Radar

Quatro fotofilmes brasileiros

Claudia Tavares Publicado em: 20 de abril de 2021

 

Frame do fotofilme Uma rua chamada Triumpho, de Ozualdo Candeias, 1971

Você já deve ter ouvido o termo fotofilme. Mas você sabe dizer o que são fotofilmes? Talvez já tenha assistido algum e não tenha se dado conta que era um fotofilme, já que essa nomenclatura não é tão difundida no meio da fotografia como os fotolivros são. Fotofilmes são uma modalidade de apresentação de imagens fixas em sintonia com a montagem cinematográfica, integrando a linguagem estática da fotografia com a fluidez da linguagem do cinema, transformando trabalhos fotográficos em filmes, ou melhor, em fotofilmes. Podemos dizer que é um formato diferenciado, tanto no universo da fotografia como no cinema. Alguns fotofilmes circulam em festivais de cinema, como os premiados e famosos La jetté (A pista), do diretor francês Chris Marker e Now (Agora), do cubano Santiago Alvarez. Mais recentemente, os fotofilmes começam a fazer parte da programação de festivais de fotografia, com mostras e convocatórias específicas para esse formato. Nesse sentido os fotofilmes ampliam as possibilidades narrativas e de circulação da apresentação do trabalho de um fotógrafo ou cineasta, tornando-se mais um desdobramento possível de um mesmo material fotográfico original, para além do fotolivro e da exposição. Algo bastante atrativo nos dias de hoje, em que cada vez mais interagimos em ambientes virtuais.

Esse formato híbrido leva em consideração a montagem cinematográfica para potencializar a expressão artística, contando com adições de outras camadas de sentido além das próprias imagens fotográficas, tais como duração, transições, narrações, legendas e sonorização. A edição das imagens estáticas segue um fluxo que vem da linguagem cinematográfica. O ritmo de apresentação das sequências determina a narrativa, enfatizada por elementos como o tempo de duração das imagens na tela, os possíveis movimentos de câmera e ainda as possibilidades de transição entre as fotografias. Enquanto em um fotolivro é o leitor quem determina quanto tempo quer ficar olhando para uma página, no fotofilme é o autor que determina o tempo que uma imagem vai ser vista na tela. E essa é uma diferença essencial, já que é o domínio desse tempo que estabelece o ritmo do fotofilme. Outra característica primordial nesse formato é o uso da banda sonora e as possibilidades de som que podem ser acrescentadas à sequência de imagens. Narração, música e sons ambientes dão ritmo e clima aos fotofilmes.

Pensando a produção brasileira de fotofilmes, encontramos uma significativa diversidade no uso das formas de edição para a criação de obras singulares. Temos fotofilmes que usam primordialmente imagens e música, outros que usam legendas e textos ao invés do som, alguns que usam a técnica de time-lapse para acelerar o tempo, e ainda aqueles que investem na complexidade da banda sonora ao explorar música, ruídos e narração. O importante é entender que a criação de um fotofilme não tem uma fórmula pronta e única, mas está aberta a inúmeras combinações de imagem e som de acordo com a intenção do autor.

Selecionei quatro fotofilmes brasileiros (todos disponíveis para visualização em plataformas virtuais) para apresentar e exemplificar a amplitude de possibilidades de criação nesse formato que pode incutir um certo movimento às imagens estáticas. São eles À João Guimarães Rosa, de Marcello Tassara, 1969; Uma rua chamada Triumpho, Ozualdo Candeias, 1971; Caixa de Sapato, Cia de Foto, 2008; e Árvore, Paula Sampaio, 2015.

 

Premiado em 1969 no 5º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro como melhor curta metragem, o filme À João Guimarães Rosa, foi criado por Marcello Tassara em parceria com a fotógrafa Maureen Bisilliat e suas imagens em preto e branco resultantes da viagem em que reinterpretou o sertão mineiro narrado em Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa. A primeira imagem do fotofilme, por onde se sobrepõem os créditos iniciais, é a mesma usada na capa do livro homônimo da fotógrafa na edição de 1974. Físico e cineasta, em 1968 Marcello Tassara se torna professor de uma das primeiras turmas do curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde atuou até falecer em maio de 2020. Tassara é dono de uma filmografia muito extensa, na qual imprime seu caráter experimental e desbravador na utilização de imagens fotográficas.

À João Guimarães Rosa é uma preciosidade. Nele experimentamos a potência das fotografias individuais aliadas ao ritmo da filmagem e montagem. A estrutura do fotofilme se sustenta na narração de Humberto Marçal (que lê trechos selecionados do livro), na música de Chico de Moraes e, obviamente, nas fotografias de Bisilliat ampliadas em diversos tamanhos para serem filmadas. Vemos as fotografias filmadas por uma câmera de cinema e depois editadas em um equipamento chamado truca, utilizado na época da montagem em película para realizar efeitos de trucagem cinematográfica, como ampliação e redução de imagens, por exemplo. A truca possibilita vários passeios da câmera por cima das imagens impressas: ora se aproximando, ora se afastando, em movimentos de travelling horizontal e tilt vertical, se deslocando para a esquerda ou a direita, para cima ou para baixo, desvelando a imagem aos poucos e evidenciando a rica parceria entre fotografia e cinema. Essa possibilidade de criar movimentos em cima da fotografia e assim multiplicar uma mesma imagem é um dos recursos preciosos usados nos fotofilmes.

Além disso, os reenquadramentos que Tassara propõe fazem com que as imagens fotográficas sejam reveladas aos poucos, dos detalhes chegamos ao todo, do todo recortamos os detalhes. Mais um movimento a ser notado é o giro da câmera, que imprime certa vertigem em um determinado momento do fotofilme para anunciar a próxima cena: uma cavalaria correndo acelerada. Em uma cena de apenas vinte segundos de duração, com poucas imagens fotográficas, surge a maestria do trabalho de Tassara: o ritmo é criado com uma montagem ágil, rápida, que consegue imprimir uma velocidade estonteante às imagens estáticas. Podemos sentir no corpo o trote do cavalo, o vento no rosto e a adrenalina disparada pela cavalgada. E é nesse jogo de recortes e movimentos que Tassara cria a narrativa e imprime o ritmo do fotofilme, contando também com a presença da música e do silêncio, inclusive pontuado pelo narrador que, após certo momento silencioso, diz “a gente sabe que esses silêncios estão cheios de mais outras músicas”.

 

Dirigido por Ozualdo Candeias, Uma rua chamada Triumpho é um fotofilme sobre a rua Triumpho, em de São Paulo. O local onde boa parcela da classe cinematográfica atuou, principalmente, durante os anos 1970, é também conhecido como Boca do Lixo, reduto do cinema marginal brasileiro que realizava “filmes pobres, feitos por pessoas sem formação acadêmica, que tiram do lixo seu potencial poético e comercial”. Candeias foi um importante personagem deste cenário. Tido como diretor primitivo, trabalhava de forma direta e crua, com poucos recursos e se interessava por diversas realidades brasileiras.

Em Uma rua chamada Triumpho, Candeias fotografa as pessoas do meio cinematográfico que por ali circulavam e a partir daí constrói a narrativa do fotofilme. Apoiado na narração de Fábio Perez e na música de Vidal França, Candeias assina a autoria das fotos, roteiro, câmera, fotografia, texto e direção. Assim como Tassara, ele também usa uma truca, onde apoia suas fotografias ampliadas para serem filmadas.

O filme começa com imagens noturnas, letreiros de hotéis intercalados com closes de mulheres e homens que, através de seus olhares, sugerem um clima de flerte e namoro no ar. O ritmo é rápido, com a câmera se aproximando e se afastando das fotos, zoom in e out. Quando amanhece vemos vendedores ambulantes, catadores de lixo e puxadores de burro sem rabo que transportam latas de filmes da produção brasileira pela rua. Com essa introdução, Candeias apresenta o grupo de trabalhadores do cinema brasileiro, seus personagens principais: produtores, atores, cinegrafistas, distribuidores, eletricistas, todos eles habitantes da Boca do Lixo. E pelo recurso do reenquadramento, vai apresentando um a um seus “atores”. Vemos um rosto, depois outro, e mais um outro, até que vemos as fotografias inteiras, flagrantes de situações de encontros na rua.

As imagens por vezes são levemente desfocadas, algumas com mais contraste que outras, e a maioria sem nenhum tipo de retoque, deixando evidente os defeitos dos negativos e ampliações, revelando a escolha pelas imagens cruas. Os nomes dos personagens são narrados, assim como suas funções e filmes dos quais participaram, configurando uma homenagem aos fazedores do cinema na capital paulistana. É a narração que estabelece o ritmo do fotofilme, enquanto a música embala a passagem de uma imagem a outra. É através do texto narrado que a montagem transita entre os personagens, em planos ora abertos ora fechados. Quando a noite se aproxima os encontros passam a acontecer nos bares, e a montagem retoma ao início, sugerindo que “tudo recomeça pra continuar no dia seguinte”, frase dita pelo narrador e reforçada novamente pelos closes, olhares e bocas.

 

Caixa de sapato, fotofilme de pouco mais de quatro minutos de duração, é, segundo sua descrição no Vimeo, um ensaio sobre a intimidade e o cotidiano do coletivo Cia de Foto, formado, entre 2003 e 2013, por João Kehl, Pio Figueiroa, Rafael Jacinto e Carol Lopes. Caixa de sapato é também um termo usado em fotografia para denominar aquelas imagens familiares que são guardadas – e muitas vezes esquecidas – em compartimentos domésticos para serem redescobertas tempos depois, uma espécie de banco de memórias. E é com essas imagens familiares e cotidianas que o fotofilme da Cia de Foto é construído, num processo digital de montagem.

O curto tempo de duração das imagens na tela faz com que não possamos nos deter em cada uma delas. Um dia passa, uma noite passa, uma gravidez passa. As crianças crescem, os encontros acontecem, os casais namoram e as garrafas de vinho se esvaziam. Assistimos a vida passar rápido, com pequenas pausas e alguns respiros. Queremos olhar por mais tempo algumas imagens, mas isso não é possível. Em alguns momentos a pausa acontece com imagens em movimento, pequenos trechos de vídeos que invadem a banda sonora com seus sons ambientes e nos colocam mais perto dos personagens. O ritmo da trilha sonora é repetitivo, sugerindo que tudo recomeça a cada dia. O tempo é o protagonista desse trabalho. O manejo do tempo da montagem dialoga diretamente com o tempo de duração dos momentos efêmeros e remete ao tempo incutido na linguagem da fotografia. Tudo passa, isso foi.

Caixa de sapato tira da penumbra momentos ordinários e ilumina momentaneamente insignificâncias, delicadezas e intimidades. Aponta para o ritmo acelerado da brevidade da vida. Os instantes se sucedem e só ficam presentes quando guardados na poesia da memória.

 

Desde os anos 1990 Paula Sampaio, fotógrafa mineira que escolheu a região amazônica para viver, percorre as grandes estradas Belém-Brasília e Transamazônica, abertas pelo regime militar com a nefasta intenção de colonizar a selva, redistribuir terras desocupadas e promover a agroindústria. Em seus ensaios fotográficos, Sampaio revela processos de ocupação e colonização da região, com enfoque nas memórias orais e no patrimônio imaterial das comunidades. Seus trabalhos refletem sobre a natureza e a fragilidade dos seres, e se apoiam na produção de imagens fotográficas e textos.

Há 20 anos Sampaio percorre o lago Tucuruí, que tem mais de 3.000 km2 e surgiu a partir do represamento do rio Tocantins para a construção da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, na década de 1970. “Um lago monstro de grande!”, nas suas palavras. Em uma de suas viagens ao lago, por uma mudança de percurso e de destino, Sampaio encontra uma floresta fossilizada. Surge o espanto. E surge também o fotofilme Árvore. Realizado em 2015, tem como crédito inicial o título e logo abaixo o escrito Depoimento / Paula Sampaio, indicando que vamos ouvir uma história contada pela autora. O fotofilme é construído com um movimento de deslocamento lateral muito lento e delicado que percorre apenas uma fotografia. Uma imagem tensa, difícil pela gravidade de seu conteúdo e acompanhada pela voz da autora narrando seu próprio texto. Na fotografia vemos restos de árvores, troncos nus asfixiados numa imensidão de água. Sabemos que um dia tiveram galhos frondosos e folhas verdes que respiravam e produziam vida. O som não é de uma música, mas de uma trilha composta pelo barulho das águas que vai lentamente se misturando e se transformando em som de pássaros acrescidos de vozes de crianças brincando e um ruído de motocicleta que passa, trazendo humanidade e urbanidade a uma paisagem de abandono e esquecimento. Árvore tem apenas 2’30″ de duração, mas carrega em si o tempo alargado da destruição.

Assim como a linguagem da fotografia é ampla e elástica tanto quanto a do cinema, capaz de abranger diversas formas e intuitos, os fotofilmes, a meu ver, são mais do que apenas um formato de apresentação de imagens. Arrisco dizer que constituem também uma linguagem particular, ainda pouco explorada, pesquisada e difundida. Um feixe evanescente de luz e som onde as decisões que definem a narrativa, tom e ritmo dependem de uma série de fatores, como a escolha do tempo de duração de cada imagem, do tamanho da imagem na tela, do ritmo imposto pelos cortes e transições, do uso de vários elementos sonoros ou até mesmo a opção pela mudez.

Todas essas escolhas constroem um fotofilme e trazem uma incontável gama de possibilidades de criação ao congregar as potências de dois campos imensos e riquíssimos de comunicação e arte: a fotografia e o cinema. Um fotofilme é uma confluência dessas duas linguagens. Enquanto o cinema é uma sucessão de fotogramas projetados que representam fluidez e continuidade, a fotografia nos oferece fragmentos inanimados, pausados no tempo, um fotofilme é capaz de suscitar movimento ao que é estático, fazer soar fotografias mudas, multiplicar uma imagem única, acrescer ritmo à cadeia de imagens. É, portanto, uma linguagem de mescla, de soma, um fértil território amalgamado entre a fotografia e o cinema que estabelece seu lugar próprio. Lugar de caráter múltiplo, de muitas procedências e incontáveis destinos. ///

 

Claudia Tavares é artista visual e trabalha principalmente com fotografia e vídeo, em diálogo com desenhos. É professora de linguagens visuais, orientadora de projetos, criadora do canal Fotofilmes no YouTube e pesquisa sobre fotofilmes desde 2019.

 

 

Tags: , , ,