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Prostitutas, pescadores e cães: o jogo da espera pelas lentes do fotógrafo catalão Txema Salvans

Publicado em: 6 de agosto de 2019

Foto da série O Jogo da espera 3, de Txema Salvans.

O que as pessoas fazem no tempo livre, especialmente na região espanhola do Mediterrâneo? Por mais de 20 anos, este tem sido o principal tema de interesse do fotógrafo catalão Txema Salvans: “como fotógrafo, entendi que precisava focar meu ponto de vista, caso contrário poderia me dispersar. O tema ‘lazer’ me permitia ser fotógrafo todos os dias, não precisava de longas viagens ou situações anômalas para poder trabalhar”.

Entre os temas explorados por Salvans, estão a prostituição às margens das rodovias que cortam a Espanha (no livro O Jogo da espera 1); pescadores tentando fisgar um peixe nos lugares mais insólitos e improváveis nas mesmas estradas do livro anterior (em O Jogo da espera 2); famílias espanholas em férias (em Meu Reino); e cachorros acorrentados em propriedades (em O Jogo da espera 3).

Salvans conversou com a ZUM sobre as motivações que o levaram a fotografar estes temas, aparentemente díspares, mas que, segundo ele, falam sobre “o Mediterrâneo, a Espanha ou simplesmente a condição humana”.

 

Foto do livro O Jogo da espera 1, 2013, de Txema Salvans. Editora RM.

O que as pessoas fazem no seu tempo livre. Parece um tema bastante amplo para uma pesquisa fotográfica. Como essa ideia surgiu?

Txema Salvans: Como todo fotógrafo, tento encontrar minha própria voz. E, provavelmente por ter estudado ciências na universidade (fiz Biologia), me sinto à vontade falando sobre coisas que posso entender. É por isso que faço fotos sobre minha própria cultura, pessoas e paisagens. Eu tenho que ter uma conexão física com as paisagens e uma conexão emocional com as pessoas. Fazer parte desta realidade me ajuda a ser mais crítico e a aprofundar a cultura espanhola. Por esse motivo, nos últimos 20 anos concentrei-me em um grande projeto: fazer fotos ao longo da costa mediterrânea espanhola. Mais precisamente sobre como as pessoas gastam seu tempo livre.

Como fotógrafo, entendi que precisava focar meu ponto de vista, caso contrário poderia me dispersar. O tema “lazer” me permitia ser fotógrafo todos os dias, não precisava de longas viagens ou situações anômalas para poder trabalhar. Por fim, tornei-me um “super especialista” em um assunto muito específico e, por essa razão, acredito que meu trabalho transcende a fotografia para se tornar um documento à disposição de historiadores, etnólogos, arquitetos ou jornalistas. Pessoas que queiram ou precisem falar sobre o Mediterrâneo, a Espanha ou simplesmente a condição humana.

 

No livro O jogo da espera, sobre a vida de prostitutas em beiras de estrada no interior da Espanha, sua abordagem do tema foge do fotojornalismo mais tradicional ao dar mais atenção ao espaço ao redor da figura humana, chegando mais próximo da fotografia de paisagem. Lidar com essas noções pré-concebidas de gêneros fotográficos é algo que lhe interessa? 

TS: Na história da fotografia, podemos encontrar alguns temas recorrentes. E a prostituição é sem dúvida um deles. Foi fotografado de infinitas maneiras, então tive que encontrar meu próprio jeito de fazer, sabendo que o resultado também me posicionaria em relação ao assunto. Decidi trabalhar todo o projeto com base em três “princípios”, com a ideia de proteger a identidade delas e mostrar o “assunto” como mulher e não com a marca de prostituta.

Primeiro, a distância. Resolvi fazer as fotos longe do assunto, para assim proteger a identidade da mulher (muito importante) e mudar meu projeto de uma história do retrato para uma história de paisagem. Com esta decisão, concentro-me no contexto da prostituição e não nas mulheres. Um homem ou uma mulher que venha a exercer a prostituição deveria poder controlar de forma absoluta todo o contexto. O drama da prostituição não está no fato de se decidir ser prostituta, mas sim no de não poder exercer o controle do contexto. Quando falo de contexto, me refiro à maneira e à forma, o tempo e o espaço em que uma pessoa exerce a prostituição.

Em segundo lugar, a luz. A maioria das imagens foi feita com a pior luz possível para uma imagem de paisagem. A distância e a luz tornam a imagem mundana e desoladora, removendo os elementos sexuais da imagem. E também a luz explicita que esta atividade está ocorrendo às claras, para todo mundo ver. Nada é escondido ou no escuro.

O terceiro princípio: escolher qual seria o “momento decisivo”. Meu compromisso era fotografar a mulher e não a prostituta, por isso escolhi “o momento da espera” e eliminei a linguagem corporal da prostituta, o que na biologia chamam de “exibição”. Eliminei todos os elementos visuais que reforçavam o caráter sexual da mulher.

E por último, mas não menos importante, trabalhei oito anos ao longo de toda a costa do Mediterrâneo. Assim, gosto de pensar que não é apenas um trabalho fotográfico. Mas sim, por conta de sua extensão, um documento antropológico e jornalístico, cujo conceito e plasticidade são adequados para fornecer uma imagem precisa sobre necessidades e desejos. 

 

Em O jogo da espera 2 saem as prostitutas e chegam à paisagem pescadores, buscando fisgar seus peixes nos lugares menos prováveis e mais insólitos. Alguma analogia mais direta com o exercício de “fisgar imagens” do fotógrafo que vaga pelas ruas?

TS: Publicado em 2018, O jogo da espera 2 é a segunda parte de uma trilogia em que cada foto funciona por si só, em que cada livro conta sua própria história e em que os livros dialogam entre si. Essa é uma das minhas pretensões como fotógrafo, obter um “corpus” e não “singularidades”.

Meus pescadores são pessoas que não buscam a comunhão com a natureza. Eles são pessoas que fogem de sua realidade cotidiana e usam a pescaria como desculpa, tipos que diriam “desde que eu não esteja em casa”. São fotos tiradas nas mesmas estradas e lugares onde estão as prostitutas do primeiro livro. Para reforçar que tudo acontece sob o mesmo céu, o livro é exatamente o mesmo (em termos de formato, capa, título). As imagens são tão desoladas quanto, mas o que muda é o que acontece ao final da espera. E esta é a tragédia!

Este segundo livro reforça o conceito do primeiro e sintetiza uma reflexão pessoal: tudo o que pode acontecer a um ser humano está acontecendo em algum lugar neste momento. Ou alguém está “esperando” que isso aconteça. Quer dizer, neste exato momento, alguém está esperando para ser torturado e alguém está esperando o momento certo para dar um primeiro beijo. Alguém está “esperando” para ver o nascimento de seu filho e alguém está “esperando” para enterrar seu filho. Alguém está “esperando” fisgar um peixe e alguém está “esperando” para fazer sexo por dinheiro.

O jogo da espera 2 complementa o primeiro, que só na aparência é um livro sobre prostituição. O segundo livro vai na direção de um trabalho sobre a complexidade do ser humano. Esta série de pessoas pescando fecha o parêntese que engloba todas as esperanças a que os seres humanos estão sujeitos.

 

 

Já no livro Meu Reino seu olhar continua em busca de pessoas, mas dessa vez na direção de famílias em férias em diferentes regiões da Espanha. São fotos pontuadas pela transcrição de discursos do rei Juan Carlos I. Que tipo de relação (ou relações) você quis destacar nesse trabalho?

TS: Passei cerca de seis anos trabalhando nessas fotos, sem saber ao certo como as usaria. O fotolivro é uma oportunidade única de contar muito mais do que as fotos sozinhas podem dizer. Mais uma vez, minha obsessão em adicionar significado.

Para construir este livro, aproveitei a crise política na Espanha. Meu Reino começa com um breve texto: “O estado-nação moderno é um conceito intersubjetivo. Requer uma massa crítica submetendo-se a uma comunidade politicamente organizada. Reis, rainhas, imperadores, presidentes e primeiros-ministros há muito tempo usam o poder da retórica nacionalista para seduzir seu povo ”.

Decidi concentrar minha atenção em uma pessoa política que havia sido parte da vida do povo espanhol nos últimos 40 anos: o rei da Espanha, Juan Carlos I. Após a morte do ditador Franco em 1975, confiar na figura de Juan Carlos I foi uma ajuda importante para construir o discurso da “nova” Espanha. Juan Carlos I e seus discursos anuais de Natal fazem parte da consciência coletiva espanhola. De alguma forma, ele foi apresentado como a figura paterna para todo o povo espanhol. E, nos últimos anos, com tantos problemas, a sensação de desapontamento em relação a ele foi muito forte.

Em Meu Reino resolvi usar trechos de seus discursos de Natal para acompanhar minhas fotos, imagens em que você pode ver justamente as pessoas que ouviram esses discursos paternalistas. Justapor as palavras do rei com essas imagens gera uma sensação de mal-estar quase insuportável. O livro usa a estética do teleprompter, um tipo de tecnologia que ajuda o dono da fala a ler o texto olhando diretamente para a câmera. Ao olhar assim, diretamente para os olhos do espectador, consegue um maior senso de intimidade e honestidade. No final do livro você encontra uma seleção de outros discursos famosos (Kennedy, Mussolini, Churchill, etc), em que um político pede algo tão objetivo quanto a sua vida para defender algo tão subjetivo quanto a ideia de nação.

Mas tem um ponto muito importante! A primeira foto do livro é da minha própria família, minha esposa Laura com as nossas duas filhas. Porque meu reino é minha família. E aqui está a ideia fundamental: as fotos são de espanhóis na praia, com suas famílias, jovens com seus amigos, em seus carros, protegendo e curtindo o seu “reino”. Como seres humanos, somos profundamente territoriais, protegemos nosso reino. Se necessário com a vida. Algumas vezes nosso reino é enorme, ou pequeno. Mas pelo menos todos nos consideramos donos do espaço que ocupamos. Este livro não é uma crítica ao rei da Espanha, mas uma reflexão sobre o que somos.

 

 

Você está trabalhando em algum novo projeto no momento?

TS: Estou trabalhando em dois novos livros. A última parte da trilogia O jogo da espera e um novo livro chamado Dia perfeito, a ser publicado pela [editora] Mack ano que vem. No OJE3 o objeto do meu trabalho agora são os cachorros. Eu uso essa relação para mostrar como nós (humanos) nos relacionamos com nosso ambiente natural. Meus cachorros estão presos a correntes, às paredes, aos postes ou barras de ferro em fábricas, fazendas, propriedades, etc. O livro é sobre o cão que espera e protege, que nasce e morre no mesmo lugar e que vive subjugado ao seu dono (nós).

Dia perfeito, mais uma vez, trata de uma viagem fotográfica pelo Mediterrâneo, de costas para o mar. Você nunca irá ver a razão pela qual essas pessoas estão lá, ou seja, o mar. Este projeto é a soma dos meus dois anteriores OJE e Meu Reino. Você encontrará os mesmos assuntos de Meu Reino e o tempo e a luz de O jogo da espera. E mesmo que eu ainda esteja trabalhando em cima de aspectos conceituais, tenho a intuição que este é um trabalho sobre a felicidade. Uma coleção de pessoas em busca da felicidade.///

 

Txema Salvans (1971) é um fotógrafo catalão. Publicou os livros O Jogo da espera 1 e 2 (Editora RM) e Meu Reino (Mack), entre outros.

 

 

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