ZUM Quarentena

Algoritmos, arte e internet: os desafios dos museus na pandemia e depois

Pollyana Quintella Publicado em: 4 de agosto de 2020

Captura de tela da palestra-performance Super amuleto: tarde de dia de cão, de Wisrah Villefort, Desktop Aberto Pivô, 2020

Por todo o mundo, exposições foram fechadas, suspensas e adiadas por causa da pandemia do novo coronavírus. Com as instituições de portas cerradas, o impacto na economia da cultura tem sido devastador, e já é possível acompanhar cortes, demissões, licenças não remuneradas e reduções de salários em toda a cadeia de trabalhadores culturais. E no meio dessa crise começa a reabertura dos espaços públicos, principalmente na Europa, e instituições culturais precisaram rever os formatos de suas programações e se adaptar rapidamente, uma vez que a maioria de suas atividades envolve aglomeração de pessoas.

Logo que a quarentena começou, experimentamos um boom de tours virtuais e simulações 3D promovidos por feiras e galerias. Ao contrário de se engajar com a linguagem da web enquanto plataforma, essas soluções reiteravam a nostalgia daquilo que não podemos experimentar agora — a exposição real. Sem demora, ver exposições online se provou algo cansativo, frustrante e repetitivo.

A tentativa de transpor a exposição real para o ambiente digital, assim, deixou ainda mais exposta a necessidade de repensar alguns vícios curatoriais reiterados pelo meio artístico. Seguimos reforçando o cânone do espaço expositivo tradicional como único meio possível, e poucas vezes observamos as instituições abrirem espaço para situações mais experimentais. Com isso, parecemos ignorar as infinitas variações que a internet comporta, bem como as diferenças entre obras físicas migradas para a web e obras que já nascem com DNA digital.

De toda forma, nos acostumamos mesmo antes da pandemia a acessar online diversos materiais relativos às exposições, seja pela impossibilidade de viajar, seja pela necessidade de acessar projetos já encerrados, disponíveis apenas por registro, arquivo e documentação. Não à toa, catálogos e publicações foram ganhando cada vez mais importância: são eles que garantem alguma sobrevida da pesquisa curatorial para além dos poucos meses de exposição física.

Mas o que seria, portanto, concentrar ainda mais atenção na acessibilidade da pesquisa, investindo em formatos que desdobram o encontro físico em perspectivas digitais?

Adversidades do Brasil 

No Brasil, no entanto, enfrentamos adversidades anteriores. Segundo a TIC Cultura 2018 (pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br), apenas 15% das instituições do país disponibilizam seu conteúdo na internet, e só 26% delas dispõem de site próprio, dificultando o acesso de pesquisadores e, agora, do público em geral. Nessa perspectiva, mesmo o tour virtual parece uma solução distante. Além disso, a ausência de uma política nacional que seja capaz de criar parâmetros para o compartilhamento dessas informações não contribui para a vida digital dessas instituições, que em geral já não contam com profissionais especializados para o serviço e nem conseguem arcar com os custos de implementação.

Mesmo com as condições adversas, o momento é oportuno para que as instituições culturais construam uma imaginação digital. O que observamos é que, diante da falta de expertise, algumas delas têm procurado estabelecer parcerias externas ou mesmo adotar iniciativas independentes já debruçadas sobre a linguagem da web.

É o caso da plataforma brasileira aarea, coordenada por Marcela Vieira e Livia Benedetti, que comissiona trabalhos concebidos especialmente para a internet. Embora fundada em 2017, foi a partir do ano passado que a iniciativa passou a colaborar com instituições que desejavam apresentar pela primeira vez obras em seus websites, como o Salón Nacional de Bogotá, a Bienal de Arquitetura de São Paulo e o CCA Wattis Institute. Este ano, já em resposta aos limites impostos pela pandemia, a aarea realizou a primeira residência online do Pivô Pesquisa, e agora prepara uma curadoria para o Jeu de Paume, na França, com trabalhos de Letícia Ramos e Marguerite Humeau, prevista para estar no ar de setembro a dezembro.

Entre os exemplos internacionais, o Rhizome, plataforma que promove arte e cultura digital através de exposições, produção crítica e desenvolvimento de softwares, estabeleceu uma parceria com o Google Arts & Culture no ano passado. A iniciativa independente agora administra a página Saving Internet Art, do Google, e promove discussões sobre restauração e preservação de net art, além de disponibilizar a Net Art Anthology, trabalho que resgatou obras digitais que já estavam inacessíveis. Esta antologia também foi desdobrada pela exposição The Art Happens Here, no New Museum, em 2019. Aliás, é o museu que acolhe o Rhizome como projeto residente desde 2003.

Se o meio cultural anda investindo na internet, a internet, por sua vez, já vinha se apropriando de termos originados no meio artístico. O mundo da programação, por exemplo, se refere ao trabalho algorítmico como um trabalho de curadoria. Mas o que esses trânsitos têm a nos dizer?

 

Captura de tela de World of Awe, de Yael Kanarek, 2000, da coleção Rhizome

Curadoria de algoritmo 

Os algoritmos utilizam recursos de processamento para classificar e manipular dados de acordo com regras específicas, e buscam soluções para determinados problemas. Hoje, algoritmos são amplamente utilizados para rastrear dados de usuários e consumidores na internet, extraindo daí diferentes perfis e padrões de consumo. Redes sociais, comércio eletrônico e serviços de streaming constantemente codificam nosso comportamento a serviço de empresas privadas, além de sofisticar mecanismos de controle social.

É por meio de recursos algorítmicos que o Facebook, por exemplo, define os conteúdos que mais aparecem no feed de seus usuários, ou como um portal de notícias nos oferece uma propaganda. Embora argumentem querer otimizar a experiência na rede, vinculando o público ao seu próprio “desejo”, experimentamos a sensação de navegar segundo um “filtro bolha”, consumindo e interagindo com as mesmas ideias, sem constituir uma perspectiva ampla e complexa da realidade. O consumo de informação em plataformas mediadas por algoritmos torna nossa experiência tendenciosa e nos faz questionar a neutralidade dessas iniciativas.

Com um enorme fluxo de produção e informação circulando, contudo, já é difícil imaginar um cotidiano sem algoritmos, o que torna cada vez mais latente a necessidade de disputá-los, reivindicando por legislações e parâmetros de segurança e transparência. Além de filtrar conteúdos para fins de mercado, os algoritmos também têm sido utilizados em projetos de pesquisa de áreas diversas, da ciência à cultura, mas chegam pouco a pouco aos museus e instituições culturais.

 

Tela do experimento t-SNE map, desenvolvido pelo Google Arts & Culture dentro do programa Arts Experiments.

Coleções

A crescente digitalização de acervos museológicos tem impactado o modo de pesquisar e de lidar com a prática artística. A acessibilidade não apenas se ampliou, como transformou o modo como nos relacionamos com algumas obras. Reproduções de pinturas em altíssima resolução permitem identificar texturas e pinceladas por vezes imperceptíveis a olho nu, embora esse tipo de procedimento mais impressione pelo virtuosismo do que colabore com a pesquisa.

Junto a isso, alguns acervos digitalizados expandiram as informações oferecidas a respeito de suas obras, antes restritas a pesquisadores especializados. Além disso, algumas instituições passaram a classificar as obras com palavras-chaves que, com o auxílio de algoritmos, permitem que o visitante ou o pesquisador possa estabelecer seu próprio percurso de leitura da coleção. É o caso da Tate Modern, de Londres, cujas obras são organizadas a partir de categorias básicas como título, data e mídia, mas também associadas a tags temáticas ou conceituais. Além das categorizações mais simples, há aquelas que apresentam maior grau de subjetividade, rendendo mais de quinze mil filtros diferentes. Ao clicar na tag “gender” (gênero), por exemplo, o site redireciona o visitante virtual para um agrupamento de 1.688 obras relacionadas ao recorte.

Nesse exercício, navegar pela coleção abre infinitas possibilidades de relações entre obras, já não mais restritas apenas ao discurso curatorial oficial. A vantagem, além de ampliar o acesso, é que o próprio museu pode expandir a pesquisa sobre seu acervo a partir de colaborações antes não previstas, a depender de sua abertura ao diálogo.

No caso específico da Tate, o museu foi além e disponibilizou seus metadados para download no Github em 2014, dando origem a várias pesquisas extrainstitucionais. Um exemplo interessante é o Tate Data, que apresentou, entre outros aspectos, a variação de “assuntos” da produção artística ao longo dos séculos, a partir da análise de dados da coleção do museu.

No Brasil, algumas instituições como o Museu Histórico Nacional e o Instituto Moreira Salles, já antes da pandemia levaram parte de seu acervo digital para a Wikipédia, através do projeto Glam (Galerias, Bibliotecas, Arquivos e Museus), que visa disponibilizar online obras de instituições de todo o mundo, também expandindo o acesso e a pesquisa. O aspecto notável dessa iniciativa é que a edição ocorre a partir de colaboração voluntária, e o papel da instituição é apenas coordenar o trabalho, o que também gera parcerias imprevistas.

Os exemplos mais ousados da utilização de algoritmos para auxiliar a pesquisa nas coleções vêm dos experimentos do Google Arts & Culture. No site, podemos acessar uma série de projetos que utilizam machine learning para organizar obras a partir de diferentes critérios. Entre os mais notáveis está o X Degrees, que permite que o visitante escolha duas obras aleatórias do acervo, e, a partir delas, o algoritmo seleciona uma série de imagens que estabeleçam relações entre as escolhas iniciais. Segundo esse exercício, o que fica implícito é que a máquina é capaz de produzir sentido para qualquer coisa, inclusive para aquilo que o homem julga aleatório.

Outro exemplo é o t-SNE Map, que organiza o acervo de imagens na forma de paisagens 3D. À medida que aplicamos o zoom descobrimos que a topografia é formada por milhares de obras agrupadas segundo similaridades visuais, classificadas pelo algoritmo. Por fim, cabe citar o Curator Table que, ao contrário do exemplo anterior, permite que o próprio visitante crie nuvens de imagens a partir de critérios próprios.

Embora esses exemplos instiguem e comuniquem a prática curatorial para um público não especializado, permitindo que o visitante estabeleça relações próprias, a experiência não vai além de sentidos frágeis e supérfluos, mais uma vez impressionando sobretudo pelo malabarismo tecnológico. Ao disponibilizar milhares de imagens simultaneamente, a plataforma não leva em conta que a crítica e a curadoria se fazem sobretudo a partir de seu engajamento com um contexto específico.

No entanto, quando o trabalho acontece em parceria com alguma instituição, os resultados parecem mais interessantes. Trabalhando em parceria com a equipe de Mídia Digital do MoMA, o Google Arts & Culture Lab utilizou recursos de machine learning para identificar obras que estavam no acervo fotográfico das exposições já realizadas no museu. O algoritmo vasculhou mais de 30 mil fotos de exposições, procurando correspondências com mais de 65 mil obras digitalizadas da coleção, e identificou mais de 20 mil relações. São ferramentas que contribuem com o trabalho realizado pelos pesquisadores e ajudam a reescrever o itinerário das obras, bem como uma história mais ampla das exposições.

 

Tela do experimento Mesa do curador, desenvolvido pelo Google Arts & Culture dentro do programa Arts Experiments.

Pesquisa além do acervo 

Além de flexibilizar e diversificar o acesso a obras digitalizadas de determinada coleção, o algoritmo poderia tornar o processo curatorial ainda mais inclusivo, auxiliando a pesquisa a mapear conteúdos que estão fora do radar ou das relações sociais do curador e também alcançando regiões menos conhecidas e produções ainda marginalizadas pelo circuito. Um dos exemplos práticos dessa parceria é o MuDA, Museum of Digital Art, em Zurique, que conta com um bot rastreador para auxiliar a primeira etapa de pesquisa para as suas exposições, e que opera segundo instruções formuladas por seus curadores. Nesse caso, a curadoria atua a partir de um diálogo íntimo com a programação.

Tudo depende, evidentemente, de instruções que se adequem às finalidades da pesquisa. E os usos podem ser muito variados. O algoritmo pode realizar pesquisas a partir de um recorte de tema ou assunto (por exemplo, mapear a produção de artistas mulheres atuantes no Rio de Janeiro) ou a partir da identificação de um determinado contexto (por exemplo, reconhecer qual é o repertório simbólico predominante entre artistas afro diaspóricos no século 21).

Entretanto, os algoritmos tendem a ser conservadores, pois não são capazes de estabelecer relações ousadas ou assumir riscos, o que torna o gesto humano insubstituível. Portanto, esse tipo de recurso só poderia auxiliar um trabalho que já existe. Com o avanço desse tipo de colaboração, podemos especular que o trabalho de curadoria ficará ainda mais centrado na produção de um pensamento crítico que vá além da mera compilação enciclopédica ou temática. A potência de sua contribuição está justamente naquilo que a máquina não pode fazer, embora possa atuar como uma aliada. E, além disso, é preciso levar em conta que nem tudo está disponível na rede, o que não deve excluir a pesquisa analógica ou tradicional.

Perigos e responsabilidades

Diante de todas essas possibilidades, um grande risco assombra o uso de algoritmos em projetos institucionais: eles não são e jamais serão neutros. Quem programa faz escolhas, e sabemos que os algoritmos podem ser parceiros da discriminação e aliados às perspectivas hegemônicas. Afinal, programadores ainda são uma maioria de homens brancos, o que reflete formações e subjetividades sócio-culturais específicas. Não há imparcialidade nessa linguagem e os exemplos relacionando algoritmo e racismo são muitos.

Nesse sentido, um uso responsável deve passar pela necessidade de assumir de modo transparente como o recurso auxilia o trabalho curatorial. Desconfiamos dos algoritmos sobretudo porque não sabemos como eles funcionam, sempre nos bastidores da interface digital. Eles são, segundo Kevin Slavin, pesquisador especializado em algoritmos, “como uma arquitetura invisível que sustenta quase tudo o que está acontecendo”. Que tornemos, portanto, a arquitetura visível, compartilhando critérios e metodologias. É o que parte da militância tem chamado de “algoritmo aberto”. Se algoritmos respondem a determinações impostas por seus programadores, é preciso discutir os critérios que tornam determinado conteúdo visível ou não, o que passa, em larga escala, pela necessidade de uma alfabetização digital.

A partir desse compromisso, algoritmos poderiam, na via contrária, auxiliar instituições a compensar suas defasagens por representação, ao trabalhar em cima das desigualdades raciais e de gênero em acervos e exposições, por exemplo. Mas, ironicamente, poder contar com tais recursos de pesquisa é um privilégio orçamentário que poucas ou nenhuma instituição brasileira tem, o que faz essa discussão operar num plano quase ficcional. Ainda assim, desejamos que, na reconstrução institucional pós-pandêmica, os museus levem o digital mais a sério, empregando a tecnologia com responsabilidade e qualificação, ampliando suas missões. Veremos a criação de setores de mídia digital e programas afins?

Por fim, o privilégio de filtrar, selecionar e organizar conteúdos expõe relações substanciais de poder. Seja pelo trabalho algorítmico, seja pela curadoria tradicional, cabe a nós questionar narrativas e decisões, exigindo compromisso ético daqueles que são responsáveis por produzir os regimes hegemônicos de visibilidade. Para os artistas, fica a provocação de como seria construir uma obra “inalgoritmável”, que resistisse a modelos automáticos de pesquisa e aos recursos de vigilância digital. Afinal, os experimentos do Google não se restringem a experimentar métodos curatoriais, e através deles também sofisticam dia a dia os mecanismos de controle social. ///

 

Pollyana Quintella é curadora, professora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, com pesquisa sobre o crítico Mário Pedrosa. Colabora com pesquisa e curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR), desde 2018, e escreve para diversos jornais e revistas de cultura.

 

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