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Design feminista como método, não como estética

Sara Duell Publicado em: 18 de setembro de 2020

 

Revista Bang, com direção de arte e design do estúdio sueco Bastion Agency Studio Lab.

Assim como esperamos que a arte seja pendurada em limpas paredes brancas quando entramos em museus ou galerias de arte contemporânea, também aprendemos a esperar que fotolivros apresentem imagens uma a uma em páginas brancas. A maior parte do design de um fotolivro vai para a capa e tende a não “interferir” no resto do livro. Há cada vez mais exceções a essas regras, que resultam em livros criativamente trabalhados e formalmente únicos. A norma, entretanto, tem sido formatar exposições, fotolivros e livros de arte de maneira similar: contra um fundo simples, que é considerado o ideal, ou, no mínimo, com uma apresentação mais neutra.

Essas normas para exposições e livros foram definidas durante a era modernista. Com o foco na razão e na lógica, o design moderno foi moldado como um método de resolução de problemas – mais como uma equação matemática com uma solução universal do que uma expressão artística e subjetiva. Designers modernistas têm recebido mais que suficiente crédito por suas contribuições à história do design e não é segredo que a maioria deles eram homens brancos. Apesar de tudo, suas metodologias ainda são descritas como objetivas, como se fossem científicas. Ainda hoje a forma modernista é aceita como norma, a fundação a partir da qual medimos outras estéticas. Isso fica evidente quando um design é descrito como profissional, simples, atemporal e normal – como é frequentemente o caso quando faz referência a uma estética moderna.

Com uma interpretação tão estreita do que é um bom design, os profissionais frequentemente terminam trabalhando com um pequeno conjunto de referências. De que outras formas quatro designers, trabalhando para diferentes editores e com anos de diferença, terminam tomando as mesmas decisões de design? Uma capa dura revestida em tecido bege com uma imagem colada, tipografia minimalista e variações no tamanho da imagem são usadas para enquadrar: as fotografias de objetos deixados após a morte de alguém – Traces, de Tina Ruisinger (Kehrer, 2017); um livro sobre homens de negócios em distritos financeiros nos Estados Unidos – Executive Model, de Ron Jude (Libraryman, 2012); um trabalho representando pessoas cegas, idosas e albinas na África do Sul – Looking Aside, de Pieter Hugo (Punctum, 2006); e um livro de cianotipias – Lengthening Shadows Before Nightfall, de John Dugdale (Twin Palms, 1995).

 

Queerbook, da artista Sloan Leo

A historiadora da arte Mary Anne Staniszewski expõe o tema fazendo referência ao design de exposições em seu livro The Power of Display: A history of Exhibition Installations at the Museum of Modern Art, de 1998. A forma como as exposições do MoMA foram projetadas para apresentar o trabalho contra um fundo liso foi descrita como atemporal e apolítica, mas isso serviu para criar um senso de individualismo tanto para o trabalho quanto para o artista e o espectador, em uma decisão altamente política e refletindo os ideais modernistas. Como Staniszewski disse em uma entrevista para o podcast do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona em 2010: “As coisas mais poderosas em uma cultura são as coisas não ditas e não reconhecidas”. Uma metáfora clássica da área é que o design de sucesso é aquele que parece tão natural e óbvio que é “invisível”.

Como designer, você age como um tradutor material do trabalho escrito ou artístico em exposição, e há um poder imenso nisso. No artigo “Let’s Talk About Body Reproduction”, de 2018, o artista e pesquisador Nate Pyper descreve o design como “a luva retórica pela qual a ideologia é expressa em forma material”. “Cada vez que o trabalho que criamos é publicado, ele reproduz não apenas a si mesmo, mas as crenças e condições das pessoas que o produzem”, escreveu Pyper. Assim como usar ideais brancos modernistas pode ser apropriado para alguns contextos, ao se desenhar um livro que tem a intenção de reagir a tais ideais eurocêntricos (sem intencionalmente subverter essas estéticas), isso pode ativamente minar a premissa do trabalho. Design é uma ferramenta que, quando polida, pode ser aguda e poderosa, mas também opaca se tratada de forma descuidada.

Reconhecendo esse poder – e não tratando o design como uma equação e o designer como um matemático que a resolve – podemos ver que os parâmetros e normas invisíveis que tomamos por garantidos se originam em ideologias patriarcais, abrindo espaço para metodologias interseccionais feministas redefinirem o que consideramos um bom design. “Feminismo como MÉTODO, não como tema” era o que se lia em uma nota manuscrita especialmente pungente de uma oficina ministrada em 2017 pelo Centro de Mulheres para o Trabalho Criativo, que discute práticas artísticas feministas em Los Angeles, e pelo estúdio de design sueco Bastion. A nota, que o Bastion postou no Instagram, foi diretamente na raiz da questão. Definir certas expressões visuais como feministas por sua forma apenas cria novas normas e ideais que, com o tempo, tornam-se estagnadas. É através do desenvolvimento de metodologias feministas que as possibilidades de expressão de formas feministas e suas múltiplas camadas se tornam infinitas, crescendo com o tempo e em diferentes lugares.

 

Na Suécia, o termo “criação normativa” se originou como uma companhia útil ao termo “crítica da norma”. [Ambos os termos buscam desafiar normas sociais que contribuem para a desigualdade e exclusão social, sendo a criação normativa uma abordagem para chegar à análise crítica das próprias normas, a partir de soluções originais dadas pelo design]. Os dois termos vão lado a lado quando olhamos criticamente para normas estabelecidas e buscamos maneiras criativas de desmontá-las e reconstruí-las. O estúdio Bastion tem estado na linha de frente da luta para definir esses termos e desenvolver uma metodologia feminista através de oficinas e colaborações que trabalham com escritos, formas, teorias e práticas. Inclusive contratualmente, de uma forma bastante transparente, o Bastion define sua metodologia de trabalho a partir de seus custos estimados. Como cliente, você não apenas aprova o custo, mas também concorda com o método interseccional através do qual o trabalho será feito. Um exemplo ilustrativo é o uso da tipografia criada por Elizabeth Friedlander, que, por ser judia, jamais poderia ter lançado fontes com seu nome verdadeiro na Berlim do pré-guerra. Isso estende o valor do design gráfico para além do monetário e permite ao Bastion ter clientes alinhados ao estúdio tanto em termos políticos quanto criativos.

Na América do Norte, as conversas em torno da “crítica da norma” focam primariamente na decolonização da educação em design, como no trabalho que tem sido feito por Dori Tunstall, reitora na Universidade de Arte e Design de Ontario (Tunstall é a única mulher negra a ocupar o posto de reitora numa cadeira de design na América do Norte); Ramon Tejada na Escola de Design de Rhode Island; e Nicole Killian na Universidade Comunitária de Virginia. Tunstall, Tejada e Kilian lecionam e escrevem sobre formas com as quais podemos deslocar as estruturas de poder que estão em jogo no campo do design e abrir espaço para outras narrativas. O que essas perspectivas suecas e norte-americanas têm em comum é que deixam de lado o que se assumiu como universal a partir da consciência de quais normas elas mesmas perpetuam. Assim, ressaltam figuras históricas fora do cânone modernista, examinam apropriações culturais no design, e determinam se a proposta de projeto que têm em mãos faz sentido no contexto de seus estúdios ou se estaria melhor com uma/um designer com um currículo mais relevante para o projeto.

 

Revista Bang, com direção de arte e design do estúdio sueco Bastion Agency Studio Lab.

Em um mundo onde o design é visto como um serviço, essa responsabilidade não pode recair apenas no profissional. Designers estão constantemente trabalhando com e para clientes e suas expectativas, portanto é importante educá-los – e também as pessoas que os contratam – sobre a necessidade de uma prática de design interseccional e feminista. Estamos apenas começando a prestar mais atenção em quem é publicado, em quem escreve os ensaios para fotolivros, e quem entrevista os fotógrafos. Mas a maioria de nós ainda não presta atenção em quem será contratado para pensar e fazer o design. O leitor casual pode se questionar por que um editor comissionaria um homem branco, cis e heterossexual para escrever a introdução de um livro de uma fotógrafa negra e lésbica, mas a escolha do designer não passa pelo mesmo crivo – apesar do seu papel como criador da “luva retórica” do livro. Assim como designers trabalham a partir de um campo mais restrito de referências, editores frequentemente trabalham com um campo igualmente restrito de designers. Mas isto não é por falta de recursos: há muitas maneiras de encontrar profissionais que quebram esse modelo – basta ver os estúdios The Other Box, People of Craft, ou The Office of Culture and Design, ou ler o artigo “Why Role Models Matter: Celebrating Women of Color in Design”, publicado na revista especializada AIGA Eye of Design, da designer Anoushka Khandwala, sediada em Londres.

Ao reconhecer designers como produtores de significado para além de um problema a ser resolvido, e dando-lhes mais crédito, será mais fácil chamar a atenção para a hegemonia estabelecida e também encontrar novos profissionais com quem colaborar (além de tornar mais difícil a desculpa de não encontrá-los). Uma prática de design interseccional feminista é muito mais do que contratar alguém novo, selecionar um tipo de letra e quebrar a grade modernista. É olhar para o valor e o papel do designer e reconhecer o significado na forma. ///

 

Sara Duell é designer gráfica. Atua como coeditora da WMN – um zine de arte e poesia lésbica.

Tradução de Daniele Queiroz de artigo originalmente publicado pela Aperture na The PhotoBook Review nº 17, de 2019.

 

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