Revista ZUM 8

A.C. d’Ávila, passageiro da Luz

Pedro Afonso Vasquez Publicado em: 17 de junho de 2015

Em meio à decadência urbana da São Paulo dos anos 1980, o fotógrafo e cineasta A. C. D’ÁVILA registrou o dia a dia da Estação da Luz, construção que simboliza o esplendor da antiga economia cafeeira [matéria publicada na revista ZUM#8, abril/2015].

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A.C.d’Ávila (como ele preferia identificar-se) nasceu de um convite da Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Nas palavras do então presidente, o historiador Boris Kossoy, a comissão foi criada para “pesquisar, registrar e veicular, através do testemunho fotográfico, a civilização paulista em seus desdobramentos sociais, econômicos, políticos e culturais, de sorte que tal proposta se encaminhe para uma visão global da ocupação territorial do estado”.

D’Ávila começou a fotografar no início da década de 1970, quando ainda frequentava o curso de graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, inclinando-se de início para a documentação urbana. A partir da década de 1980, direcionou seus interesses para questões ecológicas, registrando diversas regiões brasileiras, como a Amazônia, a reserva da Jureia, o Pantanal mato-grossense e a Ilha do Cardoso. As incursões na região norte do país forneceriam o material para Fotógrafo viajante: Amazônia, sua tese de doutorado, de 1995. Percorreu também outros países da América do Sul, como Argentina, Chile, Peru e Bolívia, partindo então para o extremo meridional do planeta, o polo sul. Em 1986 e 1988, viajou a bordo do navio oceanográfico Prof. W. Besnard, da Universidade de São Paulo.

A. C. d’Ávila foi um dos primeiros fotógrafos brasileiros a obter os títulos de mestre e de doutor, e a desenvolver uma reflexão sistemática a respeito da natureza da fotografia. Lecionou na ECA entre 1982 e 1997, ano de sua morte, e ministrou cursos livres no Museu Lasar Segall no período em que o departamento de fotografia era dirigido por Clóvis Loureiro e Luiz Paulo Lima, que transformaram o museu em um importante polo de ensino e produção, pioneiro no uso criativo da fotografia pinhole. Embora tenha falecido muito jovem, com 42 anos incompletos, D’Ávila realizou sete exposições individuais e participou de mostras coletivas que ajudaram a abrir espaço para a fotografia brasileira no exterior. Sua primeira exposição individual, Estudos I, foi realizada na Galeria 167, em São Paulo, em 1976. E a ela se seguiram outras, como Estação da Luz (1981), no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo.

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D’Ávila fotografou a Estação da Luz em 1979 e 1980, quando ela ainda integrava a Rede Ferroviária Federal, cuja sigla, RFFSA, aparece em diversas imagens. Construída entre 1895 e 1901, a estação contou com projeto original do engenheiro ferroviário inglês Charles Henry Driver, executado por seu colega e compatriota James Ford. Em 1946, o edifício foi parcialmente destruído por um incêndio, provavelmente criminoso, e a reconstrução se estendeu até 1951. No final dos anos 1990, o prédio da estação foi restaurado e reformado pelos arquitetos Paulo e Pedro Mendes da Rocha, sendo entregue à cidade em 2004, ano do aniversário de 450 anos de sua fundação. A Estação da Luz foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1982.

O ensaio em torno da estação se deu antes que a região circundante se degradasse gravemente: entre o esplendor, portanto, do auge da exportação de café – a linha que passava pela estação ligava Jundiaí, ponto de escoamento de grãos, ao porto de Santos – e seu renascer como polo cultural e estação de transporte metropolitano.

A Estação da Luz já havia fascinado os fotógrafos desde sua construção. Marc Ferrez, que documentou ferrovias de norte a sul do país, realizou uma esplêndida vista da gare desde o nível dos trilhos, antes da inauguração. Hoje, com o movimento dos trens, a imagem seria impossível. Após a inauguração, Guilherme Gaensly, por muitos anos fotógrafo da São Paulo Tramway, Light and Power Company, registrou suas dependências internas, como o hall de entrada e o restaurante, além de vistas externas criativas, em que o prédio aparece entre a vegetação do Jardim da Luz. Como é possível ver nas imagens de Gaensly, o muro sobre o viaduto, fotografado por A. C. d’Ávila, já se encontrava ali desde os primeiros tempos, certamente com o propósito de proteger os trilhos da queda de objetos, assim como para impedir tentativas de suicídio.

O trabalho da Luz teve grande importância para o fotógrafo, a ponto de ter sido transformado em sua dissertação de mestrado, intitulada Anatomia da imagem fotográfica (1987). A tese de D’Ávila divide-se em duas partes: a primeira efetua um desdobramento sistemático de uma única fotografia em 78 pranchas – um esforço tenaz em uma época anterior aos programas digitais de tratamento de imagem, quando tudo tinha que ser feito com tesouras e estiletes. D’Ávila destacou uma imagem com um personagem por ele denominado “galã” – que prefiro chamar de “homem triste com relógio” – porque via nessa fotografia uma síntese das questões que lhe interessavam: “a relação do homem com o espaço arquitetônico, a aproximação de opostos criando tensões dentro do quadro, a preocupação constante com os assuntos em off, fora do rigoroso enquadramento”.

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Na segunda parte do mestrado, D’Ávila explicita as condições de realização de sua documentação e, sobretudo, seu método de trabalho. Ainda hoje, são raros os testemunhos detalhados dos fotógrafos acerca das condições de produção de seus trabalhos, não aquele pequeno texto conceitual ou factual de apresentação ou justificativa de um ensaio ou de uma exposição, mas o testemunho técnico, claro. É interessante descobrir, por exemplo, que A. C. d’Ávila se sentiu compelido a documentar a Estação da Luz quando se deparou, nos arquivos fotográficos históricos da Light, com uma fotografia “manchada, amarelada”, que “documentava, a partir de um ângulo lateral, a estação da Luz em fase de construção em meados de 1900”. Uma fotografia, ainda que de autor desconhecido e longe de seu estado ideal de conservação, teve força suficiente para estabelecer um diálogo silencioso entre um fotógrafo e seus predecessores, e detonar a fagulha criativa de um trabalho de longo fôlego.

A. C. d’Ávila cumpriu estritamente o programa de trabalho que havia predeterminado para Estação da Luz, passando das vistas gerais de contextualização, a partir de vários ângulos diferentes, para o interior da estação, onde privilegiou os usuários e os funcionários, tratando em última instância do aparato ferroviário – locomotivas e carros de passageiros –, sempre com a presença humana. Seu trabalho privilegia a dimensão humana, apesar de estabelecer um eficiente comentário visual acerca das particularidades arquitetônicas das imponentes instalações da estação, enfatizando a presença dos passageiros e a forma como usam os equipamentos típicos do ambiente ferroviário. O equilíbrio entre as imagens de conteúdo prioritariamente humano e aquelas mais gráficas e arquitetônicas forma a melhor parte de sua produção.

D’Ávila é um expoente da primeira geração de fotógrafos intelectuais do Brasil, daqueles dotados de sólida bagagem cultural, que ultrapassa os domínios da fotografia para abarcar outros campos do saber. Interessou-se por questões ecológicas e antropológicas e pelo cinema, como diretor de fotografia e cineasta, tendo dirigido, por exemplo, em parceria com Wilson Barros, o curta Maria da Luz (1981).

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Se podemos enxergar D’Ávila como um fotógrafo intelectual ou pensante, é pelo fato de que, nele, a reflexão e o planejamento precedem a ação. Ele não sai a campo esperando que a realidade o presenteie com cenas dignas de registro, numa prática comum na fotografia de rua, em que, a exemplo dos personagens de filmes de caubói, se costuma “atirar antes e perguntar depois”. Longe disso, o fotógrafo pensante já sai a campo com o trabalho planejado, sem com isso fechar a porta ao acaso e ao inesperado. Opera assim dentro da premissa delineada pela fotógrafa Lisette Model para Ralph Gibson: “De nada adianta sair à rua se você não souber de antemão o que pretende fazer”. A fotografia documental só transcende a condição de mero registro para adquirir conotações autorais quando um sistema ou método de trabalho próprio é aplicado ao mundo exterior.

Este ensaio gerou cerca de mil imagens, algumas delas memoráveis, como a foto do galã (ou do homem triste com relógio), a do passante diante do muro de tijolos (que foi capa do número de estreia dos Cadernos de Fotografia, publicados em 1980 pela Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas) e a da escada com um grupo de homens de terno à esquerda, de composição tão eficaz que pode ser considerada uma espécie de The Steerage (Terceira classe) brasileira: encontramos em ambas um brilhante comentário social, que é mais contundente na foto de Alfred Stieglitz em virtude da oposição da primeira e da terceira classe do navio, mas que é igualmente paradigmático em D’Ávila.

Diversas outras imagens merecem destaque, como as dos passageiros embarcando (solitários ou em grupo) nos trens; a do grupo subindo as escadas ladeadas por lampadários brancos de luz fria; algumas vistas em plongé (destacando o relógio ou elementos do telhado) ou, ao contrário, em contraplongé (enfatizando as estruturas metálicas ou as claraboias); a da família com o bebê e a mala; a do muro de ferro que bloqueia quase completamente a visão da estação.

Estação da Luz é um dos pontos altos da fotografia brasileira da segunda metade do século 20, um ensaio que conserva até hoje seu frescor e valor antológico. ///

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ZUM AGRADECE A SANTIAGO D’ÁVILA PELA CESSÃO DAS IMAGENS. TRATAMENTO DE IMAGENS: CARLOS KIPNIS E JOÃO LUIZ MUSA.

A.C.d’Ávila (1955-1997), fotógrafo still, fotógrafo de cinema e professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com a tese Fotógrafo viajante: Amazônia.

Pedro Afonso Vasquez é autor de 25 livros, dois deles sobre a relação da fotografia com o universo ferroviário: Nos trilhos do progresso: a ferrovia no Brasil imperial vista pela fotografia e Fotografia e ferrovia no Brasil da Primeira República – ambos publicados pela Metalivros.

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