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São Paulo, máquina entrópica: resenha das exposições de Felipe Russo e Tuca Vieira

Francesco Perrotta-Bosch Publicado em: 3 de agosto de 2016

Complementaridades e antagonismos: oscilamos entre esses polos ao ver as duas mostras fotográficas em cartaz na Casa da Imagem até o dia 16 de outubro. Garagem automática, de Felipe Russo, e Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores, de Tuca Vieira, deixam São Paulo exposta. O lugar é sugestivo para tal desvelamento: um espaço cultural público, municipal, situado no coração da cidade e sem bilheteria. A franca entrada contrasta com o acesso proibido aos espaços revelados nas garagens da primeira exposição e com a improbabilidade de se percorrer toda a extensão da metrópole retratada na segunda. Ambas exibem o que não está necessariamente ao alcance dos nossos olhos. Como uma sugestão implícita, fica a cargo do visitante especular um diálogo entre as duas exposições que coabitam a Casa da Imagem.

É fácil apontar antíteses. Felipe Russo opera na concentração, na clausura, no escuro. Por sua vez, Tuca Vieira explora a irradiação, a abertura, a luz. As garagens automáticas induzem Felipe a trabalhar nas suas particularidades, explorando o que há nelas de serial. Às lentes de Tuca, a capital paulistana alterna entre o genérico e o heterogêneo.

Deixando de lado o raciocínio dual, a complementaridade primeira das exposições está em um protagonista (quase) ausente: os carros. Nas fotografias, a presença dos veículos é, em grande medida, omitida: em muitas imagens, eles nem aparecem; ocasionalmente, estão quase escondidos; em outras tantas, surgem secundariamente. Mas a área destinada aos carros está lá e é invariavelmente abundante. Predominam tanto nos ambientes internos de Felipe como nas muitas e tão distintas vias apresentadas por Tuca. É patente a primazia concedida à indústria automobilística nas políticas federais (dos anos 50 até os dias atuais) bem como nas municipais, até muito recentemente – foi “anteontem” que nos demos conta do quão vilanescos são os carros para as cidades brasileiras. O Atlas fotográfico nos fornece também uma bela variedade de indícios pontuais do automóvel: um monumental ferro velho, grandes colunas em vias de se tornar viadutos a cortar uma área com resquícios de mata nativa, uma kombi estacionada na via exclusiva para pedestres no triângulo histórico de São Paulo.

Nesta mesma área central da cidade, Felipe Russo alerta-nos à existência de 34 prédios feitos para empilhar centenas de veículos. “É importante para pensarmos até que ponto a questão do carro chegou e o que isso representa para a economia brasileira”, declara o fotógrafo. “Construímos edifícios de trinta andares para guardar os veículos como em prateleiras.” Alguns paulistanos têm conhecimento desses estacionamentos verticais, outros tantos passam pela frente sem dar atenção, mas quase ninguém sabe como são por dentro: universos fechados e obscuros, em que o usuário deixa o carro na entrada, sem poder visualizar o caminho até a posição onde será guardado. O artista os define como “máquinas que guardam máquinas”.

Numa dedução ao acaso, alguém poderia dizer que essas garagens-máquinas são mambembes, cheias de gatilhos e jeitinhos. Ledo engano: tais máquinas são o triunfo da técnica, a supremacia do pensamento racional. Sistemas automatizados operando com controle total do funcionamento. Roldanas, cabeamentos metálicos, pedais, polias, engrenagens, motores, contrapesos, painéis de geradores, plataformas capazes de deslocar-se carregando toneladas, todos esses elementos interdependentes conformam um conjunto uno com a função de armazenar carros.

Com uma única exceção, quase todas as garagens automáticas paulistanas foram feitas nos anos 60 e 70. Nesta mesma época, uma geração de arquitetos capitaneados pelo crítico inglês Reyner Banham questionava a estaticidade da arquitetura – afinal, a “máquina de morar” de Le Corbusier era estética e estática. Buscavam incorporar em seus edifícios a capacidade de movimento das máquinas. Propunham a mobilidade das estruturas com total autonomia do engenho, isto é, todas as partes do edifício poderiam ser rearranjadas e reconfiguradas sem que fosse necessária uma ação humana direta para operá-lo. Com essas diretrizes, Cedric Price projetou o Fun Palace e o Archigram concebeu as Walking Cities, e na mesma chave trabalharam o Superstudio e o Archizoom Associati com sua No-Stop City.

Deste último, a imagem de um sem-fim de vagas de carro remete às sobreposições de andares de nossas garagens automáticas, herdeiras também dessa fantasiosa busca banhaniana pela associação intrínseca entre arquitetura e tecnologia. Os Fun Palaces daqui eram feitos para os automóveis. A publicidade da época insistia que nenhum homem encostaria no carro para estacioná-lo; era a outra grande máquina que faria isso. Operadores acompanhavam o funcionamento geral, mas não havia manobrista. Desse modo, as garagens automáticas operaram por alguns anos. Mas essa tecnologia demandava certo tempo de operação – cerca de 5 minutos de espera para cada carro – e a impaciência geral trouxe de volta os manobristas para agilizar o processo.

Se Felipe Russo expõe um sistema mecânico serialmente edificado no centro de São Paulo, Tuca Vieira precisou estabelecer um sistema para responder à pergunta que se propôs: “Como fotografar São Paulo?”. Ele mesmo rapidamente indica a questão subsequente: “O que é São Paulo?”. O desafio de retratar (e mesmo conhecer) a cidade como um todo é descomunal. O fotógrafo se impôs uma provocação que diz respeito a uma mancha urbana vasta, disforme, heterogênea. Logo, foi preciso implantar uma metodologia a fim de se apreender e representar o todo de modo equânime. Um Guia Quatro Rodas, no qual a região metropolitana está seccionada em quadrantes de mesma dimensão, é o alicerce fundamental para o sistema criado por Tuca para representar São Paulo – para cumprir o desafio de retratar o imensurável para um único indivíduo, para possibilitar algo que poderia ser megalomaníaco, mas que acaba por ser candidamente pragmático. Assim, entre 2014 e 2016, o fotógrafo foi nos 203 quadrantes e fez as 203 fotografias que vemos na Casa da Imagem. Com um tripé e uma câmera artesanal de grande formato, Tuca se descreve fazendo “uma coisa meio século 19: eu me sentia como um pintor de cavalete ao ar livre.”

Dessa prática impressionista resultam imagens estranhamente familiares. Afinal, ali está a cidade que habitamos. Contudo, somente cerca de uma dezena de fotos retratam lugares inseridos no dia a dia de um paulistano comum. Um número maior se conhece somente de passagem. E uma brutal maioria não se sabe onde é, e nossa “geolocalização mental” depende do quadrante no mapa do Guia Quatro Rodas, das coordenadas geográficas e do respectivo nome do local – o qual tende a causar a mesma estranheza familiar que a foto. Nesses pontos paulistanos que não sabemos exatamente onde ficam, reconhecemo-nos no supermercado Pão de Açúcar, na agência bancária da Caixa Econômica, nas Casas Pernambucanas, no posto de gasolina BR, na esquina ocupada por uma padaria de bairro com um letreiro de mau gosto. Vivemos numa cidade capitalista genérica.

Tuca Vieira ensaia uma organização tipológica dentre o que encontrou: conjuntos habitacionais carimbando o território, construções industriais, arranha-céus, resquícios de mata nas bordas e monótonos bairros residenciais com ruas repletas de casas e sobrados (em sua maioria autoconstruídos) cujas fachadas são ocupadas por portões de garagem. A conclusão de Tuca, no entanto, não poderia ser mais honesta: “Meu trabalho convida à ideia científica de amostragem. Só que a própria amostra não funciona.” Prova disso é o Templo de Salomão no Brás, a capelinha neocolonial de 1904 na ilha (que não é ilha) do Bororé, a cópia do Davi de Michelangelo no meio de um estacionamento no Tatuapé (também replicada na fachada de um shopping), a descoberta da fachada de uma academia ornada com o incrível Hulk.

Todas essas construções contêm as marcas da passagem do tempo. Fachadas desenhadas pelo escorrimento da água da chuva, camadas de tinta descascada, manchas de umidade, ferrugem surgindo do metal e deixando seus rastros na alvenaria. A deterioração inevitável do estrutural e do cosmético. A cidade gosta de narrar sua existência como um perpétuo processo de construções e reconstruções, mas as fotos demonstram que o que prevalece é a decomposição. São Paulo está em avançado estágio de entropia.

Em Garagem automática, essa constante degradação da energia para o funcionamento é tão sutil quanto um tapa na cara. O sistema é tão automatizado e independente da presença humana que acumula-se ali a fumaça, a fuligem, a sujeira e a poluição de décadas. As peças fundamentais recebem manutenção preventiva das empresas de elevadores, mas esses edifícios não precisam ser lavados. A entropia está praticamente livre para atuar, chamuscando o que era propagandeado como fantástico na arquitetura-máquina de meados do século 20.

“Meu trabalho foi tentar extrair da superfície desses prédios o que o tempo impregnou”, relata Felipe Russo. “Não era a sobreposição de uma criação minha, mas um esforço de dar transparência.” Transparência ao que é crescente e continuamente mais obscuro. Peças, estruturas, ambientes tornam-se indiferenciados no paulatino e irreversível negror da matéria. Felipe complementa: “Tento trazer para as imagens um pouco da experiência do local”. Porém, qual é a experiência quando a dimensão humana é vetada? A dimensão humana não tem espaço naquele projeto, nem passou a ter em qualquer momento ao longo das cinco décadas de existência das garagens automáticas. A experiência do lugar é para as máquinas que hoje vemos submetidas às inevitáveis forças da entropia. A experiência do lugar é para os carros.

É interessante que o termo “experiência” retorne na fala de Tuca Vieira. Nas imagens do Atlas fotográfico, não predominam as fachadas em elevação, com ângulos ajustadamente retos, preponderantes na fotografia de arquitetura brasileira. Tuca explora as esquinas, as diagonais, como se apreendesse as construções em um instante da caminhada. Em suas palavras, “a foto é um índice da experiência” em cada quadrante paulistano. Mas ressalta: “É uma experiência mais desconfortável que perigosa. É uma cidade feia. É um desconforto visual”. Este incômodo deve-se por uma razão muito semelhante ao das garagens automáticas: praticamente inexiste a dimensão humana nesse pseudoprojeto paulistano de cidade. Se no sistema instituído por Tuca para fazer o Atlas era preciso retratar a cidade sempre a partir do espaço público – da rua –, evidencia-se que nele faltam espaços feitos para que possamos ter uma experiência, algo verdadeiramente relacionado ao viver humano.

Sob essa lógica, a entropia serve para percebermos que as duas exposições estão tratando sobre um assunto bastante semelhante. As garagens automáticas foram uma maquete, um modelo de cidade. Quis-se fazer de São Paulo uma “máquina que guarda máquinas”. Deu muito errado.///

 

Francesco Perrotta-Bosch é arquiteto e ensaísta, mestrando pela FAU-USP. Foi vencedor do 2º prêmio serrote de ensaísmo, em 2013, quando escreveu sobre as relações entre o prédio do Masp, Lina Bo Bardi e John Cage. Seus textos podem ser lidos no blog acercaacerca.com.br.

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