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Robert Frank e Robert Delpire

Sergio Burgi & Robert Frank Publicado em: 27 de setembro de 2017

Robert Frank, Parada – Hoboken, Nova Jersey, do livro Os americanos © Robert Frank

Robert Frank nasceu em 1924 em Zurique, na Suíça. Em 1946, criou seu primeiro livro de imagens, intitulado 40 Fotos. No ano seguinte, emigrou para os Estado Unidos, onde colaborou como fotógrafo na revista Harper’s Bazaar. Em 1948 viajou pela América Central e do Sul, percorrendo extensivamente o Peru, dos Andes à Amazônia peruana, fazendo inclusive uma rápida incursão em Manaus no início de outubro daquele ano. Algumas de suas imagens desta sua única visita ao Brasil, todas inéditas, são apresentadas na exposição Robert Frank: Os Americanos e Os Livros e os Filmes, em cartaz no IMS Paulista.

Após a publicação da edição americana do livro The Americans (1959), seu principal trabalho ao longo de sua carreira como fotógrafo, Frank interrompeu seu trabalho fotográfico e passou a produzir e dirigir filmes, o primeiro deles o curta-metragem Pull My Daisy (1959), baseado em poema de Jack Kerouac e registro essencial sobre a geração beat. Desde o início dos anos 1970, retomou sua produção fotográfica e de livros de autor, em paralelo à produção de filmes, produzindo agora prioritariamente títulos de caráter autobiográfico, que transitam por uma poética que permanece interrogando os limites da linguagem da fotografia, em sua relação com o texto, a memória e o arquivo como fonte de inspiração e criação, como revelam os títulos de sua série Visual Diaries (2008-2017) e seu último lançamento, Leon of Juda, deste ano.

Ao chegar a Nova York em 1947, aos 23 anos, deixando para trás uma Europa devastada pela guerra, Robert Frank busca nos EUA a experiência do novo mundo e da grande metrópole, uma vivência renovada de dimensões espaciais e culturais diametralmente opostas àquelas de sua terra natal. Como descendente de pai judeu alemão e mãe suíça, viveu, mesmo residindo na Suíça, os traumas e discriminações de um povo fortemente perseguido e estigmatizado pelas ideologias nazistas e fascistas que se alastraram pelo território europeu a partir dos anos 1930. Imigrar para Nova York após a guerra significou para Frank, como para milhares de outros jovens europeus na mesma situação, uma efetiva possibilidade de um recomeço na metrópole naquele momento símbolo de um novo tempo.

Um ano após sua chegada a Nova York, Frank realiza em 1948 uma longa viagem ao Peru e a outros países da América Central e do Sul, incluindo uma passagem por Manaus no Brasil. A viagem inicia-se na América Central, onde Frank passa pela Cidade do Panamá e por Santiago de Cuba. Em seguida, viaja intensamente pelo Peru, fotografando em Lima e em diversas regiões do país, na costa do Pacífico, nos Andes e na Amazônia peruana. Esta viagem certamente representou para Frank seu primeiro grande mergulho na América profunda, pré-colombiana e latina. Da mesma maneira que diversos fotógrafos europeus haviam na década anterior visitado o México em busca de uma leitura e compreensão amplificada da história e das contradições do continente americano, entendido em suas múltiplas dimensões associadas ao período anterior às conquistas européias e aos distintos processos de colonização pelos quais atravessou o continente, Frank buscou nesta viagem, especialmente na região dos Andes e também na Amazônia, sua própria compreensão desta diversidade do continente americano que transcende o processo estrito de colonização anglo-saxão do território norte-americano, que ele viria a retratar oito anos depois no projeto realizado com apoio da Fundação John Simon Guggenheim Memorial para documentar os Estados Unidos de leste a oeste, construindo uma representação única e incisiva da sociedade americana da década de 1950.

O exame detalhado de seus arquivos, hoje preservados na National Gallery of Art em Washington, EUA, revela que, nesta viagem à América Central e do Sul, ao viajar pelo rio Amazonas, ainda no Peru, documentando a população ribeirinha, Frank também visitou brevemente Manaus nos primeiros dias de outubro de 1948. Ele viaja da Amazônia peruana à Manaus em um pequeno hidroavião e permanece na cidade por poucos dias. Frank produziu algumas imagens em filme formato 120, especialmente durante o vôo, e registrou a cidade e seus arredores principalmente em filme 35mm. No total, são apenas cerca de 100 fotogramas, na maioria 35 mm, onde Frank registra aspectos urbanos, do centro de Manaus às margens do rio, mostrando alguns aspectos do cotidiano, incluindo colegiais deixando a escola, moradias ribeirinhas em palafitas, o Teatro de Manaus e vistas variadas da cidade. Um aspecto marcante desta sua passagem por Manaus foi o registro do incêndio ocorrido no dia 01 de outubro no centro de Manaus, assim noticiado em página inteira do Jornal do Comercio do dia seguinte: “Pavoroso incêndio no centro comercial da cidade. Destruído pelo fogo o edifício de Benemond & Cia.”.  Frank registrou o incêndio em cerca de 40 fotogramas, enquanto acompanhava o desenrolar do evento, registrando a ação dos bombeiros e também a reação da população local.

Este conjunto de registros realizado no Brasil configura um interessante legado, por incluir, ainda que de forma incipiente, alguns elementos de linguagem que marcariam sua produção posterior. Em especial nas fotos do incêndio, Frank realiza imagens bastante próximas dos indivíduos em diversos momentos das ações de combate ao fogo, numa interessante relação entre primeiro plano e planos posteriores. O evento, evidentemente, por sua intensidade, é registrado por Frank num sentido quase foto-jornalístico, entretanto o conjunto das imagens de Manaus, ainda que restritas em quantidade, evidencia também uma tentativa de leitura mais geral do ambiente, que, porém, não chega a ser plenamente desenvolvida em função do caráter episódico desta curta visita à cidade. Após Manaus, Frank retornou ao Peru e viajou diretamente a Machu Picchu, como indica a seqüência de fotogramas em seus filmes fotográficos realizados durante a viagem e preservados nos arquivos da National Gallery of Art.

Ao retornar desta viagem, que incluiu ainda uma extensa visita ao lago Titicaca, tanto no lado peruano quanto no boliviano, Frank produziu uma série de imagens editada em um livro de autor, intitulado Peru, somente sobre o altiplano e os Andes peruanos e seus habitantes. Este conjunto, editado cuidadosamente, prescinde de texto e leva o leitor por imagens que alternam, por um lado, o registro dos habitantes e, por outro, a visão ou ponto de vista destes mesmos habitantes, ao mesmo tempo em que concatena a narrativa através de elementos figurativos recorrentes, neste caso, os chapéus e suas formas preponderantes em muitas das imagens reunidas no livro. Frank manteria esta estratégia de narrativa em muitos de seus trabalhos posteriores, sendo a mesma determinante para que este pequeno livro de autor sobre o Peru despertasse o interesse sobre seu trabalho por parte do então jovem editor francês da Revista Neuf, Robert Delpire, e futuro editor da renomada série de livros fotográficos Photo-Poche, falecido ontem, 27 de setembro, em Paris.

Em 1952 Delpire publicou um número da revista Neuf dedicado totalmente a Robert Frank, exclusivamente com o material do Peru produzido e editado por ele. Em 1956, o material de Frank sobre o Peru voltaria a ser publicado por Robert Delpire, agora no livro From Incas to Indios, que reuniu imagens de Werner Bischof, fotógrafo suíço que morreu nos Andes em 1954, de Robert Frank produzidas em 1948 e de Pierre Verger, fotógrafo francês que viajou extensivamente pela América do Sul antes de se radicar em Salvador em 1946. Este livro configura, portanto, um segundo projeto editorial de Frank com Delpire e também um segundo ponto de contato de Robert Frank com o Brasil, pelo relacionamento que manteve com Pierre Verger em função da publicação do livro.

Capa do livro From Incas to Indios, 1956, editado por Robert Delpire com fotos de Robert Frank, Werner Bischof e Pierre Verger.

Esta relação de Frank com Robert Delpire nos anos de 1952 e 1956, em torno das imagens do Peru realizadas em1948, explica, portanto, em grande medida, porque Delpire se tornaria o editor da primeira edição do livro Les Américains, produzido por Frank com a bolsa da Fundação Gugenheim, editado em 1958 na França e que somente seria editado nos EUA no ano seguinte, em 1959, com o título The Americans, após superar as fortes restrições iniciais ao seu trabalho oriundas da crítica norte-americana.

A viagem em 1948 ao Peru e a outros países da América Central e do Sul, incluindo uma passagem por Manaus, e as viagens posteriores a Paris, Valência, Londres e Wales, ao longo da primeira metade dos anos 1950, todas realizadas antes do projeto The Americans, resultaram, conjuntamente, em dois projetos importantes de livros de autor de Frank: Peru (1948), sobre as populações dos Andes peruanos, como já discutido acima, e também Black White and Things (1952), editado essencialmente em torno de questões específicas da linguagem fotográfica relevantes e decisivas para Frank naquele momento. Utilizando imagens diversas selecionadas a partir de todos os projetos realizados por ele até então, um dos três únicos exemplares de Black White and Things produzidos por Frank foi dado pessoalmente por ele a Edward Steichen, então curador do Museu de Arte Moderna de Nova York. A relação de Frank com o meio da fotografia em Nova York foi desde a sua chegada à cidade, em 1947, intensa e incluiu também, além dos relacionamentos institucionais, por exemplo, uma longa amizade com o fotógrafo Louis Faurer, com quem no início dos anos 1950 construiu nas ruas da cidade as bases de uma nova linguagem, uma fotografia de rua intuitiva, crítica, poética, sempre profundamente autoral e permanentemente partilhada entre ambos.

Como escreveu Delpire no número da revista Neuf de 1952, que editou e dedicou integralmente a Frank e suas fotografias do Peru:
“Ele é um daqueles que não fazem o trabalho de seu pai. Daqueles que deixam o país antes da idade adulta. O bolso de seu sobretudo adaptado para sua Leica. Aos 28 anos, ele não sabe o que é uma fronteira. Pois ele falou sucessivamente todas as línguas que ouviu. Nascido na Europa, ele é americano, sua mulher é inglesa, chamam de Pablo a seu filho. Em todos os lugares, ele passou por um tormento igual. Alguns acreditam que é pessimista. Ele tem muito medo. Da facilidade. Das redações. Dos manequins indolentes. A foto da moda o alimentou muito bem. Steichen previu seu futuro abrindo o Museu de Arte Moderna. A ‘Life’ o consagrou. Atualmente ele está em Londres. Ele fotografa os banqueiros, que ele diz se parecerem com os mineiros. Ele busca com o coração o que os outros buscam com os olhos”.

Assim, quando no início da década de 1950, Frank afirmou que “o preto e branco na fotografia é a visão da esperança e do desespero, e é isto que eu busco em minhas fotografias”, já indicava a radicalidade com que defenderia continuadamente sua independência artística e criativa, fator fundamental para uma compreensão efetiva da série Os americanos e sua influência sobre gerações de fotógrafos do período e posteriores. Frank percorreu e registrou diversas temáticas da sociedade norte-americana, então profundamente dividida por embates ideológicos e sociais representados, por um lado, pelo macartismo e extremo conservadorismo de grande parte da sociedade e, por outro, pela luta cada vez mais intensa pelos direitos civis e liberdades individuais das minorias, em especial dos negros do sul, num processo próprio de construção de sentido onde, como afirma a curadora e pesquisadora Sarah Greenough, “todo o discurso e racionalização torna-se inútil e irrelevante, pois Frank teve sucesso não em evocar uma metáfora para sua experiência dos Estados Unidos, mas a experiência em si mesma. Não dependente de palavras, esta série fala ao coração, não à mente. Ela não registra, descreve ou apresenta, mas, ao contrário, catalisa e engendra a própria experiência; nesse sentido, simplesmente é.” Percebe-se, assim, a ligação estreita existente entre esta sua trajetória de permanente deslocamento, – como também apontado por Delpire já em 1952 em seu texto sobre o jovem Frank -, e sua procura incessante e permanente por uma linguagem própria baseada menos na razão e certamente mais na vivência, intuição e forte engajamento com seus temas e inquietudes.

Sua viagem em 1948 à América Central e do Sul, passando por Manaus, é, portanto, já constitutiva e estruturante desta sua busca por uma linguagem autônoma e independente que se consolidará plenamente uma década depois na série Os Americanos, publicada originalmente na França em 1958 por Robert Delpire,

 

Sergio Burgi é coordenador de fotografia do Instituto Moreira Salles e curador, junto com Samuel Titan Jr. e Gerhard Steidl, da exposição Robert Frank. Os americanos + Os livros e os filmes, em exibição no IMS Paulista até 30 de dezembro de 2017.

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