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Imagens possíveis no confinamento: Jafar Panahi e Chris Marker

Carolina Amaral de Aguiar, Chris Marker & Jafar Panahi Publicado em: 23 de junho de 2020

Fotograma de Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi.

No início da pandemia do novo coronavírus, muitos começaram a buscar títulos literários que ajudassem a viver o momento. Proliferaram indicações de livros cujos enredos se passam em meio a pestes e epidemias, distopias autoritárias, narrativas de isolamento ou de repressão. Mas o que pode ser dito sobre as imagens que atendem à demanda do confinamento? O que se pode registrar quando o espaço em volta se restringe às paredes que delimitam o ambiente doméstico? Quais são as possibilidades criativas para se filmar quando o exterior está inacessível?

Em 2011, o cineasta iraniano Jafar Panahi, condenado a seis anos de prisão e 20 sem filmar após registrar os protestos subsequentes à reeleição suspeita de Mahmoud Ahmadinejad, aguardava o julgamento de um recurso. Esse contexto resultou em Isto não é um filme, um falso documentário cujo título coincide, não por acaso, com a primeira frase dita pelo narrador de A embaixada (1973), de Chris Marker. Assim como faz o cineasta francês neste filme – que também pode ser considerado um falso documentário –, Panahi utiliza apenas tomadas do interior de um imóvel; no caso, sua residência. Marker, por sua vez, filma A embaixada no apartamento parisiense do pintor cubano Wilfredo Lam, usando uma câmera super-8 e exclusivamente tomadas subjetivas. Já Panahi recorre à ajuda do amigo documentarista Mojtaba Mirtahmasb, que maneja uma câmera DV e grava planos subjetivos com seu celular. Em ambos os casos, estamos diante de filmes de confinamento, nos quais o mundo externo se restringe às poucas tomadas das janelas e aos planos finais nos quais a câmera ameaça deixar os edifícios, mas se detém antes de cruzar a fronteira das ruas.

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

 

Fotograma de Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi.

O que esses filmes nos ajudam a pensar sobre as possibilidades das imagens em meio ao confinamento? A referência, presente tanto em Panahi quanto em Marker, ao quadro A traição das imagens (1929), de René Magritte, pode ajudar a responder. A pintura do cachimbo que traz abaixo sua negação (ceci n’est pas une pipe) é análoga aos dois filmes, que se recusam enquanto tal. São documentários planejados pela impossibilidade de filmar o mundo externo. Suas imagens são apenas signos de um “real” inacessível. Falsos documentários, que exploram os recursos do filme subjetivo – como a câmera amadora, a ausência de tripé (que resulta constantemente em imagens tremidas), a aparência de um projeto individual e pessoal, a ênfase no ambiente privado e cotidiano – para desenvolver uma mise-en-scène que é constantemente construída e desconstruída pelos diretores.

A embaixada foi realizado a partir de princípios do “efeito Kuleshov”, em que o sentido das imagens é dado pela montagem. Chris Marker filmou ações aleatórias de um grupo de amigos, entre eles alguns exilados chilenos na França, confinados em um apartamento. Vemos os personagens conversando, jogando, passando o aspirador, comendo, cantando, discutindo. Todos aglomerados sobre o tapete, a mesa da cozinha e outros espaços do imponente apartamento do pintor cubano, cujos quadros estampam as paredes. Não há som direto, o que permite a introdução posterior de uma narração que costura um novo sentido para as tomadas. O comentário se constitui como uma espécie de diário que conta as ações ao longo dos dias. Trata-se de um dos elementos que nos faz pensar que estamos numa embaixada no Chile após o golpe de 1973, embora esse país nunca apareça diretamente citado. Até que a Torre Eiffel se revela num plano pela janela. As imagens anteriores, assim, passam a ser lidas sob novas possibilidades interpretativas.

Da mesma forma, Panahi monta suas sequências expondo um processo em construção. Isto não é um filme oscila entre tratar da repressão ao cineasta, da impossibilidade de filmagem e da tentativa de recriar no confinamento outro filme não-realizado por conta de um roteiro censurado. Assim como no filme de Marker, há estratégias que traem o espectador – para lembrar a obra de Magritte. As muitas tomadas feitas com a câmera apoiada sobre uma mesa podem ter sido gravadas por ele ou por outra pessoa. Nem sempre sabemos se Panahi está ou não sozinho, a não ser nos momentos em que a voz de Mojtaba Mirtahmasb é escutada em off ou nas cenas em que o próprio diretor passa a filmar o amigo ou o faxineiro de seu prédio com o celular – únicos planos em que assume o ponto de vista subjetivo.

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

 

Fotograma de Isto não é um filme (2011), de Jafar Panahi.

Os dois cineastas profissionais, Marker e Panahi, recorrem nesses filmes à estética do amador e a artifícios típicos do cinema em primeira pessoa. Uma estética que evoca o ambiente privado, o cotidiano da clausura, o formato do diário íntimo. Os filmes se sustentam pela construção de uma temporalidade simultaneamente em suspenso e distendida. Pausa e alargamento. Os personagens de A embaixada aguardam a partida para o exílio, enclausurados naquele ambiente pela ameaça da repressão ditatorial. De modo semelhante, Isto não é um filme se dedica ao dia a dia do próprio Panahi enquanto ele aguarda, em reclusão domiciliar, seu julgamento final, que pode ter como um possível desfecho a expatriação. Panahi chega a utilizar enquadramentos e movimentos de câmera que recordam o falso documentário de Marker, especialmente nos momentos em que trabalha sentimentos díspares e complementares, como a tensão e o tédio, a partir de ações corriqueiras como refeições, telefonemas, televisão e jogos cênicos.

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

 

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

No entanto, o que realmente importa em A embaixada e em Isto não é um filme é o que está fora-de-campo. A causa do confinamento está invisível nas imagens de ambos, mas respinga nelas por meio de elementos que se comunicam com o ambiente externo, como a janela, o telefone e a televisão. Esse fora-de-campo é determinante para que as ações filmadas possam ser lidas como imagens possíveis, insuficientes, mas que são signos de um “real” exterior que, de fato, é aonde os cineastas querem chegar. A “traição das imagens”, no filme de Panahi, está presente em muitos momentos, especialmente quando ele reconstrói no tapete de sua sala o filme que não pôde filmar. O cineasta é consciente, porém, de que “isto não é um filme”, e sim uma possibilidade precária de sua representação. Já Marker, ao iniciar seu falso documentário com letreiros que indicam que se trata de “um filme super-8 encontrado [trouvé] em uma embaixada”, remete à noção de um objet trouvé [ready-made] duchampiano elevado à condição de filme. Se não existia, de fato, um registro audiovisual da situação dos asilados cerceados pela ditadura de Augusto Pinochet, por que não encontrá-lo, mesmo que por meio de uma recriação? Essa reflexão é paralela ao que Marker faz na montagem, ao achar em meio a filmagens aleatórias um sentido cinematográfico.

A embaixada e Isto não é um filme constroem imagens de uma resistência pública que pode ser materializada apenas num ambiente privado. Marker filma duas tartarugas (uma delas recebe o nome de Melanie), apresentadas como bichos de estimação das crianças refugiadas e com as quais algumas mulheres brincam sobre o tapete. Já Panahi faz de uma iguana, Igi, um personagem central, com o qual interage e conversa. Os répteis, nos dois casos, convertem-se em símbolos da obstinação e da sobrevivência, e servem de paralelo para a resiliência dos condenados políticos. Assim, a imobilidade representada por esses animais se torna uma forma de resistir à ameaça exterior e ao autoritarismo. Quando não é possível ir às ruas, sobreviver no espaço doméstico passa a ser, em si, uma contravenção.

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

 

Fotograma de A embaixada (1973), de Chris Marker.

Panahi e Marker, de modo semelhante, escancaram a construção encenada de filmes necessários. São “documentários” que traem o espectador em seus artifícios, mas que apontam para a construção de uma verdade, contraposta ao discurso autoritário e repressor que habita o fora-de-campo. Os cineastas desfrutam das ambiguidades que os interiores possibilitam para tratar profundamente do mundo exterior, justamente quando esse mundo se torna uma ameaça. Articulam, portanto, o amador e o profissional, a cotidianidade e a ruptura do tempo, o diário íntimo e a denúncia pública, a mise-en-scène e os códigos narrativos do documentário.

Assim, A embaixada e Isto não é um filme nos ajudam a pensar nas possibilidades das imagens num ambiente confinado. Os dois diretores optam por formatos híbridos que expandem as fronteiras da representação para além dos limites da parede. Marker e Panahi nos indicam caminhos para resistir aos limites e às ameaças exteriores, e criam imagens da vivência e da sobrevivência em tempos difíceis. Produzem, no mínimo, bons filmes para se assistir em meio ao atual isolamento. ///

 

Carolina Amaral de Aguiar é pós-doutora em Cinema, Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora adjunta do curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). É autora do livro O cinema latino-americano de Chris Marker (Alameda, 2015).

 

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