ZUM Quarentena

Cidades desertas do coração

Rob Horning Publicado em: 3 de abril de 2020

Um trabalhador em Milão espalha desinfetante na Piazza Duomo como precaução contra o coronavírus, 31 de março de 2020. Crédito: Alessandro Grassani/ The New York Times/ Fotoarena

Em The Three-Body Problem [O problema dos três corpos], de Liu Cixin, um astrofísico radicalizado devido à leitura de Silent Spring [Primavera silenciosa] e vítima de perseguição durante a Revolução Cultural, chega à conclusão de que a espécie humana é irrecuperável e a vende a um invasor alienígena. Comecei a ler o livro há algumas semanas; e agora ele ficou cruelmente oportuno. Agora os demagogos querem que a gente acredite que o vírus é uma força invasora alienígena, ao mesmo tempo em que tratam de vender milhões de nós para essa força o mais rápido possível. Já dispomos de uma poluição do ar que deteriora o funcionamento pulmonar e trunca vidas; o coronavírus não faz mais que prometer que vai acelerar o processo: a apoteose do capitalismo vertiginoso.

Mas as fantasias escatológicas dos cenários anti-humanidade de Liu também ecoam, mesmo que de forma superficial, na celebração dos espaços urbanos abandonados como sendo uma espécie de consolo do coronavírus. Nada a ver com as imagens das prateleiras vazias nos mercados, que simplesmente falam sobre participar do pânico. Elas evocam algo mais relaxante, sereno.  No início da crise, quando a Itália era o local mais atingido, a água clara dos canais de Veneza foi amplamente discutida. Sem o trânsito das embarcações, o sedimento assentou, e eles ficaram quase transparentes. A CNN citou uma testemunha aleatória dizendo: “Que maravilha era aquela Veneza; esse vírus trouxe uma coisa… linda”. Esse sentimento repercutiu em uma enorme quantidade de postagens no Twitter: compartilhamentos de vídeos dos canais, dos peixes subitamente visíveis. Nesses compartilhamentos havia uma mensagem implícita: Vejam como o mundo é lindo sem turistas, sem outras pessoas vivendo as vidas delas de acordo com as próprias prioridades e privilégios! É assim que eu gosto de ver o mundo, sem ninguém para vê-lo além de mim. O modo como as coisas “realmente deveriam ser” é o modo como elas são quando a atividade humana está ausente. É suposto que os canais tenham águas claras e estagnadas.

Os canais de águas claras podem ser vistos como emblemáticos de um silenciamento mais amplo. Num ensaio para a revista The Point, Justin E. H. Smith escreveu: “Não sabemos muito bem que cara o mundo vai ter quando chegarmos ao outro lado disto, mas já ficou perfeitamente claro que os ‘discursos’ de nossa sociedade, tal como se apresentavam por volta de 8 ou 9 de março de 2020, em toda a sua frivolidade e distratibilidade, foram decisivamente interrompidos, tal como as emissões de CO2 das fábricas fechadas e das estradas vazias.” Smith conclui que caso uma força invasora alienígena chegasse à Terra, não há razão para acreditar que ela alimentasse sequer o mínimo interesse na humanidade (inclusive para exterminá-la), visto que é unicamente nossa arrogância que nos leva a acreditar que somos “os autênticos e legítimos representantes deste planeta”.

O fascínio com as imagens das cidades vazias é, em parte, um fascínio com essa arrogância – uma forma de endeusá-la, mais que de superá-la ou de rejeitá-la. As cidades são vistas como especialmente belas quando tornadas inúteis, porque nesse momento elas aparecem não como os espaços práticos nos quais o comércio ocorre, mas como monumentos ao poder de transformação da humanidade em abstrato, algo que não requer colaboração, competição ou conflito, mas que simplesmente parece existir como força natural.

Ao mesmo tempo, as imagens dão às cidades aquela qualidade inabitada tantas vezes reservada a paisagens naturais convencionais, nas quais a ausência de pessoas adquire o significado de “estado natural”. As representações pictóricas de paisagens disfarçam toda e qualquer alteração que os humanos possam ter operado no local, de maneira que o local possa aparecer como dado, como inerente ou inevitável. O modo como o terreno é enquadrado fica ao mesmo tempo trazido para primeiro plano e apagado: uma determinada vista é isolada e idealizada como característica, como típica, como sem enquadramento.

As fotografias de cidades sem gente ampliam o espírito de coisa dada para as paisagens urbanas, sugerindo de que modo elas resistem sem nós, ou a despeito de nós. Podemos considerar as cidades como ambientes naturais aos quais os humanos se adaptaram, à semelhança do modo como as espécies que habitam o fundo do oceano se adaptaram à vida desprovida de luz. Desse ponto de vista, os humanos são vistos como “outros”, tornando-se uma espécie para observação remota. Ao olhar as imagens, podemos ver-nos como isentos, como pertencentes a uma evolução para além daquilo, cujos contornos estão emergindo nos estranhos deslocamentos que experimentamos atualmente em nosso cotidiano. Nossa capacidade de apreciar essas imagens não dá maior importância a nossa harmonia básica com o mundo natural e a vida que supostamente ressurge quando as rodovias ficam, por fim, vazias, nem à inter-relação que com ele mantemos. Em lugar disso, ela nos oferece a oportunidade de usar a mediação (nossa capacidade de consumir representações) para rearticular nossa excepcionalidade. Podemos assumir a posição de sujeitos da câmera e fazer de conta que com isso ficamos imunes a ser objetos no mundo.

As cidades esvaziadas permitem que imaginemos que ocupamos uma posição confortável a partir da qual podemos deliciar-nos com elas – que a obliteração de humanidade na verdade não nos inclui. Como se afirma no artigo de Cherine Fahd e Sara Oscar na revista Fast Company: “O espectador está olhando pra uma representação da cena, não para a cena propriamente dita, e o faz de uma posição de conforto muito distanciada”. Isso fica óbvio quando se passeia por uma cidade vazia, atitude sem dúvida desconcertante, mas que inspira mais dor que prazer. As imagens nos dão a oportunidade de consumir nosso distanciamento do vazio, bem como o vazio propriamente dito. Podemos sentir o lugar onde estamos, seja ele qual for, como mais “cheio”.

Neste ensaio fotográfico do New York Times sobre as imagens de espaços públicos vazios, Michael Kimmelman sugere que as fotos transmitem esperança porque, segundo ele, em seu esvaziamento apavorante, estilo ruína-pornô, elas “nos lembram que a beleza exige interação humana”. Essa leitura, contudo, me parece um tanto idealista; Kimmelman deixa de lado o que, para mim, é a característica mais fundamental dessas imagens: o fato de que elas nos proporcionam a experiência vicária do “assombro dos exploradores do passado ao encontrar os restos de uma civilização perdida”. Ou seja, elas proporcionam aos que as contemplam uma espécie de transcendência imperial, um sentido de sobrevivência sublime. “Beleza” talvez seja, como assegura Kimmelman, uma coisa que “atribuímos” com a interação social, mas essas imagens também nos relembram que o consumo da beleza pode ser obtido unilateralmente, posicionando-nos numa perspectiva que confere prazer graças ao fato de nos proteger da cumplicidade ou da vulnerabilidade.

As imagens das cidades vazias me fazem pensar nas fotografias de centros comerciais mortos que funcionaram, ao longo das últimas décadas mais ou menos, como símbolos do tão anunciado “apocalipse do varejo”. Quando adolescente passei uma enormidade de tempo trabalhando e me divertindo num centro comercial, de modo que para mim esse tipo de imagem sempre funcionou como uma espécie de fortificante antimelancolia, algo como assistir à demolição da casa onde você cresceu. Ao mesmo tempo, tendo a interpretar as imagens de centros comerciais mortos como metonímias para o beco sem saída do consumismo. O que elas mostram não é a ausência de comércio, mas a negação do comércio.

Muitas pessoas já previram que um dos efeitos duradouros da pandemia será o fim do varejo convencional, porque todo mundo terá ficado completamente aclimatado ao sistema de delivery e suas conveniências. A previsão parece prematura; é impossível saber até que ponto nosso cotidiano e nossa percepção do que é conveniente será remodelada pela experiência do isolamento prolongado.

É muito tentador considerar as imagens das cidades vazias como símbolos, como evocações, como metáforas, como profecias, mas o que elas têm de mais convincente e perturbador é o fato de que podem ser vistas simplesmente como representações diretas do mundo lá fora tal como ele é. Nossas antigas vidas chegaram ao fim, os lugares onde as vivíamos são cidades-fantasmas. As fotos parecem documentos de algo histórico e excepcional que um dia vivemos, só que ainda estamos vivendo esse “algo”. Há uma finalidade aparente no vazio absoluto que talvez possa nos ajudar a fazer de conta que a crise já está encerrada, e de que o mundo está exatamente no lugar onde o deixamos, e não nas relações sociais e nos tipos de escolha com que nos defrontamos agora para tentar reconstruí-lo. ///

Tradução do inglês de Heloísa Jahn

 

Rob Horning é editor-contribuinte no site New Inquiry e escreve sobre mídias sociais também em seu blog Marginal Utility.

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