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Complicar em vez de simplificar: entrevista com o artista Oliver Chanarin

Paula Sacchetta Publicado em: 18 de junho de 2016

Os artistas Adam Broomberg e Oliver Chanarin trabalham juntos há pelo menos vinte anos. Sul-africano radicado em Londres, Chanarin, que veio para o Fórum Latino-Americano de Fotografia, conta – nesta que é a terceira entrevista da ZUM na cobertura do evento – o que faz para subverter a fotografia convencional e usá-la para realizar mudanças concretas na realidade, ou, pelo menos, para tentar gerar reflexão acerca do próprio ato fotográfico.

 

Broomberg & Chanarin, "Pessoas em apuros rindo e sendo empurradas para o chão", 2011

Broomberg & Chanarin, “Pessoas em apuros rindo e sendo empurradas para o chão”, 2011. Cortesia dos artistas e Lissson Gallery de Londres.

Paula Sacchetta: Sendo estrangeiro no continente, por que você acha que foi convidado para este Fórum Latino-Americano?

Oliver Chanarin: É uma boa pergunta. Estamos falando de geografia, de perspectiva e de olhar. Um olhar entre a América Latina e outros lugares e sua relação com o mundo. Eu sou sul-africano e moro em Londres. Tenho muita consciência dessa perspectiva complexa que é olhar para a África a partir da Europa, em um contexto pós-colonial. Isto é, entendo a complexidade que há na questão do ponto de vista em relação ao entorno. Na fotografia, é tudo sempre sobre perspectiva, sobre ser testemunha. Fotografar é pensar no seu papel como testemunha, é pensar não apenas sobre o objeto para o qual você está olhando, mas de que posição você está olhando para ele. Fotografia é menos sobre o objeto e muito mais sobre o fotógrafo. Boa parte do meu trabalho com Broomberg é preocupada e ciente desse olhar para uma outra cultura a partir da perspectiva do estranho, do estrangeiro, de como muitas vezes vemos o outro como exótico. A fotografia sempre foi muito curiosa em relação ao outro – o sofrimento do outro, a vida e a morte do outro. E sempre teve uma espécie de extremo senso de alteridade. Assim, na minha opinião, faz todo sentido que se queira convidar para um festival sobre fotografia latino-americana alguém que venha trazer uma perspectiva de fora, uma perspectiva do outsider.

Broomberg & Chanarin, "Pessoas em apuros rindo e sendo empurradas para o chão", 2011

Broomberg & Chanarin, “Pessoas em apuros rindo e sendo empurradas para o chão”, 2011. Fotolivro publicado pela Mack.

E o que você tem a contribuir com esse olhar de fora?

Não sei o que eu poderia dizer especificamente sobre a fotografia latino-americana, mas sei o que significa estar na periferia e o valor disso, porque existe um valor imenso em ser periférico. De certa forma, Adam e eu, na nossa prática, nos tornamos um pouco especialistas em criticar a vida de outras pessoas. Por exemplo, fomos convidados pela Irlanda do Norte a fazer um trabalho sobre um arquivo de lá que foi produzido durante os conflitos do país. E a pergunta que fizemos a nós mesmos na ocasião foi exatamente a mesma que você me faz agora: o que temos a dizer disso, que perspectiva podemos ter sobre isso? Se fosse um arquivo na África do Sul seria mais simples, eu teria uma relação com o material. Como um outsider, muitas vezes é difícil penetrar de verdade no assunto. Produzimos então um trabalho que foi uma desconstrução do arquivo, e que chamamos de People in Trouble Laughing Pushed to the Ground [Pessoas em apuros rindo e sendo empurradas para o chão]. O que fizemos, de certa forma, foi descartar o material, descartar a história completamente e focar no arquivo em si, em sua estrutura. Assim, colocamos em questão como aquela história criou uma memória particular daquele passado – ou seja, acabou se tornando um trabalho mais geral sobre memória. Acho que o fato de sermos de fora e de não termos uma conexão emocional com o material nos permitiu ter uma perspectiva única. Talvez por isso eu esteja aqui, para oferecer uma perspectiva única sobre uma região que é muito complexa. Às vezes, suas limitações são sua força. E nesse caso, minha limitação de ser o outro foi o que me trouxe aqui.

Broomberg & Chanarin, da série "Fotografar os detalhes de um cavalo escuro com pouca luz", 2012. Cortesia dos artistas e Lissson Gallery de Londres.

Broomberg & Chanarin, da série “Fotografar os detalhes de um cavalo escuro com pouca luz”, 2012. Cortesia dos artistas e Lissson Gallery de Londres.

E fóruns como este, onde se discute fotografia, são importantes?

Eu não ligo para a fotografia em si. Estou interessado no mundo, nas pessoas, na política, na materialidade. De modo que um fórum, na verdade, pode parecer ultrapassado. Penso que devemos fazer fóruns sobre natureza, sobre corrupção, sobre assuntos que realmente importam. Não acho que a fotografia é o tema mais importante para juntar um grupo para conversar a respeito [risos]. Estou muito feliz de estar aqui e tenho certeza que coisas muito boas sairão daqui, sobretudo por conta dos intercâmbios e conexões. Meus avós saíram da Alemanha e do Leste Europeu durante o Holocausto. Meus pais nasceram na África do Sul. Eu fiz meu primeiro trabalho na Itália e moro em Londres. Eu sou produto do mundo, da imigração, das fronteiras fluidas. E eu acho que um fórum de fotografia é isso, é a celebração de que somos parte de um universo maior, de que somos parte do mundo.

O que quero é fazer arte. Não penso na fotografia como um assunto em si, como uma matéria. É uma ferramenta, tem uma história, e como fotógrafo é importante entender essa história e ser crítico em relação a ela. Porque a história nunca é neutra. A tecnologia da fotografia, seja em filme, digital ou o que for, é ideológica e construída com base na ideologia do dia ou nos preconceitos do dia. Nós fizemos um trabalho sobre a Kodak, as questões de raça e a história da fotografia em cor, por exemplo.

Em uma entrevista sobre esse trabalho que você mencionou, To Photograph the Details of a Dark Horse in Low Light [Fotografar os detalhes de um cavalo escuro com pouca luz, sobre os cartões Shirley, da Kodak], Broomberg disse ao jornal The Guardian: “Se eu tiro uma fotografia de um tapete, isso é um documento político”. Para você, a fotografia é sempre política?

De certa forma, a fotografia é sempre política. Eu não acho que todo trabalho precisa necessariamente gritar que é político ou deixar isso claro, mas se você fotografa uma flor, isso é um statement político. Necessariamente. Você escolheu fotografar a flor e está fazendo isso por alguma razão.

E você acha que a fotografia pode mudar as coisas que estão erradas no mundo?

Sim, definitivamente acho que a fotografia muda as coisas no mundo. Eu não faria o que faço se não acreditasse que ela tem um efeito, um impacto. Mas esse efeito pode ser bem sutil. Quando você faz um trabalho, ele se torna uma conversa com o espectador. Pode afetar poucas pessoas, mas aos poucos vai sendo construído com a crítica. No começo de nossas carreiras, Adam e eu ficávamos muito ansiosos para que nosso trabalho tivesse um efeito muito rápido e direto. E mais, ele deveria ser sobre algo e esse tema deveria, por sua vez, estar muito claro. Então a nossa fotografia precisava articular determinada preocupação com a qual nós estávamos tentando lidar. Conforme fui ficando mais velho, a ambiguidade passou a me interessar, e fui buscando fazer algo que mais complica do que simplifica. No momento em que você passa a fazer isso, novas respostas começam a surgir. A possibilidade de uma mudança real torna-se algo muito diferente.

Um trabalho como The Day Nobody Died [O dia em que ninguém morreu], que fizemos no Afeganistão, não vai parar a Guerra do Iraque, mas vai fazer, pelo menos, os jornalistas pensarem um pouco no tipo de imagens que estão produzindo. E o que eles fazem muda o mundo. Eu acho que nosso trabalho tem um impacto, sim, mas é um processo mais lento. Vejo esta nossa conversa como parte de uma mudança e de uma conversa maior. Fotografias não existem enquanto estão numa galeria ou num livro, isoladas; existem como parte de uma conversação, de uma coisa maior.

[vimeo width=”640″ height=”480″]https://vimeo.com/20196426[/vimeo]

Por que vocês decidiram fotografar a guerra como fizeram nesse trabalho? Sei que foram criticados por isso…

Ele foi interpretado como uma crítica ao fotojornalismo. Mas isso está errado. Tenho muita admiração pelos fotojornalistas, eles se colocam em perigo, fotografam temas que precisam ser vistos e são muito bons em mostrar coisas que são invisíveis para outras pessoas. E também acredito na fotografia como um instrumento de mudança social. Esse trabalho não é contra o fotojornalismo; o que ele faz, na verdade, é levantar perguntas. O que as pessoas que olham para fotos de guerra esperam ver? O que seria violento o suficiente, bem composto o suficiente ou bem iluminado o suficiente para realmente transmitir o que está acontecendo nesse lugar que não temos acesso? É mais para se pensar na economia pela qual essa foto está operando, para reconhecer que a fotografia é uma moeda que vai seguir viagem pelo mundo e que o que você está vendendo no fim é o sofrimento humano, esse é o produto. A comunidade de fotojornalistas ficou chateada com nosso trabalho, mas eu acho que na verdade ele foi mal interpretado.

Broomberg & Chanarin, "O dia em que ninguém morreu", 2008

Broomberg & Chanarin, “O dia em que ninguém morreu”, 2008. Cortesia dos artistas e Lissson Gallery de Londres.

E como vocês decidiram que representariam aquela guerra dessa forma?

No começo de nossa carreira, nós dois trabalhamos de uma forma mais tradicional e com assuntos considerados exóticos, mas familiares ao fotojornalismo. Em determinada ocasião, fomos para Israel e conhecemos Yasser Arafat, o então líder da OLP (Organização pela Libertação Palestina). Fotografamos ele e seus companheiros quando estava refém e escondido, porque se saísse seria morto. Já na volta, passando pelo aeroporto de Tel Aviv, as autoridades israelenses pegaram nosso filme e passaram umas 30 ou 40 vezes pelo raio-x. Eles queriam estragar o filme, sabiam o que estavam fazendo. Quando voltamos, revelamos o filme e vimos uma mancha verde gigante que atravessava a imagem do Arafat. Inicialmente, pensamos que a foto estava estragada, talvez por ainda estarmos presos a uma ideia tradicional de imagem, aquela que tem a autoria do fotógrafo. Um tempo se passou e começamos a celebrar aquela marca que estava na imagem: as forças de defesa israelenses tinham tentado destruir a imagem, mas, no fim, acabaram se tornando também autoras dela. Isso nos pareceu uma abordagem nova para se pensar a fotografia, inclusive a própria materialidade dela, que é resultado da luz em um pedaço de plástico com elementos químicos. O fato abriu nossos olhos para o jeito de pensar o processo de produção da imagem para além da moldura. Na verdade, o que acontece do lado de fora dela pode ser mais interessante.

Quando tivemos então a chance de ir para o Afeganistão e ficar na linha de frente com os soldados, quisemos fazer algo diferente. Para ir, tivemos de dizer que éramos jornalistas, talvez porque eles pensem que jornalistas podem ser controlados e artistas são pessoas que operam fora das regras. Lá, eles queriam pautar nossas fotos, praticamente apontavam a câmera para os objetos que deveriam ser fotografados. Queríamos encontrar um jeito de subverter a imagem naquele contexto, naquele teatro da guerra, e não nos tornarmos marionetes deles. Nos recusamos então a sair para fotografar e fizemos fotogramas que eram exposições em um papel fotográfico, muito abstratos. São vestígios que sugerem a violência, mas não a mostram. Eles forçam o espectador, eu espero, a pensar sobre o que poderia estar naquela imagem, mas que ele não está vendo. Eu acho isso interessante porque envolve o espectador em um diálogo maior em vez de tratá-lo como mero receptor passivo da imagem. É uma conversa ativa.///

 

Paula Sacchetta é jornalista e documentarista. Escrevia aos domingos sobre fotografia para o caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo. Atualmente trabalha com documentários na Mira Filmes.
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