Ensaios

As mulheres caranguejeiras e o sertão de Guimarães Rosa pelas lentes de Maureen Bisilliat

Yara Schreiber Dines Publicado em: 23 de abril de 2018

Maureen Bisilliat, Boiada em Curvelo, da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

Debruçar-se sobre a obra da fotógrafa Maureen Bisilliat é sempre um desafio, pois se trata de um diálogo com um trabalho vigoroso, que gira em torno da alma dos retratados e do seu ambiente.

Nascida em 1931, na Inglaterra, Bisilliat é filha de um diplomata argentino, com ascendência calabresa, e de uma pintora inglesa. Sua infância itinerante a fez viver entre Inglaterra, Estados Unidos, Dinamarca, Colômbia, Argentina, Suíça e Brasil, o que marcou sua vida e sua personalidade.

A partir de 1955, estudou artes plásticas com André Lhote, pintor e escultor parisiense influenciado por Cézanne e Gauguin. Dois anos depois, frequentou a Liga de Estudantes de Arte, em Nova York, estudando com Morris Kantor. Dessas andanças, ficou seu fascínio expressionista pelo claro-escuro e pelos enquadramentos inesperados, que apresentam formas imperfeitas. A troca da pintura pela fotografia aconteceu no início da década de 1960, quando Bisilliat se deu conta de que o fotojonalismo a permitiria viajar e ter contato com diferentes povos e comunidades. Entre 1964 e 1972, ela integrou a famosa revista Realidade, da editora Abril.

A primeira vinda ao Brasil aconteceu em 1952, mas foi só em 1957 que ela mudou-se em definitivo para São Paulo. Bisilliat já declarou em entrevistas que “o Brasil foi uma procura de raízes, que eu não tive quando criança”. Nos ensaios fotográficos realizados aqui, a artista alia a seu olhar de estrangeira um respeito profundo por temas e personagens tipicamente nacionais: vaqueiros, sertanejos, mulheres caranguejeiras e grupos indígenas, por exemplo. Outro forte vínculo criado por Bisilliat foi com grandes obras e escritores brasileiros, uma forma de se aproximar do país por meio da literatura e verificar in loco características das almas descritas nos livros. Nesse sentido, realiza um exercício contínuo de aproximação e diálogo entre literatura e fotografia, o que ela chama de “equivalência fotográfica”.

Maureen Bisilliat, Recém-casados, da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

A João Guimarães Rosa e Caranguejeiras são dois ensaios que se destacam na produção inicial da fotógrafa. Ambos foram realizados na década de 1960 e já apresentam o método que se repetiria nos próximos projetos: aliar viagem, registro imagético, permanência na comunidade ao retorno e mergulho profundo na edição. Para ela, o início de um projeto é um “estado de graça”, pois significa o encontro com o desconhecido e requer do fotógrafo modéstia, já que novos e intensos laços são construídos a partir daí.

Após ler Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, Bisilliat decidiu percorrer os lugares distantes do sertão de Minas Gerais que inspiraram a paisagem do livro. Para recompor personagens da obra em linguagem fotográfica, ela contou com a ajuda do próprio escritor. Em depoimento em vídeo, a fotógrafa diz que começou “a conhecer os sertões por suas veredas. Iniciei minha busca seguindo de ônibus para Minas, parando primeiro em Cordisburgo, lugar de nascimento do autor, prosseguindo rumo ao norte e chegando em Andrequicé, povoado pequeno, pouso na rota das boiadas pelos sertões. Ao chegar, o sol se escondendo no horizonte, acerquei-me de um pequeno boteco e, após me apresentar como alguém em busca dos rastros de Guimarães, fui acolhida com uma boa notícia: ‘A moça está com sorte, pois não é que chegou agorinha mesmo o Manuelzão do Rosa, vindo direto da fazenda para uma celebração de crisma em Andrequicé!’”.

No mesmo vídeo, Rosa faz o seguinte comentário, quando do seu encontro com Bisilliat: “sendo da Irlanda, você vai compreender o cerrado…”. Ao que ela comenta: “tanto o sertanejo quanto o irlandês falam poeticamente. Para mim, não era um mundo estranho, de jeito nenhum, você vê, mãe da Irlanda, do oeste, pai da Calábria, mais chão que isso… dificílimo. O sertão é algo que eu reconheci muito profundamente, de outros tempos”.

No livro A João Guimarães Rosa (1969), editado a partir do ensaio de mesmo nome, a narrativa fotográfico-literária aparece nas citações que dialogam com as fotos e, eventualmente, nas legendas que também são excertos selecionados do romance. Bisilliat busca a “orquestração” entre fotografias e palavras, unindo melodicamente sons, silêncios, notas e vazios por meio das imagens.

Maureen Bisilliat, Retrato de Manuelzão, da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

No retrato de Manuelzão, que inspirou o personagem que nomeia a novela Manuelzão e Miguilim, conseguimos vislumbrar aspectos da altivez e secura do sertanejo presentes na obra de Rosa.  E como salienta o sociólogo Pierre Bourdieu, em seu livro A fotografia: uma arte intermediária (1979), a pose integra um sistema simbólico de representação, assim como a imagem que os indivíduos criam de si e da realidade a que pertencem. De acordo com Bourdieu, “nesta sociedade que exalta o sentimento de honra, da dignidade e da respeitabilidade, neste mundo fechado em que o indivíduo se sente em todo momento sem saída sob o olhar dos demais, importa dar aos outros a imagem mais honrável e digna de si mesmo: a pose afetada e rígida, na qual o ‘pronto, podem apontar para mim’ parece ser a expressão dessa intenção inconsciente e constitui o limite da imagem construída”.  Aparentemente, é o que Manuelzão transmite.

Maureen Bisilliat, Boiada em Curvelo, da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

Nas imagens dos vaqueiros, que registram a aridez do cerrado e a labuta desses trabalhadores do sertão, mostra-se também a densa relação homem-natureza no agreste, construindo um imaginário entre realidade e ficção. É interessante verificar que as fotos das boiadas foram realizadas no mesmo local, em torno de um arvoredo e, provavelmente, registradas de cima de um caminhão, ou de um automóvel.

Maureen Bisilliat, Gente em suas casas, da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

Já na foto de interior, do ambiente doméstico, destaca-se o registro do trabalho feminino em sua lida diária. Também encontramos a simplicidade e despojamento da moradia das “gentes” do interior das Gerais, inclusive percebendo o constrangimento do dono da casa com o ato fotográfico, que revela o que não quer expor.

Maureen Bisilliat, Cruzando rio a pé (próximo a Montes Claro), da série A João Guimarães Rosas, 1966. Acervo IMS.

Nesta série de Bisilliat, o enquadramento fotográfico ressalta o uso da contraluz, uma opção que destaca o claro-escuro, ilumina o interior das moradias e delineia a figura do corpo do vaqueiro em seus gestos e afazeres cotidianos. Com a produção do livro A João Guimarães Rosa, a fotógrafa recria com a própria linguagem a paisagem visual e humana traçada pelo texto do autor, mostrando a permanência das Minas Gerais interiorizada e pouco conhecida na época.

Maureen Bisilliat, Jovens e velhas pescando na lama, da série Caranguejeiras, 1968. Acervo IMS.

Em 1968, Bisilliat encontrava-se na Paraíba, a serviço da revista Realidade, quando foi levada para a aldeia de Livramento, a 20 quilômetros de João Pessoa, onde quase mil homens e mulheres viviam da caça ao caranguejo. A fotógrafa percebeu a oportunidade de um ensaio especial e entrou no mangue, enlameando-se até a cintura, para captar as imagens das mulheres caranguejeiras. Nas fotografias da série Caranguejeiras, Bisilliat registrou estas mulheres com dignidade e respeito, expondo este universo do trabalho com um olhar único.  A fotógrafa opta por um tratamento visual que propositalmente mescla as catadoras com a lama, transformando-as em uma imagem orgânica, ligando-as aos recursos que a natureza lhes oferece e dos quais elas dependem.

Maureen Bisilliat, Jovens e velhas pescando na lama, da série Caranguejeiras, 1968. Acervo IMS.

Maureen Bisilliat, Jovens e velhas pescando na lama, da série Caranguejeiras, 1968. Acervo IMS.

Quando se mira o conjunto do ensaio, infere-se o trabalho duro, a entrega e a persistência na caça do caranguejo. Mas vemos também a brincadeira, o riso e o lúdico. É muito interessante constatar que as mulheres tornam-se “outras” nesse momento –  outro corpo, outra forma – e que há espaço para a brincadeira no labor, quando o corpo adentra a natureza e mistura-se a ela, torneando-se e se tornando escultura. Bisilliat conseguiu captar nessas imagens as diversas faces das caranguejeiras, inclusive a sensualidade de seus corpos com as vestes coladas na pele, e conseguiu contrapor as noções de trabalho/ ludicidade, dureza/ brincadeira, seriedade/ riso e rigidez/ gozo.

Maureen Bisilliat, Jovens e velhas pescando na lama, da série Caranguejeiras, 1968. Acervo IMS.

Em 1984, o ensaio de Bisilliat foi finalmente publicado em livro, acompanhado pelo poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, com o qual possui uma afinidade ímpar. Vemos e lemos na obra de João Cabral: “Na paisagem do rio/ difícil é saber/ onde começa o rio;/ onde a lama/ começa do rio;/ onde a terra/ começa da lama;/ onde o homem,/ onde a pele/ começa da lama;/ onde começa o homem/ naquele homem.” Em suas equivalências fotográficas, Bisilliat busca a sinergia de escrever com a imagem e ver com a palavra.

Nestes dois ensaios é possível perceber o olhar diferenciado da fotógrafa na abordagem dos seus personagens. Enquanto no primeiro os corpos dos vaqueiros aparecem altivos, enrijecidos e valentes, no segundo, as mulheres surgem de forma lúdica, solta e prazerosa. Tanto que, apesar de existirem fotos de figuras masculinas no acervo de Caranguejeiras, estas nunca foram destacadas, sendo pouco exibidas.

Maureen Bisilliat, Jovens e velhas pescando na lama, da série Caranguejeiras, 1968. Acervo IMS.

Estes trabalhos evidenciam a capacidade da fotógrafa de realizar projetos consistentes e profundos, além de trazer à tona aspectos de realidades desconhecidas na época, características do fotojornalismo brasileiro nos anos 1960. Pode-se afirmar que os ensaios de Maureen Bisilliat revelam a “diferença” e a especificidade do outro e trazem indícios da cumplicidade entre fotógrafa e fotografado, além de conseguirem traduzir equivalências entre fotografia e literatura.///

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Leia mais sobre Maureen Bisilliat no site do IMS.

Yara Schreiber Dines é antropóloga e pós-doutora em Fotografia pela ECA-USP. Professora da Pós Graduação em Cinema, Fotografia e Vídeo da Universidade Anhembi-Morumbi e pesquisadora associada do Grupo de Arte & Fotografia ECA-USP e do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia – LISA/USP.

 

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