Revista ZUM 4

O guardião da história

Dorrit Harazim & Li Zhensheng Publicado em: 11 de setembro de 2013

Como um fotógrafo chinês que trabalhava para imprensa oficial conseguiu documentar os dois lados dos anos do governo de Mao Tsé-tung. Escondidos no assoalho da casa onde morava, milhares de negativos escaparam do regime autoritário para se tornar um raro e inestimável registro de um dos episódios mais sombrios da história do século 20.

Auto retrato, Li em seu escritório no Diário de Heilongjiang, província de Heilongjiang, 6 de julho de 1966

Auto retrato, Li em seu escritório no Diário de Heilongjiang, província de Heilongjiang, 6 de julho de 1966

Li Zhensheng tinha pouco mais de 25 anos quando tomou uma decisão que sustentou por quase quarenta anos, às escuras. Agiu com método e paciência, temperou medo com esperança e a História do século 20 agradece. Se a palavra “fotografia” significa “escrever com luz”, ele iluminou de forma decisiva nossa compreensão do que foi a Revolução Cultural Proletária (1966-76), um dos períodos mais inflamados, insanos, complexos e catastróficos da história da China.

Foi em 1968 que Li começou a abrir uma fenda no assoalho do apartamento em que morava. Trabalhava à época como fotógrafo no jornal de Harbin, a capital da gélida província de Heilongjiang, no extremo noroeste do país.

Com cuidado para não despertar a desconfiança dos vizinhos, ele aproveitava as noites para aumentar a fenda com uma lixa caseira. Assim, de centímetro em centímetro, a fenda virou buraco. E foi naquele esconderijo cavado a mão que Li preservou o registro visual proibido  que fez dos chamados “10 anos de caos”. Ao todo escondeu de 3 a 5 mil negativos, que permaneceram intocados por duas décadas. Quando, por fim, começaram a emergir da clandestinidade no final dos anos 1980, seu autor já havia dobrado de idade.

Contudo, a dimensão plena, a monumentalidade e o valor histórico desse material tiveram de aguardar outras duas décadas até serem revelados. Foi somente em 2003 que o britânico Robert Pledge, c0-fundador da agência fotográfica Contact Press Images e guardião ocidental (além de acidental) do trabalho de Li, concluiu a edição de Soldado vermelho da imprensa, impactante livro sobre a vida e a obra do fotógrafo.

A partir daí muita coisa mudou para o chinês: uma grande mostra nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, uma temporada como professor visitante nas universidade de Harvard e de Princeton, uma exposição coletiva na galeria do Barbican de Londres em 2012. Outras mudanças, contudo, precisarão aguardar o seu tempo: apesar das grandes transformações ocorridas na China pós-maoísta, o livro permanece sem edição em mandarim. O passado que ele retrata ainda fere demais o presente.

Jovens pioneiros, Harbin, província de Heilongjiang, 8 de março de 1973

Jovens pioneiros, Harbin, província de Heilongjiang, 8 de março de 1973

Kang Wenjie, prodígio de 5 anos de idade. Harbin, provícia de Heilongjiang, 28 de abril de 1968

Kang Wenjie, prodígio de 5 anos de idade. Harbin, provícia de Heilongjiang, 28 de abril de 1968

 

O grande salto

Zhensheng é nome próprio de Li e tem significado alvissareiro. Algo como “sua fama tocará os quatro cantos do mundo”. Órfão de mãe aos três anos de idade, o menino nasceu em 1940 e cresceu com o pai cozinheiro, que o levava ao cinema quase todos os domingos. Metódico e disciplinado desde cedo, Li preenchia vários blocos com anotações sobre cada filme. Aprendeu os rudimentos de fotografia na adolescência e logo que pôde ingressou na Escola de Cinema de Changchun, bastante avançada para a época. Não tivesse sido atropelado pela realidade, teria se tornado cineasta, sua paixão primeira.

Naquele final da década de 1950, o líder supremo do Partido Comunista chinês Mao Tsé-tung , que governava a República Popular da China desde sua criação, em 1949, decidira virar o país do avesso. O Grande Salto para a Frente, decretado por Mao  para arrancar o país do atraso, exigiu da população “três anos de esforços e privações” em troca de “mil anos de felicidade”. Primeiro veio a coletivização maciça do campo, cumprida a contento. Mas a etapa seguinte, que prometia ao país uma arrancada urbana e modernização tecnológica, resultou numa das grandes devastações humanas da era moderna. Estima-se que entre 18 milhões e 45 milhões de chineses morreram de fome durante o Grande Salto.

Nesse panorama, querer fazer cinema como ganha-pão seria insano e Li preencheu de bom grado a vaga de repórter fotográfico no Diário de Heilongjiang, o mais importante da província, com tiragem de 270 mil exemplares. Aportou na redação em 1963, aos 23 anos de idade, na fase ainda embrionária da Revolução Cultural e de lá só partiu quase duas décadas depois , quarentão. Teve, assim, uma vivência dupla do experimento que se seguiu ao Grande Salto – a de cidadão comum e de fotógrafo encarregado de registrar a história oficial.

Apesar de  integrado à máquina de propaganda do Partido e do Estado, Li não pertencia  a nenhuma das três classes sociais de confiança do governo – não era militar nem operário nem camponês . Por isso, mal aportara no emprego, viu-se integrado ao Movimento de Educação Socialista que despachava jovens urbanos para áreas rurais. Foram dois anos e meio de “reeducação no campo”, com imersão diária na leitura do Pequeno Livro Vermelho do camarada Mao. Ao retornar a seu posto no Diário de Heilongjiang, em março de 1966, dois meses antes do início oficial da Revolução Cultural,  ele era um dos milhões de jovens chineses imbuídos do fervor de “servir o povo” e criar uma sociedade mais igualitária. Submeteu-se com disciplina a sessões de autocrítica perante colegas e teve seu diário e cartas de amor apreendidos como parte da higienização dos impulsos burgueses.

“No começo, todo mundo se empolgou, inclusive eu”, contaria depois  em depoimento , chamando atenção para a data das imagens de seu acervo que transmitem alegria e espontaneidade: são todas dos primeiríssimos tempos da Revolução.

Foi a época em que colegiais chineses se embrenhavam país adentro para levar educação ao povo e que estudantes de medicina percorriam as aldeias mais remotas para prover atendimento básico à população. Acreditavam ser a vanguarda de um movimento que se propunha a erradicar o passado “revisionista e decadente” do país. Foi a fase da efervescência social ainda ingênua, que duraria pouco.

A história está coalhada de líderes capazes de mobilizar massas e moldá-las como instrumento de poder. Mao Tsé-tung foi certeiro ao buscar o que precisava nos jovens –em qualquer parte do mundo, a fatia humana que tende a ser mais disponível, engajada e radical ao abraçar uma causa. E a mais cruel também, se necessário.

Funcionários do Diário de Heilongjiang acusa Luo Zicheng, chefe do grupo de trabalho designado pelo Comité Provincial do Partido, de seguir a linha capitalista. Seu chapéu anuncia seus crimes. Harbin, província de Heilongjiang, 25 de agosto de 1966

Funcionários do Diário de Heilongjiang acusa Luo Zicheng, chefe do grupo de trabalho designado pelo Comité Provincial do Partido, de seguir a linha capitalista. Seu chapéu anuncia seus crimes. Harbin, província de Heilongjiang, 25 de agosto de 1966

O governador Li Fanwu tem a cabeça raspada por jovens da Guada Vermelha. Harbin, província de Heilongjiag, 12 de sebembro de 1966

O governador Li Fanwu tem a cabeça raspada por jovens da Guarda Vermelha. Harbin, província de Heilongjiag, 12 de setembro de 1966

 

As primeiras dúvidas

No Diário de Heilongjiang as coisas funcionavam assim: para cada foto publicada, o autor ganhava o direito de usar 8 fotogramas como quisesse. Mas para chegar a ser publicada, a imagem precisava ser positiva – massas pantagruélicas, jovens extasiados, Guardas Vermelhos empunhando o livrinho vermelho, camponeses aplaudindo, humilhação pública de quem caiu em desgraça. Imagens que porventura fossem negativas, como execuções,  além de serem automaticamente descartadas e incineradas,  acarretavam críticas adicionais pelo desperdício de filme  – a cota  mensal  para cada fotógrafo era de 15 rolos de 35mm e 20 rolos de 120mm.

Li saía a campo munido de uma Rolleiflex com lente de 80mm e de uma Leica M3 com duas lentes, além da indispensável braçadeira de Guarda Vermelho que lhe garantia poder trabalhar sem ser importunado. Desenvolveu um truque para injetar fervor revolucionário  na imagem de massas caladas: treinava em casa, na frente do espelho, como melhor bradar “Viva o Presidente Mao” e repetia a cena perante a multidão reunida. Invariavelmente conseguia captar em foto alguém de punho erguido e boca aberta. Ao final da jornada, revelava o material de todos os colegas por ser o caçula da equipe Para dissipar a solidão das longas noitadas na câmara escura da redação, costumava cantar. Aprendeu a retocar e manipular fotos, inserindo retratos de Mao onde eles faltassem.

As primeiras dúvidas de Li nasceram em agosto de 1966, ao fotografar a fúria com que um grupo de jovens Guardas Vermelhos destruiu, literalmente com as mãos, a antiga catedral ortodoxa de Harbin. No dia seguinte, o ataque foi a um templo budista de Heilongjiang , com a humilhação pública dos monges. Li decidiu fazer o registro fotográfico do que viu com outro olhar. “Desde meus tempos de estudante de cinema, eu sabia que nada é mais expressivo que o rosto”, relembra.

A posição costumeira dos enxovalhados em exibição pública era uma só: de frente para as massas, costas e cabeça curvadas, o olhar no chão e uma pesada placa difamatória pendurada no pescoço. Não raro a penitência incluía portar um chapéu circense em forma de longo cone com inscrições ofensivas, para acentuar a degradação.

Naquele dia Li ordenou aos monges enfileirados num estrado que erguessem a cabeça e olhassem para a câmera. Captou, assim, a imagem do grupo em raro movimento individual, devolvendo-lhes identidade e alguma humanidade. Mas foi somente em 1968, ao acompanhar a execução de sete homens e uma mulher que ocorreu a ruptura decisiva. Seis dos condenados eram criminosos comuns. Dois, acusados de contrarrevolucionários. Após o ritual de condenação em praça pública, foram colocados no alto de caminhonetes, para exibição pela cidade, e levados até o cemitério local. Ali, de mãos atadas e obrigados a ficar de joelhos, foram executados de costas com tiros na cabeça. Li conta ter decidido fotografar de perto o rosto de cada um. Ficou atormentado durante meses com essas imagens. E não esquece as palavras pronunciadas por um dos acusados, ao ouvir a sentença de morte: “Este mundo é sombrio demais”. Passou a conversar com essas almas.

 

O fim da inocência

Deu início, a partir daí, ao laborioso trabalho de esconder fotos de sua autoria passíveis de crítica. Toda noite, secava primeiro os fotogramas considerados negativos para a Revolução e os cortava do rolo de filme – temia que colegas o denunciassem por esbanjar recursos públicos com fotos que não interessavam ao jornal. As imagens positivas permaneciam no varal de secagem. Os negativos “negativos” eram inseridos em minúsculos envelopes pardos e estocados num compartimento secreto de sua escrivaninha.

Sim, naquela fase da Revolução Cultural Li Zhensheng tinha não apenas uma escrivaninha no jornal, como  uma secretária e direito a um carimbo próprio. A fase  da militância ingênua havia se esgarçado e  o terror assumira a face do novo poder maoísta. A meta consistia em extirpar da vida chinesa todas as “forças do atraso” e desinfetar os escalões do Partido Comunista dos “inimigos da classe proletária” – dois conceitos suficientemente elásticos para servirem de acusação contra qualquer um e qualquer coisa. Neste processo de autofagia constante, no qual cada novo grupo que se formava procurava ser mais “vermelho” do que o outro, ia-se da ascensão à queda, e vice-versa, sem regras fixas. Essa violência corrosiva e endêmica, na qual excessos passaram a ser regra, tinha uma característica própria. Enquanto na União Soviética os expurgos e julgamentos stalinistas eram deliberadamente secretos, gerando o terror através do silêncio, na China as humilhações reservadas aos “maus elementos” sempre foram públicas. Não se destinavam a castigar desvios ou crimes, destinavam-se à propaganda. Foi a revolução através do espetáculo, como escreveu a jornalista Susie Linfield, em O brilho cruel – fotografia e violência política (2010).

Li Zhensheng documentou de forma magistral a dimensão cinematográfica dessa revolução espetaculosa. Mas também manteve o foco no indivíduo por trás das massas. Conseguiu fazer o retrato do ser humano quando ele é aniquilado pela vergonha, pelo opróbrio social. Diante do painel monumental por ele produzido, o material que se conhecia do período parece pedestre.

 

O esconderijo

Na primavera de 1968, Li começou a levar para casa os envelopes pardos que escondia na redação, por pressentir uma busca em seu local de trabalho. Preparara a mudança com paciência, abrindo uma fenda abaixo da única mesa que tinha em casa – um imóvel de um cômodo de 12 metros quadrados (sim, doze) em que morava com a mulher e o filho pequeno. Não tinha água corrente, luz elétrica ou calefação numa cidade cujas temperaturas médias no inverno vão de -17 a -38 graus (hoje, Harbin atrai turistas do mundo inteiro para seu concorrido Festival de Esculturas no Gelo e na Neve). Enquanto o marido serrava, a mulher vigiava a rua da janela.

Além dos envelopes contendo milhares de negativos, a fenda do tamanho de um livro também escondia três selos com a imagem da Maja Desnuda de Goya, e duas moedas com efígies de figuras do passado, banidas pela revolução.

Como ele mesmo previra, Li acabou encrencado no jornal em meio a  mais uma disputa pela primazia revolucionária. Acusado de “novo-burguês” e agente estrangeiro, passou pelo pânico de ter  a casa vasculhada –  a fenda com os negativos não foi descoberta –, antes de ser deslocado para um exílio de reeducação em remota área rural da fronteira com a União Soviética. Foram dois anos de trabalho braçal diurno, do final de 1968 a 1970,  destinado a substituir por valores socialistas as tendências elitistas de quem ali estava confinado. À noite, nova imersão compulsória no pensamento do Grande Timoneiro.

Li emergiu desse segundo desterro amadurecido. Apesar de novamente reabilitado e içado ao posto de diretor de fotografia do Diário de Heilongjiang, prosseguiu na obsessão de fazer o registro completo (positivo e negativo) da Revolução Cultural. Apenas não previu que ela ainda duraria seis longos anos – até a morte de Mao Tsé-tung, em 1976, com sequelas ainda não resolvidas. Continuou a fotografar com a intuição de que aquele material todo, algum dia, poderia ter utilidade. Sabia estar sendo testemunha de um momento único e ser preciso ir além do mero registro dos acontecimentos. Procurou, e conseguiu, compreender a realidade que fotografava.

 

Um super homem

Ninguém mais talhado do que esse cinéfilo e quase cineasta para captar a dimensão épica daquele período. Li viveu seus anos de formação em regiões vizinhas à União Soviética, daí a forte influência cultural russa em sua vida e obra. Dos mestres da literatura à arte gráfica do realismo socialista, passando pela rica filmografia vinda do país vizinho, tudo lhe era familiar. Nunca deixa de mencionar o impacto que lhe causou O Encouraçado Potemkin, de Sergei Einsestein, transparente em boa parte de sua fotografia panorâmica .

O próprio Li conta que fotografou a Revolução Cultural Proletária como se estivesse fazendo cinema. Por trabalhar com câmeras que não dispunham de zoom, ele se deslocava feito louco para captar uma mesma cena de perto, de longe , e de mais longe ainda, emulando o movimento de uma filmadora. “Se naquela época eu tivesse uma dessas (uma Sony Nex 7 digital com a qual fotografa hoje), acho que teria enlouquecido”, disse à BBC. Para se ter uma ideia do esforço físico que isso exigia basta olhar para duas fotos de plano e contra-plano tiradas da massa humana, durante uma homenagem fúnebre ao camarada Mao, no estádio de Harbin.

Causam alumbramento, também, os painéis produzidos por Li . Fotografou as cenas mais grandiosas de sua obra com carpintaria artesanal. Captava uma mesma cena em vários quadros sequenciais, da esquerda para a direita, perfazendo o movimento com a máquina fotográfica colada ao corpo. Sempre com o cuidado de não gastar muitos fotogramas. À noite, produzia contatos das imagens e sobrepunha os fotogramas na ordem em que haviam sido captados. Recortava-os com precisão para que as imagens se fundissem e os colava com fita adesiva. Formava, assim, a composição desejada, criando a ilusão de imagem contínua.

Como todo repórter-fotográfico, Li habituou-se a reservar um ou dois quadros de filme para um eventual flagrante jornalístico no trajeto de volta à redação. Como raras vezes aconteceu algo que merecesse registro, passou a utilizar essas chapas sobressalentes para retratar a si mesmo. São fotos notáveis pelo que revelam. Segundo Robert Pledge, esses autorretratos talvez sejam a forma encontrada pelo fotógrafo  para realizar sua libertação pessoal. Uma espécie de rota ao autoconhecimento .

O autor dos autorretratos os define como um filme que fez de si mesmo. “Neles, eu me senti ao mesmo tempo ator, diretor, roteirista e câmera”. Da série, a imagem que costuma causar mais impacto no Ocidente é a que o mostra com a camisa escancarada, revelando o peito em pose de Super Homem. O fotógrafo descarta a referência. “Na época eu nem sabia quem era o Super Homem. Só queria me retratar de forma diferente, estava cansado da minha identidade visual cotidiana”, esclarece.

 

A história em conta-gotas

Li mudou-se da província de Heilongjiang para a capital do país em 1982, com a Revolução Cultural Proletária sepultada, porém não digerida. Assumiu o cargo de professor de Fotografia do Departamento de Jornalismo da Universidade de Pequim  sem nada revelar do tesouro guardado. Foi somente em 1988, por ocasião de uma mostra coletiva intitulada “Deixe a História narrar o Futuro”, que decidiu mostrar pela primeira vez vinte imagens feitas em 1966 e 1967. Foi um espanto. Alguns colegas dos tempos de Harbin, presentes ao evento, ficaram estarrecidos. “Li, você registrou a história por inteiro, nós apenas registramos a metade”, comentou um deles.

Quis o destino que, naquele mesmo ano de 1988, Robert Pledge viajasse a Pequim para ser curador de três exposições na capital chinesa. Conheceu Li, estabeleceram uma relação de confiança e decidiram começar a trabalhar num livro que revelasse por inteiro a odisseia pessoal e profissional do fotógrafo. Seria publicado quando o clima político no país se tornasse mais propício.

Só que esse futuro se revelou por demais distante. Poucos meses antes, o exército havia operado a fuzilaria de milhões de jovens manifestantes reunidos no local mais reverenciado da China – o chamado Massacre da Praça da Paz Celestial. Foi quando Li Zhensheng decidiu que a história urgia. Chegara a hora de tirar os negativos da clandestinidade.

Aos poucos, fez chegar ao escritório nova-iorquino da Contact Press Images levas e mais levas do material estocado. Ao todo, somando-se as imagens “negativas” e “positivas”, foram mais de 30 mil negativos, metade do que o autor já depurara ao longo dos anos com a ajuda da mulher e da filha.

Soldado vermelho da imprensa acabou chegando às livrarias americanas e europeias em 2003. O título é a tradução literal da inscrição na braçadeira de honra de Guarda Vermelho que conserva até hoje. Desde então, o nome Li Zhensheng ocupa o lugar que merece na história da fotografia. E a História lhe deve o devido reconhecimento como um de seus guardiões.

Hoje, casado com a mesma mulher com quem atravessou toda a Revolução Cultural , Li usa somente equipamento digital para fazer fotos e filmar coisas de que gosta – amigos, lugares, família. “Nada sério”, diz.  Participa de festivais de Fotografia, dá palestras em universidades, trabalha em dois livros e opera um blog sobre fotografia que tem 20 mil seguidores. Considera-se um patriota. Não é castigado nem perseguido em seu país como o artista e ativista político Ai Weiwei, embora uma dezena de fotos  de sua autoria ilustrem o premiado  documentário Ai Weiwei: sem Perdão, de Alison Klayman, sobre a vida e obra do conterrâneo preso por 81 dias em 2011. Ambos compartilham da mesma esperança de abertura democrática para a China.

Li Zhensheng não tem mais medo de mostrar suas obras. “São imagens factuais, não são ficção. Já estou com mais de 70 anos e tenho pouco a temer. Alguns me acusam de lavar a roupa suja chinesa no exterior. Não se trata disso. Mostro o registro histórico de um erro produzido pelo homem contra a humanidade”. A seu ver, todos foram vítimas da Revolução Cultural – os achincalhados e mortos e os que causaram esses horrores a seus camaradas.///

Auto-retrato. Harbin, província de Heilongjiang, 17 de julho de 1967

Auto-retrato. Harbin, província de Heilongjiang, 17 de julho de 1967

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© Li Zhensheng/Contact Press

 

Li Zhensheng nasceu na China en 1940. Graduou-se na Escola de Cinema de Changchun e trabalhou como repórter fotográfico no Diário de Heilohgjiang. Foi professor de fotografia na Universidade de Pequim e professor visitante em Harvard e Princeton. Hoje trabalha como escritor e pesquisador.

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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