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A palma da mão

Lorenzo Mammì Publicado em: 11 de dezembro de 2013
Este texto foi publicado originalmente no catálogo Luigi Ghirri. Pensar por imagens. Ícones, Paisagens, Arquitetura, que acompanha a exposição em cartaz no IMS de São Paulo até  janeiro de 2014. Clique aqui para comprar o catálogo
Bolonha, Estúdio de Morandi, 1989-90

Bolonha, Estúdio de Morandi, 1989-90 © herdeiros de Luigi Ghirri

Em 1967, Giulio Paolini, um dos principais representantes da arte povera, expôs a fotografia em preto e branco de um quadro renascentista, o Retrato de jovem, de Lorenzo Lotto (1505). A imagem, que tinha exatamente o mesmo tamanho do quadro original (28 × 23 cm), era intitulada Jovem que olha para Lorenzo Lotto. Em 1971, outro artista de ponta da arte povera, Giovanni Anselmo, produziu Entrar na obra: uma foto também em preto e branco que mostrava um campo de grama baixa e rala, enquadrado de maneira que não se via o horizonte; no meio dele, já pequeno pela distância, o artista de costas, correndo em direção contrária à objetiva. A fotografia, propositalmente de má qualidade, quando impressa em grandes dimensões (até 2 × 3 m), em tela solta sem chassi, esgarça a ponto de tornar-se um all over de borrões cinzentos, que só a presença da figura humana retransforma em paisagem.

Apesar das diferenças, as duas obras seguem estratégias convergentes. No caso de Paolini, o preto e branco denuncia imediatamente o caráter de cópia da fotografia em relação ao original. A foto, no entanto, em vez de afastar ainda mais a imagem de seu referente, como uma platônica “cópia da cópia”, parece devolver ao retratado sua realidade, seu olhar, que a pintura lhe subtraíra. O título sublinha, mas não gera essa ilusão. Ao contrário, o trabalho sugere que a realidade (o “aquilo esteve lá”, como dirá mais tarde Roland Barthes) esteja na imagem fotográfica não pela contingência de seus procedimentos, como a presença concreta do referente no momento do clique, mas como parte de seu código. A foto, pelo simples fato de ser foto, é signo da presença.

Inversamente, Anselmo aproveita os defeitos da impressão e da revelação, o grão excessivamente evidente, para conferir à fotografia algo que em princípio não lhe caberia, a densidade material de uma pintura, ainda que se trate de uma densidade meramente óptica, da ordem da representação, e não das coisas. E então, ao inserir-se pessoalmente nessa metáfora de matéria, ele a reverte em espaço real. O artista entra literalmente no campo da imagem, penetra entre grão e grão. E a foto, por sua vez, impressa em grandes dimensões e em tela solta, entra no espaço. Paradoxalmente, como no caso do olhar do jovem renascentista, a relação direta que a imagem estabelece com a vida, seu caráter de autenticidade, é fruto de uma mediação redobrada.

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Quentin Bajac, no ensaio incluído neste livro, alude às “grandes operações de desconstrução do meio fotográfico ao longo dos anos 1960, das quais a cena italiana foi, na Europa, protagonista”, e cita entre outros, além de Paolini, as fotografias sobre espelho de Michelangelo Pistoletto e o filme Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni. Vale ampliar ainda mais o quadro de referência: a discussão sobre a fotografia se insere num processo de reconstrução dos códigos narrativos e descritivos que interessa a toda a cultura italiana da época. Saía-se da experiência neorrealista, que tentara o resgate de um país arcaico e pobre (bem diferente daquele que a retórica de pré-guerra glorificava) mediante procedimentos narrativos modernos e altamente sofisticados, tanto na literatura como no cinema. O crescimento econômico que culminou nos anos 1960, a americanização acelerada da sociedade, o rápido desaparecimento de antigas tradições culturais, até mesmo milenares, tornaram aqueles procedimentos insuficientes. As estratégias de representação precisavam ser reformuladas, para ter um alcance maior e mais diversificado e, ao mesmo tempo, ser mais transparentes. Não era apenas questão de novas realidades a serem representadas: a própria relação entre realidade e representação tornava-se problemática, sob o impacto dos meios de comunicação de massa.

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Por outro lado, a modernização não se instalava sobre um terreno quase virgem, como aconteceu na América. Para a Europa, e para a Itália especialmente, arcaico não é só o obsoleto, mas também o antigo. Uma nova rede de imagens se sobrepunha a uma paisagem urbana e rural cuja legibilidade já era muito consistente, depurada pela experiência de séculos, mesmo nas camadas populares. Não era apenas a consciência moderna que permitia uma nova leitura do mundo tradicional; o mundo tradicional também, com seu patrimônio de imagens, suas sabedorias artesanais, seu patrimônio de formas e objetos, enfim, sua história, permitia uma leitura diferente, mais matizada e problemática, do sistema moderno de produção e troca.

O neorrealismo, nesse quadro, não foi repudiado. Antes, foi virado do avesso, fazendo referência constante a seus mecanismos internos, como para mostrar as linhas de costura. Surgiram, num período relativamente curto, o cinema de Antonioni, Fellini e Pasolini, a narrativa de Italo Calvino, a música metalinguística de Luciano Berio (a partir, não por acaso, dos Folk Songs), a arquitetura tipológica de Aldo Rossi, a arte povera. Todas essas manifestações artísticas buscaram meios linguísticos mais reflexivos para lidar com uma realidade complexa em que traços culturais contrastantes conviviam, mas não renunciaram ao contato com essa realidade. Todas se caracterizaram pela tensão entre modernidade e tradição, novos códigos linguísticos e escavação quase arqueológica de camadas de significado que se sobrepunham sem se encobrir totalmente. A ressignificação do mundo apoiava-se em uma fundação de memórias. O grande desenvolvimento das pesquisas semiológicas, tendo Umberto Eco como figura de maior ressonância internacional (mas Roland Barthes também foi muito lido na Itália), dialogou com boa parte dessa produção, garantindo uma verificação contínua entre teoria e praxe artística.

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Na obra de Luigi Ghirri, que pertence à geração imediatamente seguinte à que acabei de descrever, essas questões alcançam seu desenvolvimento pleno, no que diz respeito ao meio fotográfico, mas também um ponto de flexão. O processo de transformação já não tem o impulso de outrora: o moderno começa a envelhecer, o antigo já não é uma base compacta, mas uma substância que transpira entre as malhas da modernidade, não perfeitamente cerradas. Mais que a energia propositiva e rebelde, passa a valer a sutileza capaz de identificar as resistências, as contaminações, os pontos de sutura num panorama já transformado, em que novidade e obsolescência se fundem, às vezes no mesmo objeto. Quando Ghirri, por exemplo, fotografa plantas recortadas em formas geométricas ou dispostas simetricamente no espaço exíguo entre uma grade e um muro de concreto, ou cadeiras de jardim no espaço diminuto da varanda de uma casa pequeno-burguesa da periferia, ele parece buscar, na terra de ninguém que cresce desmedidamente entre as cidades históricas e o campo, o aflorar de sentidos antigos: a ordem cósmica do jardim à italiana, traduzido em arranjo doméstico; a joie de vivre do subúrbio impressionista homogeneizada por um piso de granito industrial (Desjejum na relva). O que o fotógrafo registra é a persistência dos homens em qualificar os espaços, atribuir valores às coisas, transformá-las em signos. E esses signos, por baratos e ingênuos que sejam, tomados individualmente, combinam-se em cadeias nem sempre intencionais, mas que sempre os tornam ricos e significativos.

O lugar de eleição para que tal combinação se torne legível, se não decifrável, é o enquadramento fotográfico. Em Ghirri, é sempre frontal, a ponto de o espaço representado sugerir a planura de uma página ou de um mapa. A luz é uniforme, seja aquela leitosa do vale do rio Pó, ou a dourada de Capri e do litoral da Puglia. Ghirri não se pauta pela poética do momento decisivo, pelo esforço de resumir no instante o significado inteiro de uma ação. É fotógrafo dos tempos longos, das permanências: na ação humana, interessam-lhe os sedimentos, aquilo que se depositou e já não tem mais sujeito – a cultura, enfim, enquanto patrimônio coletivo de significados. Toda imagem de Ghirri é releitura de outras imagens, não apenas quando fotografa outras fotografias, mapas, propagandas, maquetes, mas também quando retrata paisagens ou edifícios. Atrás de cada enquadramento há inúmeras imagens que, de tão repetidas, se tornaram banais: cartões-postais, decorações em trompe l’oeil de palácios antigos (não as obras-primas, mas a pintura menor, quase artesanal), cartazes de agências de turismo, souvenirs em gesso ou plástico. Ghirri subverte esse repertório comum, aparentemente inexpressivo, conferindo-lhe uma intensidade inesperada. Suas imagens, quando vistas pela primeira vez, são reconhecíveis, como se já nos pertencessem. Mas também despertam uma sensação de estranhamento, como se aquilo que é excessivamente familiar se tornasse, por isso mesmo, enigmático.

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Em seus numerosos escritos, o fotógrafo insiste sobre dois pontos: o primeiro é a transformação da realidade em imagem, como se o mundo estivesse se tornando uma grande fotografia. Emblema disso é a famosa imagem da Terra vista do espaço, realizada durante a viagem da Apollo 11 à Lua, em 1969. Ela é, para Ghirri, a foto das fotos, aquela que contém potencialmente todas as outras. Ele a reencontra e a reproduz em 1978 numa placa de sinalização em Lido de Spina, pequeno balneário no delta do rio Pó. Não é uma brincadeira sem intenção: se o mundo inteiro é um signo, também todo signo, pelas infinitas relações que entretém com todos os outros, é o mundo. A imagem da Terra tirada da Apollo 11 e aquela pendurada no poste de Lido de Spina são dois pólos de uma cadeia ininterrupta de significados. Uma não é mais real que a outra.

O segundo ponto focal da reflexão de Luigi Ghirri é a representação da nova paisagem. Por esse termo, se entende especialmente aqueles espaços que não são nem urbanos nem rurais (periferias que se esgarçam em direção ao campo, regiões agrícolas atravessadas por rodovias e já contaminadas por complexos industriais e comerciais), cuja existência foi ficando sempre mais evidente e invasiva a partir do pós-guerra. Certamente não era uma questão só de Ghirri, nem apenas italiana, muito embora na Itália, pelo valor icônico de que a paisagem se revestia outrora, ela fosse mais pungente. A esse respeito, Ghirri reconhece sua dívida com a nova fotografia de paisagem norte-americana: William Eggleston, Stephen Shore. Mas, atrás deles, sua referência principal declarada é o realismo enxuto de Walker Evans. Pode surpreender, num fotógrafo interessado na fotografia como signo, essa admiração incondicional por um artista marcado pela busca de um contato dreto e despojado com os homens e as coisas.  Mas para Ghirri não vale aquilo que a doutrina moderna do simulacro defende: o mundo das imagens e dos signos não é um substituto do mundo real. Ao contrário, as coisas são tão mais reais quanto mais carregam significados, quanto mais são marcadas por investimentos afetivos, vivências. Olhar para os hieroglifos de que a realidade se compõe (o termo é do próprio Ghirri), significa olhar para a própria realidade, em suas infinitas articulações.

Por aí se explica também o escasso interesse de Ghirri pela foto tableau, de grandes dimensões e definição minuciosa. Suas imagens são de formato relativamente pequeno, realizadas e impressas com recursos simples, ao alcance de um bom amador. Mais que a foto isolada, ele cultiva a disposição em séries, tanto nos livros, que foram o meio privilegiado de divulgação de seu trabalho, quanto na montagem de exposições. Como as coisas que retratam, as fotografias também são verbetes de um dicionário potencialmente infinito, termos de uma linguagem nova, mas com raízes antigas, que ainda não deciframos por inteiro. Precisam de uma sintaxe que as organize.

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Há fortes analogias entre a fotografia de Luigi Ghirri e a arquitetura de Aldo Rossi, que na mesma época alcançava a maturidade plena. Ghirri, de fato, foi o fotógrafo de eleição das obras do arquiteto. Ambos compartilham o interesse pela tipologia – não, porém, uma tipologia de esquemas fixos, mas uma de fragmentos que se sobrepõem produzindo acontecimentos inesperados. Rossi parte de elementos arquetípicos, carregados de memória (um bule, uma coluna), cujas escalas e funções altera constantemente para atribuir-lhes novos significados. Sua lembrança da neblina invadindo a igreja de Santo André em Mântua, reformada em “estilo antigo” por Leon Battista Alberti por volta de 1460, [1] bem que poderia ser a descrição de uma foto de Ghirri, especialmente daquelas que o fotógrafo realizou para um dos projetos mais famosos do arquiteto, o cemitério de Módena.

A neblina, no texto de Rossi, não só embaça a atualidade da reforma de Alberti, deixando-a mais próxima ao modelo antigo que pretende ressuscitar, como também a associa, na memória do arquiteto, a outra tentativa de revivescência do antigo, a oitocentista e eclética Galeria Vittorio Emanuele, em Milão. A luminosidade atmosférica, expressão de um tempo circular que se sobrepõe ao tempo linear da história, produz dessas recorrências. Com sensibilidade análoga, Ghirri retrata o cemitério de Módena numa paisagem de neve, como se eleestivesse ainda em construção e, ao mesmo tempo, já fosse antigo.

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A sensibilidade à luz, de fato, é um dos grandes trunfos da arte de Ghirri. Já dissemos que ele a prefere uniforme, sem contrastes dramáticos. Nos tempos longos da narrativa ghirriana, a luz é o tempo longuíssimo, aquele que unifica, como um campo linguístico mais geral, a colagem e a superposição contínua dos signos. Longuíssimo, mas não imóvel. As fotos justamente famosas de Versalhes, por exemplo, foram realizadas com meios simples, e nenhuma manipulação na estampa. Essencial foi esperar o momento e as condições atmosféricas exatas em que o ambiente adquirisse aquela aparência irreal de cartão-postal colorido. A vida imita não a arte, mas a imagem barata, de uso cotidiano.

Desse ponto de vista, o mestre de Ghirri não é nem Aldo Rossi, nem Walker Evans, nem a pintura metafísica do Novecento italiano (da qual, no entanto, também é devedor): é Giorgio Morandi. Ghirri fotografou o ateliê de Morandi. Num texto escrito para uma antologia sobre fotografia e ambiente, [2] ele relata o desespero que acometeu o artista quando, na década de 1960, um enorme condomínio  foi construído na frente de sua janela: não apenas a vista que fora motivo de tantos quadros desaparecera, como o reboco amarelo do prédio alterara irreparavelmente a luminosidade do ambiente. Para recuperar sua luz, Morandi montou estruturas de tela que chamava de “velatini”. Da mesma maneira como, amiúde, pintava a óleo a superfície de suas garrafas, antes de reproduzi-las na tela, Morandi reconstruía assim a luz de seus quadros, não para obter efeitos artificiais, mas para que ela voltasse a ser real. A realidade, nesse sentido, não é a coisa bruta em si, mas uma imagem escolhida, tornada autêntica pela acumulação de valores que atribuímos aos objetos e aos espaços. No texto, Ghirri desenvolve seu raciocínio observando que as novas paisagens, que parecem indiferenciadas e anônimas, tornam-se singulares para quem as habita e as conhece “como a palma de sua mão”. E diz ainda que gostaria que as fotografias que documentam essas paisagens alcançassem esse grau de intimidade. Nas imagens realizadas no ateliê de Morandi, Ghirri deixa que transpareça a luz amarelada que o condomínio irradia. Ela já faz parte da história.

Uma foto dessa série é especialmente significativa, ainda que não seja necessariamente a melhor do conjunto. Sobre a mesa de trabalho, Morandi pendurara um elástico num prego. Quando a luz do sol atingia o elástico e projetava nitidamente sua sombra contra a parede, o pintor considerava que havia condições para trabalhar e começava a dispor suas garrafas. Ghirri fotografou o elástico numa imagem frontal e planar, quase ela mesma uma pintura. Nela se enxergam: um fragmento de cartolina recortada, parcialmente recoberto por pinceladas de tinta e fixado à parede por uma tachinha; um pequeno recorte da parede de fundo, atravessado por uma fenda; e o famoso elástico no prego, projetando uma sombra nítida na cartolina e outra, um pouco mais esfumada, no reboco do muro. Apenas essa sombra e, de maneira ainda mais tímida, a da tachinha sobre a cartolina e a da cartolina sobre a parede determinam alguma profundidade na imagem. O assunto da fotografia é, sem dúvida, a luz de Morandi. Não porém uma luz abstrata, estética ou metafísica, mas a luz cotidiana, marcada por um instrumento elementar e, ela própria, um instrumento do pintor. O elástico insiste ainda hoje em marcá-la, apesar do amarelo que o edifício em frente projeta, e que Ghirri deixa incorporar-se à imagem. Não é algo que possa ser medido em lumina.

Ghirri nunca deixou de insistir sobre a intenção documental de seu trabalho: o que ele se esforça por registrar são transformações da paisagem, novos códigos de convivência. O objeto em si, porém, não é reproduzível imediatamente, porque precisa antes ser vivido, e a vivência não se deixa fotografar senão estabelecendo relações, atribuindo significados. Deve ser possível dispor as imagens uma após a outra, tão planas e homogêneas quanto cartas de baralho. Só assim, por sua consistência de signos objetivos, e não pela imitação, elas se tornarão semelhantes às coisas. E as coisas, por sua vez, nada mais são que imagens condensadas.

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O protagonista de Blow-up amplia suas imagens até se tornarem borrões indistintos e descobre um crime pela relação que estabelece entre as manchas. Encontra o corpo, que desaparece antes de ser fotografado. Na última cena, nada resta ao fotógrafo senão devolver uma bola imaginária lançada em sua direção por um grupo de mímicos. Talvez não seja uma derrota completa. Talvez aquela bola, que a ação compartilhada de muitos traz à existência, seja tão real quanto a Terra fotografada da Apollo 11.


[1] ROSSI, Aldo. Autobiografia científica. Barcelona: Gili, 1984, p. 10 [São Paulo: Edições 70, 2013].

[2] “Uma luce sul muro”. In galbiati, Marisa (ed.). Lo sguardo discreto, habitat e fotografia. Milão: Tranchida, 1991; republicado em: ghirri, Luigi. Niente di antico sotto il sole. Turim: sei, 1997.///

Lorenzo Mammì é professor de filosofia na Universidade de São Paulo, crítico de arte e de música.