em ação: uma daquelas pessoas concentradas no computador poderia estar esmiuçando o Street View, criando suas próprias imagens…

Quando Wolf recebeu a menção honrosa pelas imagens fotografadas da tela de um computador, a reação foi imediata – e quase sempre hostil. Os moderados diziam que aquele trabalho não poderia ser considerado fotojornalismo; os mais agressivos, que Wolf não era mais, de jeito nenhum, um fotógrafo! À primeira acusação, eu responderia que, embora a parte noticiosa do conteúdo pudesse ser mínima (batidas de carros, rixas, contratempos), a própria maneira de produzir as imagens era uma reportagem interessante e uma investigação minuciosa. À segunda, Wolf respondeu, satisfeito, que ele fazia parte de uma longa história de apropriação artística que seus detratores presumivelmente não conheciam. (Certa vez, James Joyce disse que ficaria feliz se passasse à história como um desses escritores que se valem de tesoura e cola.) A arte, nessa recente manifestação tecnológica de apropriação visual, estava no recorte e na edição das fotos, uma edição capaz de enfatizar e até criar – pensem em Blow-up – uma narrativa implícita, aberta e potencialmente incriminadora (pés e membros sumindo do campo). Havia também uma sensação de urgência, porque o Google começou a eliminar justamente os incidentes lamentáveis que fascinavam Wolf, de modo que uma briga feia, numa rua qualquer, podia sumir em 24 horas (o que significa que havia, afinal de contas, uma dose de reportagem). Daí o impulso obsessivo, quase winograndiano, de patrulhar as mesmas ruas. Mas enquanto David Hemmings, no filme de Antonioni, e Stewart, no de Hitchcock, estavam obrigados, cada um a seu modo, a limitar a atenção a um fragmento minúsculo de suas respectivas cidades, Wolf tinha a sua disposição um projeto de vigilância em uma escala sem precedentes, que, por sua vez, é apenas um fio na rede, ainda maior, de monitoramento da vida cotidiana pelo governo e por empresas. Essas obras de arte, que paradoxalmente pareciam diminuir o papel do artista como indivíduo criador, baseavam-se em outro paradoxo: a quase extinção da privacidade de cidadãos cujos rostos eram borrados automaticamente pelo programa do Google – o que extinguia a identidade de cada um.

Em pouco tempo, a curiosidade de Wolf foi além de seu local de partida. Se enjoava de zanzar pelas ruas de Paris, podia saltar para qualquer outra cidade do mundo e ver o que acontecia por lá. Ainda que cada lugar se caracterizasse por certos tipos de incidentes (na Holanda, eram muitos os acidentes com bicicletas), de maneira geral, onde quer que se estivesse, eram as mesmas coisas que quebravam a tediosa uniformidade da vida – vislumbres de nudez, violência, desmaios. E em sua excursão instantânea e panglobal, esse espectador logo descobriu que várias pessoas estavam fazendo mais ou menos a mesma coisa que Wolf.

Quase exatamente a mesma coisa. Algumas fotografias do site de Jon Rafman são recortes das mesmas cenas do Google selecionadas por Wolf – de quem são mesmo as fotos? Na feliz formulação de Rafman, isso é parte conceitual da garimpagem coletiva: essas imagens são “fotografias que ninguém tirou e lembranças que ninguém tem”. Entretanto, há grandes diferenças na abordagem de Wolf e de Rafman. Organizado em séries, o trabalho de Wolf retém algo da natureza sistemática de sua pesquisa. Rafman tem em comum com Wolf o gosto por certas coisas – pessoas mostrando o dedo, garotas de programa na calçada e acidentes de trânsito –, mas seu estilo parece mais aleatório. O observador fica com a impressão de que Rafman, com seus 30 anos, não tem a formação de fotógrafo de rua à moda antiga, como Wolf, mas também de que talvez nunca tenha posto o pé fora de casa, de que tudo o que ele sabe da vida vem de representações do mundo. Até isso equivale a minimizar as coisas, pois, ainda que se saiba que Rafman talvez more em Montreal, ele poderia estar observando a vida na Terra a partir de uma estação espacial. E olhando com saudade. Há uma pungência extraordinária nesse conjunto aparentemente aleatório de imagens que vêm de toda parte e de lugar nenhum. É como se o dispositivo tecnológico que possibilita a criação da obra desse lugar a uma nostalgia e a uma saudade tão intensas que o original pelo qual ele anseia torna-se impossivelmente familiar, desconcertantemente remoto e – em consequência – estranho e impenetrável.

 

Tal como Wolf, Rafman acredita que “é o próprio ato de enquadrar que dá significado às coisas”, porém, vai mais longe: “Ao trazer de volta o olhar humano, reafirmo a importância, a singularidade do indivíduo”. De onde vem essa ideia de indivíduo? Da fotografia, é claro! Empolgado com o quanto as imagens apanhadas no Street View tinham a mesma “urgência [que ele] sentia existir na fotografia de rua tradicional”, Rafman prospecta o Google para desencavar uma história paralela da fotografia, em que reencenações de imagens de Jacques Henri Lartigue (um casal com óculos de proteção numa baratinha de corrida), de Garry Winogrand (inevitavelmente) e de outros mestres misturam-se com imagens estranhas e fascinantes – todas arrancadas de seu ancoradouro original no tempo e no espaço.

Admito minha própria meia-idade e meu estilo antigo. Por interessantes que fossem, achei insatisfatório e difícil ver as imagens de Rafman e Wolf apenas na tela, como se eu fosse persuadido, contra a vontade, a entrar nesse vórtice virtual cada vez mais mediado. E foi então que dei comigo em São Francisco (na cidade real, com gente de verdade, edifícios, tudo), onde, por puro acaso, me vi na frente da Galeria Stephen Wirtz, que apresentava a exposição Uma nova imagem americana, de Doug Rickard. (Essas imagens, derivadas do Street View, já tinham sido exibidas em Paris na mostra Anônimos, em 2010, com curadoria de David Campany e Diane Dufour, numa exposição que acentuou a continuidade com trabalhos do passado, como as imagens de Walker Evans no metrô.) As imagens de Rickard põem um ponto final em quaisquer dúvidas quanto aos méritos artísticos – “já não digo éticos ou conceituais – dessa nova maneira de trabalhar. Elas tiveram impacto imediato, intenso e, para minha surpresa, duradouro. William Eggleston cunhou a expressão “fotografar democraticamente”, mas Rickard usou a onisciência indiscriminada do Google para ampliar de modo radical essa atividade, a partir de vários pontos de vista – tecnológico, político e estético.

Os lugares selecionados por Rickard situam-se nas franjas economicamente devastadas das cidades: os terrenos baldios e as ruas tristes que são o eterno desdobramento da promessa americana não realizada. Esses lugares são povoados por figuras errantes, porque entraram por acaso no campo de visão de 360 graus do carro do Street View, mas também porque passaram longe do caminho da prosperidade – ou melhor, a prosperidade passou ao largo delas. Parece que esses vultos, que atravessam a rua com vagar, nunca chegarão à calçada oposta, como se estivessem à deriva ou perpetuamente encalhados no limbo do capitalismo tardio (após o que vem mais capitalismo). A série tem ecos óbvios nas fotografias de Evans encomendadas pela Farm Security Administration, na década de 1930, com placas banais – colisão americana, superfeira – cumprindo uma função semelhante ao coro do teatro grego. O espírito fugidio de Robert Frank também parece estar oculto em algum lugar, como se o carro do Google fosse uma encarnação do carro em que Frank fez sua mítica viagem rodoviária em meados dos anos 1950. Tal como no caso desses dois ilustres predecessores, há uma estranha beleza – triste, lírica, desconsolada – nesses acréscimos recentes à odisseia-safári fotográfica americana. Não é a clareza imaculada de uma foto de Evans ou o olhar de relance, apressado, de Frank, mas um resíduo enxaguado ou lavado, de algo que me vejo tentado a qualificar como pictórico (embora saiba que, quando as pessoas descrevem fotografias como “pictóricas”, em geral querem dizer “fotográficas”!).

As cores são ao mesmo tempo realçadas – principalmente o verde das árvores – e atenuadas pelos processos (que ignoro) a que Rickard as submeteu. Às vezes o céu é apagado, outras vezes tem um vestígio do saudoso turquesa do antigo super-8 (a cor do otimismo, do crescimento econômico para todos). E as cópias mostram não uma incômoda pixelação, como eu temia, mas uma cintilação e um desfoque, uma imprecisão definidora. Tudo isso contribui para a sensação de que estamos vendo cidades fantasmas, ou ruas fantasmas, em processo de formação. Uma frase de Próspero – cujo nome contém a ideia de prosperidade que alimenta o sonho americano –, no fim de A tempestade, pairava no ar da galeria enquanto eu olhava essas imagens: “Este cortejo sem substância dissolveu-se…”.

Uma imagem, em especial, parecia de uma familiaridade perturbadora, além de atrair para si as palavras de Próspero, como se fossem uma legenda acidental. Mostrava um sujeito – ligeiramente desfocado devido a uma das idiossincrasias e falhas da tecnologia, quase vibrando –, numa cadeira de rodas e com chapéu de caubói, olhando para a câmera. (Como Campany observou num ensaio sobre Anônimos, as imagens do Google são feitas “todas elas, de um lugar 2,5 metros acima do chão, uma altura que não é nem a do olhar humano nem a do ângulo elevado que associamos à vigilância”.) Levei algum tempo para entender por que aquela imagem era tão familiar – por acaso eu já a teria visto em algum contexto esquecido? Mas no momento em que dirigia o olhar à foto seguinte, lembrei: ela me recordava as fotos de Paul Fusco, ligeiramente desfocadas, das pessoas alinhadas junto aos trilhos do trem que conduzia a Washington o corpo de Robert F. Kennedy, em 1968 (o ano em que nasceu Rickard). Em vez de pessoas reunidas ao longo de uma rota durante a passagem do senador morto, há somente essas pessoas fotografadas ao acaso, indiferentes ou surpresas, enquanto o carrinho com a câmera periscópica cumpre seu papel, percorrendo todas as ruas do país, inevitável e acidental como a própria morte. ///

 

Tradução do inglês de Donaldson M. Garschagen

Texto publicado na edição impressa da ZUM #1 – outubro de 2011

 

Doug Rickard (1968) é fotógrafo e criador dos sites American Suburb X e These Americans. Vive em Sacramento, Califórnia.

Geoff Dyer (1958) é escritor e colunista do jornal The New York Times. Autor de O instante contínuo (2008), além de inúmeros outros textos sobre fotografia.

Jon Rafman (1981) é artista e ensaísta; mora em Montreal.

Michael Wolf (1954 – 2019) nasceu em Munique e cresceu nos Estados Unidos, na Europa e no Canadá. É autor dos livros The Transparent City (2008) e Tokyo Compression (2011).

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