Revista ZUM 16

Negativos eliminados

Inês Costa Publicado em: 24 de junho de 2019

Foto de Russell Lee encontrada nos arquivos da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Sem identificação, a imagem provavelmente se relaciona a outra fotografia do arquivo, descrita como “Sr. Tronson, fazendeiro da região de Wheelock, Carolina do Norte, agosto de 1937”.

Quando se pensa na fotografia documental norte-americana da década de 1930, imagens como A mãe imigrante (1936), de Dorothea Lange, ou o retrato que Walker Evans capturou de Allie Mae Burroughs, intitulado Esposa de meeiro do Alabama (1936), nos vêm à cabeça. Símbolos da luta dos trabalhadores migrantes durante a Grande Depressão, as duas obras representam um momento crucial do fotojornalismo moderno, que influenciou a maneira como nos relacionamos com eventos de lugares distantes. Com apelo afetivo e visual, essas fotografias, encomendadas pela Administração de Segurança Agrária (em inglês, Farm Security Administration, FSA), familiarizaram o público americano com regiões dos Estados Unidos de que ele nada sabia, retratando esses locais e as dificuldades enfrentadas por seus habitantes.

Fundada pelo governo de Franklin Delano Roosevelt, a FSA (1937-1946) era uma agência de desenvolvimento rural subordinada ao Ministério da Agricultura. Ela prestava assistência a famílias que sofriam as consequências da Grande Depressão e de desastres naturais, como enchentes e tempestades de areia. A primeira fase do programa da FSA destinava-se a documentar empréstimos em dinheiro feitos a fazendeiros individuais e projetos de realocação de comunidades, enquanto a segunda pretendia registrar a vida de meeiros e dos trabalhadores migrantes.

Foto de John Vachon provavelmente relacionada à imagem “Supervisor do município conversando com cliente da FSA, condado de Coffey, outubro de 1938”.

Foto de Walker Evans provavelmente relacionada à imagem “Casa construída num reassentamento perto de Eatonton, Georgia, Projeto Briar Patch, março de 1936”.

A FSA, no entanto, é menos conhecida por esse auxílio e mais pela sua Divisão de Informação, uma iniciativa revolucionária financiada em grande parte pelo governo. Quem chefiava essa divisão era Roy Emerson Stryker (1893-1975), economista, funcionário público e entusiasta da fotografia. Seu plano era criar um projeto fotojornalístico extenso, que retratasse o impacto das novas políticas nos agricultores da América rural, particularmente nas regiões sul, meio-oeste e oeste. As imagens serviriam para divulgação pública e para acompanhar os relatórios financeiros enviados a Washington, atestando a Roosevelt e sua equipe o sucesso da operação. Na época, a fotografia era considerada um documento objetivo da realidade, muito utilizado em revistas como Life e Look para acompanhar notícias, por vezes até ofuscando o texto.

A maior parte do material produzido por encomenda da FSA encontra-se na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, acessível a todos. A coleção reúne cópias fotográficas, cerca de 175 mil negativos e registros escritos, além de milhares de imagens surpreendentemente marcadas com um círculo preto: um buraco no  negativo, feito com um perfurador de metal. Essa descoberta motivou a exposição Negativos eliminados: imagens nunca vistas dos Estados Unidos dos anos 1930, que eu e Nayia Yiakoumaki, curadora da galeria Whitechapel, em Londres, organizamos em 2018.

Foto de Carl Mydans provavelmente relacionada à imagem “Transeuntes limpam o terreno, condado Prince George, Maryland, novembro de 1935”.

Foto de Marion Post Wolcott, provavelmente relacionada à imagem “Loja cooperativa em Greenbelt, Maryland, setembro de 1938”.

Como método de edição de imagem, fotógrafos que trabalham com filme costumam riscar nas folhas de contato as fotos não desejadas. No entanto, o que vemos nestas imagens é a “inutilização” do negativo, com a violência da perfuração. Em alguns casos, o buraco é apenas nas margens, em outros, ele destrói o cenário, o corpo ou o rosto dos fotografados. Essa atitude, muito além da edição, revela uma técnica de censura feroz. As legendas que acompanham os negativos registram esse processo – todas as fotos perfuradas foram cadastradas apenas com o número de série e a palavra “eliminado”.

De seu escritório em Washington, Stryker controlava as atividades da divisão: envio de equipamentos, financiamento de viagens e instrução dos fotógrafos, assim como entrega, revelação, edição e distribuição das fotografias produzidas. Um documento intitulado “O fotógrafo da FSA”, disponível no arquivo da Biblioteca do Congresso, delineia o perfil desejado para integrar o projeto: era preciso ser “mais que um artista, mais que um técnico bem treinado. [O profissional] Deve ter algo de sociólogo, algo de economista; […] e, mais que qualquer outra coisa, necessita ter uma compreensão básica do significado deste ensaio”. O documento também mencionava que os fotógrafos deveriam ler bastante, não apenas notícias, mas livros que os ajudassem a aprimorar o trabalho.

Foto de Theodor Jung provavelmente relacionada à imagem “Cliente de reabilitação preocupado com suas contas, condado Jackson, Ohio, abril de 1936”.

Foto de Ben Shahn provavelmente relacionada à imagem “Família de cliente em reabilitação, condado Boone, Arkansas, outubro de 1935”.

Stryker empregou Paul Carter, Jack Delano, Walker Evans, Theodor Jung, Dorothea Lange, Russell Lee, Edwin Locke, Carl Mydans, Arthur Rothstein, Ben Shahn, John Vachon e Marion Post Wolcott, entre outros. Eles foram enviados para diversas regiões dos Estados Unidos, munidos de câmeras, filmes e roteiros que definiam o objetivo de cada viagem, com indicação de assuntos específicos para fotografar.

A primeira instrução era registrar a fazenda ou o fazendeiro numa situação dramática, mostrando propositadamente a pobreza através de “construções caindo aos pedaços” ou “roupas precárias”. As fotos seguintes deveriam narrar uma história de superação, representando interações entre fazendeiros e agentes da FSA, fazendeiros recebendo empréstimos, até um momento claro de sucesso, como “De volta à fazenda – salvo – aliviado e feliz”. Por vezes, também se fornecia informação sobre as pessoas que deveriam ser fotografadas, muitas delas já tinham relação com o programa.

Alguns fotógrafos se concentraram em temas específicos. Marion Post Wolcott, por exemplo, registrou cidades e trabalhadores urbanos em ação, enquanto Paul Carter dedicou-se à vida no campo. Quase todos assinam fotos de interações encenadas entre fazendeiros e agentes da FSA, como é o caso da fotografia de John Vachon provavelmente relacionada a “Supervisor do município conversando com cliente da FSA, condado de Coffey, Kansas, outubro de 1938”.

As diretrizes rigorosas e as ideias preconcebidas da fsa foram intensificadas pelo método violento de edição de Stryker, criando tensões entre ele e a maioria dos fotógrafos. O editor mantinha contato permanente com todos os membros da equipe, dando conselhos e fazendo críticas severas para garantir que os objetivos da agência fossem cumpridos. Em uma carta a Jung, Stryker demonstra preocupação ao receber fotografias parecidas e fora de foco. Noutra, ele escreve que está muito decepcionado com as imagens que recebeu, a ponto de questionar se Jung sabia usar sua Leica. Lange passou por problemas semelhantes, que a fizeram guardar, recusar-se a entregar ou atrasar o envio de material a Washington. Nenhum negativo “eliminado” de Lange foi localizado. Ela fotografava em médio e grande formato, e só encontramos negativos de 35 mm perfurados.

Foto de Paul Carter provavelmente relacionada à imagem “Campos de tabaco devastados pelo rio Connecticut perto de Northampton, Massachusetts, março de 1936”.

Foto de Theodor Jung provavelmente relacionada à imagem “Cliente em reabilitação, condado Garrett, Maryland, setembro de 1935”.

Pelas informações disponíveis nos documentos de Ben Shahn, conservados no arquivo de arte americana do Instituto Smithsonian, em Washington, e no acervo de Walker Evans, no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, fica claro que, tal como Lange, a maioria dos fotógrafos tentava entregar os negativos quando regressasse ao escritório da FSA. Stryker opunha-se a isso, usando os atrasos com o processamento de imagens para impressão e os custos elevados do laboratório fotográfico em Washington como argumentos para exigir que os negativos lhe fossem enviados antes. O editor requeria resultados rápidos e contato permanente com o programa.

A relação de Evans com Stryker também não era fácil. O fotógrafo discordava com frequência da quantidade de fotografias pedida e da falta de autonomia, o que levou à sua demissão em 1937. A rigidez era aplicada a todos os fotógrafos, independentemente da sua experiência e de suas carreiras, deixando-os sem qualquer controle editorial. Apenas Edwin Locke, assistente de Stryker, e Russell Lee tinham uma boa relação com Stryker e continuaram a trabalhar com ele depois de o projeto terminar.

O método inclemente da edição de Stryker parece não seguir nenhum critério específico. Algumas das fotografias são tecnicamente fracas – desfocadas ou com exposição incorreta –, o que pode ser observado na foto de Arthur Rothstein provavelmente relacionada a “Esposa e filhos de meeiro, Arkansas, agosto de 1935”, na qual ocorreu uma falha no avanço do filme na câmara, resultando na disposição irregular dos fotogramas no negativo, e na foto superexposta e fora de foco de Theodor Jung provavelmente relacionada a “Cliente de reabilitação, condado Garrett, Maryland, setembro de 1935”. No entanto, muitas são marcantes e não apresentam nenhum problema.

Talvez existissem muitas imagens do mesmo assunto? Talvez não se encaixassem na agenda política? Teria sido o fotógrafo tendencioso ou adotado uma postura excessivamente pessoal? Ou Stryker tinha medo de que as fotos caíssem em mãos erradas e servissem de propaganda contra o governo? Pode-se apenas especular, embora uma coisa seja certa: se Stryker e seus assistentes considerassem a foto inadequada por qualquer motivo, ela teria de ser danificada de modo que não pudesse ser usada.

Outro aspecto fundamental desse arquivo são as descrições que acompanham as fotografias. A maioria dos negativos eliminados não tinha legenda própria, pois as imagens nunca foram utilizadas nem publicadas. No entanto, eles foram categorizados em relação a outras fotos, seja por semelhança, seja por posição no rolo de filme. As legendas sugerem o local onde as fotos foram tiradas e, talvez mais importante que isso, observações do fotógrafo. Descrições como “Crianças saudáveis num quintal limpo, Washington, D.C.” ou “Cliente de reabilitação preocupado com suas contas, condado Jackson, Ohio” contribuem para compreendermos o quanto Stryker estava determinado a capturar situações específicas dos Estados Unidos. O editor acreditava que imagens sozinhas não causavam impacto suficiente por não oferecerem contexto ao espectador. A ligação entre a imagem e o texto era essencial para que as fotografias fossem assimiladas exatamente como planejado: destacando o apoio do governo na transformação da vida dos agricultores dos Estados Unidos e da economia do país.

Fotos de Arthur Rothstein provavelmente relacionada à imagem “Esposa e filhos de meeiro, Arkansas, agosto de 1935”.

Os negativos eliminados mostram a dimensão de controle e censura do programa cujo objetivo, de acordo com Stryker, era “apresentar a América aos americanos”. Essa visão manipulada do meio rural dos Estados Unidos durante a Depressão, em um momento basilar do fotojornalismo, serve de lembrete do quanto a interpretação do conhecimento histórico pode ser tendenciosa. Desde o princípio, os fotógrafos foram inseridos num projeto de propaganda estruturado, marcado pela edição firme e pela legendagem controlada de Stryker. Mas ele deixou para trás um arquivo visual fascinante, que, apesar da violência sofrida, pode agora ser contemplado como uma coleção de imagens deslumbrantes e estranhamente surreais. ///

Imagens: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, Divisão de Fotos e Impressões, Coleção FSA/OWI.

O arquivo da fsa está disponível para consulta no site da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

 

Inês Costa é assistente de curadoria na Whitechapel Gallery, em Londres.

 

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