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Fotógrafos do ar: Luciano Carneiro, Félix Nadar, Robert Capa e George Love

Ângelo Manjabosco Publicado em: 19 de abril de 2016
Paraquedistas norte-americanos em ação durante a operação Tomahawk. Munsan, Coreia do Sul, 1951. © Luciano Carneiro/Acervo Instituto Moreira Salles

Luciano Carneiro, paraquedistas norte-americanos em ação durante a Operação Tomahawk. Munsan, Coreia do Sul, 1951. © Luciano Carneiro/Acervo Instituto Moreira Salles

Muitos acreditam que o ser humano não foi criado para ficar suspenso no ar, 10.000 metros acima do chão. Mas alguns fotógrafos parecem lidar com isso a partir de outra lógica. Entre eles estão o norte-americano George Love, radicado no Brasil desde 1965 e contratado pela revista Realidade;  Robert Capa, o célebre húngaro que se especializou em cobrir guerras; e Luciano Carneiro, fotojornalista brasileiro que atuou principalmente na revista O Cruzeiro e que é tema de exposição no Instituto Moreira Salles de São Paulo. Profissionais que, num tempo sem drones, enfrentaram situações de risco mais ou menos calculado. Atos que envolviam uma câmera fotográfica e algo que fosse capaz de transportá-los até a nuvem mais próxima.

É bem provável que Félix Nadar, fotógrafo nascido na Paris do século XIX, tenha sido o primeiro a registrar as coisas vistas de cima. “Ter asas é um direito inato de qualquer pessoa. Quando quiser, o homem vai voar como um pássaro”, escreveu Nadar em seu manifesto O direito de voar, endossado por Victor Hugo. Nadar acreditava que o futuro estaria nas “locomotivas aéreas”. Taxado de louco pela maioria e de visionário por pessoas próximas, criou a Sociedade para o Encorajamento da Locomoção Aérea por Máquinas mais Pesadas que o Ar. Nomeou-se presidente. Como secretário, escolheu seu amigo Julio Verne.

Félix Nadar, Balão "O Gigante", Campo de Marte, Paris, França, 1863.

Félix Nadar, Balão “O Gigante”, Campo de Marte, Paris, França, 1863.

Ao longo dos anos, a população parisiense acostumou-se a ver Nadar e seus amigos voando e despencando do céu. É que, naquela época, máquinas mais pesadas que o ar eram nada mais que estruturas desengonçadas e repletas de falhas. Nos anos 1970, entretanto, esse tipo de máquina já era bem mais eficiente. E George Love usou uma locomotiva aérea adaptada para satisfazer seu desejo de fotografar a Amazônia do alto: “Você levanta voo. As portas são retiradas do avião. O vento entra direto. Meus ouvidos começam a doer por causa da altura. Doem tanto, por tanto tempo, que eu esqueço que estão doendo. Entro e saio das nuvens. Tudo é branco ao redor. Naquele instante você começa a fotografar aquilo que é somente e particularmente seu. Você vê o que pensa que vê. E o que você pensa que vê é real”.

George Love nunca saltou do avião – nem ousaria. Permaneceu, viagem após outra, atravessando as nuvens horizontalmente. Velocidade e altura serviam para o deixar mais próximo do rastro da ficção. Já para Robert Capa, isso não devia fazer o menor sentido. Para ele, voar era apenas o modo mais rápido de estar no centro dos fatos. Pular do avião, uma condição: “Eu me levantei, certifiquei-me de que as câmeras estavam bem presas em minhas pernas e que meu frasco de scotch estava no bolso do peito, em cima do coração. Tínhamos ainda 15 minutos antes do salto. Comecei a repensar toda a minha vida. Foi como um filme em que o projetor enlouqueceu e vi e senti tudo o que comi, o que fiz, e cheguei ao final em 12 minutos exatos. Estava me sentindo muito vazio, e ainda faltavam três minutos”.

George Love, imagem publicada na ZUM #9.

George Love, imagem publicada na ZUM #9.

Três minutos, diz Capa. Como se mede o tempo de dentro de um avião militar e com um paraquedas preso nas costas? Quantas vidas se vive em três minutos?

“Estava parado diante da porta aberta, atrás do coronel. Seiscentos pés abaixo de nós, o rio Reno. Então, as balas começaram a atingir nosso avião, como pedregulhos. A luz verde acendeu. Contei mil, 2 mil, 3 mil e acima de mim estava a belíssima visão de meu paraquedas aberto. Os quarenta segundos até chegar à terra levaram horas contadas no relógio do meu avô, e tive muito tempo para desprender minha câmera, fazer algumas fotos e pensar em seis ou sete coisas diferentes antes de tocar o chão.”

Essa sensação de indefinição temporal e esvaziamento da alma que Capa teve antes do salto não difere muito do relato do cearense Luciano Carneiro. É que o ser, assim, saltado, perde o peso dos anos. Esquece o contraste das coisas, deixa as sombras pra depois. É também lugar em que a fotografia, feita caixa escura completamente vedada, encontra seu par antagônico, o espaço branco sem fim. No céu, tudo é luz.

“Atravessei a porta do avião com uma certa abstração no cérebro. Momentaneamente pareceu-me que eu estivesse não indo colher uma reportagem de guerra, mas praticando no Rio meu esporte predileto. Que os meus companheiros de stick, ali, não fossem soldados que pulavam para matar ou morrer; fossem Charles Astor e os outros colegas do Aero-Clube do Brasil. Uma vez fora do avião, entretanto, alguns ecos de fuzilaria me devolveram a lucidez. Sim, aquela era uma ação de guerra. Em 35 segundos, vencidos os 700 pés de altura, meu paraquedas adormecia no solo.”

Como se pode perceber neste relato de Luciano Carneiro, depois do salto, tanto ele como Robert Capa demonstram alívio ao tocar os pés no chão. Afinal, seres humanos não nascem com asas, como pássaros. Mas pessoas como Capa e Carneiro, mesmo não sendo pássaros, calculam os riscos levando em consideração aquilo que sobra: negativos mais pesados que o ar. Em última instância, quem se beneficia das aventuras desses fotógrafos é a própria fotografia. Ao contrário do ser humano, a fotografia foi feita para voar.///

 

Ângelo Manjabosco é jornalista e pesquisador. Pós-graduado em fotografia pelo Senac-SP e mestrando em Estética e História da Arte no PGEHA-USP, colaborou como pesquisador na exposição Claudia Andujar, no lugar do outro.
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