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Em entrevista para ZUM, Miguel Chikaoka fala sobre sua formação e trajetória fotográfica

Publicado em: 9 de março de 2015

Ator central do processo de desenvolvimento e consolidação de Belém como importante polo de fotografia contemporânea do país, o fotógrafo Miguel Chikaoka, que recentemente lançou o livro “Navegante da Luz” (baixe aqui), concilia como poucos a prática comunitária, o uso da imagem como forma de compreensão do mundo e uma abordagem radicalmente experimental da fotografia como linguagem plástica e filosófica. Nascido em uma colônia japonesa em Registro (SP), Chikaoka chegou à capital paraense nos anos 1980 e acabou por estabelecer ali raízes profundas. Na entrevista abaixo, conduzida pela jornalista e crítica de arte Maria Hirszman, ele fala sobre sua formação, o intenso trabalho que desenvolveu no campo da educação e sobre a centralidade da luz como matriz de seu trabalho e de sua reflexão sobre a materialidade da imagem.

 

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Como você descobriu a fotografia?
A fotografia surgiu de uma maneira acidental, sem planejamento. Estava vivendo na França e, como toda pessoa que viaja, comecei a fotografar como registro de memória. Pouco a pouco foi surgindo um certo estranhamento, uma consciência de que o que eu estava fazendo não era um registro tradicional de um turista. Nesse momento, descobri que no subsolo da residência onde estava morando havia um laboratório fotográfico e um fotoclube funcionando. Entrei naquele laboratório e comecei a fazer minhas primeiras experiências de maneira intensa, quase que compulsiva. Fui aprendendo muito com os erros, comentários e ajudas. Depois de três meses já estava participando de uma exposição. Cada um fazia sua cópia, depois fazíamos um mutirão para montar, algo totalmente comunitário.

Essa experiência do fotoclubismo foi essencial? Você descobriu a fotografia e a potência da ação coletiva ao mesmo tempo?
Isso já fazia parte de certa maneira da minha cultura. Sou de uma família de imigrantes japoneses, do primeiro assentamento lá no vale do Ribeira, onde criou-se um ambiente de comunidade muito forte, até por uma questão de sobrevivência, física e cultural. Para mim sempre houve essa coisa de olhar para o outro como um par.

Você chegou em Belém em 1980. Foi o lugar certo na hora certa?
Falo muito isso porque quando faço uma análise desse processo, me dou conta de que se tivesse chegado cinco ou dez anos depois talvez não fosse a mesma coisa.

A situação também estava na temperatura certa?
Exatamente, porque quando cheguei por aqui já era a abertura, os grupos estavam se constituindo, politicamente falando. As frentes da sociedade civil estavam aglutinadas num só lugar. Era um funil, no sentido de que era ali que as coisas estavam se bicando para entrar com a cunha, para abrir espaços. A Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) funcionava como a nave mãe, para onde as comunidades, os partidos, os sindicatos, sempre corriam. Era um lugar perfeito, em termos políticos e de ação da sociedade. Aterrissar nessa cena foi tão fulminante quanto a descoberta da fotografia. A cidade me acolheu, porque não havia essa prática do fotógrafo independente.

 

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E por que Belém?
A primeira coisa que me trouxe a Belém foi o desejo de fotografar o país. No período em que estive na França me dei conta de como não conhecia o Brasil. Nasci em São Paulo, vivi em São Paulo, estudei em São Paulo. Tinha tido uma única incursão no nordeste pelo projeto Rondon e só. Acho que isso acontece com qualquer indivíduo que passa um tempo fora, desperta para o que antes não dava atenção. Tive a possibilidade de ver a coisa num plano mais aberto, com muita crítica; pude começar a pensar sobre o Brasil como um país e não apenas como um lugar onde nasci. Tinha que buscar outro ponto de vista, outro ponto de observação. Claro que vim com aquele sonho: explorar a Amazônia, fotografá-la.

Que foi se desconstruindo com essa maior proximidade?
Claro que nos primeiros anos, até 1982, 1983, viajei muito pelo estado do Pará para o Jornal Resistência, que acompanhava muito dos conflitos de terra, conflitos indígenas, enfim, a questão do campo. E na cidade também havia toda essa questão da mobilidade populacional, de moradia, de saneamento. Hoje a cena se pulverizou, cada um segue sua tendência. Também foi muito significativo estar mais em contato com o ambiente cultural, com os artistas e os agentes pensantes. Aproximei-me de um grupo que estava recém-nascido, o grupo Ajir, que surgiu em 1980 ou 1981. Era um coletivo de artistas, arte-educadores, enfim, de intelectuais que tinha como proposta ter uma escola de arte e um projeto de ação pública, de fazer ocupações, intervenções em praças, levar teatro, música para a rua, num momento em que nada acontecia aqui. Era uma coisa de vanguarda e, como eu vinha também de uma experiência de rua em bairros mais periféricos de Nancy, esse contato também foi muito intenso. Comecei registrando a cena, depois comecei a participar com exposições de fotografia na forma de varal. E imediatamente fui convidado a ministrar um curso de fotografia. Nunca tinha feito isso, mas acabei aceitando esse desafio. Foi uma experiência contundente porque acabo vendo ali um ambiente ideal para a continuidade daquilo que eu tinha vivido no fotoclube. Daí surge o FotOficina, esse clima do coletivo se instala. São muitas práticas, muitos fazeres, essa maneira de levar adiante as ações de maneira coletiva e que até hoje a FotoAtiva herda.

Você sente que a postura coletivista ainda existe ou esse espírito esmoreceu?
Não, não é a mesma coisa. Evidentemente, houve mudanças de cenário bastante significativas. Na verdade, a coisa não está parada no tempo. O que existe hoje são muitas frentes que foram se abrindo pela própria ação iniciada nesse coletivo. Há muitas carreiras solo e acho isso natural. A FotoAtiva se articula como coletivo, como escola, como sede. Como pessoa jurídica ela é uma associação, congrega pessoas. Muitos nem atuam como fotógrafos, mas simpatizam com a proposta política, cultural dessa atividade. É uma coisa muito mais voltada à cidadania, à emancipação do ser. Fazemos um pouco de tudo. Se naquele momento inicial da FotoAtiva, da FotoPará, só existia isso, hoje existem vários outros projetos, ações que estabelecem essa conexão, esse diálogo ampliado.

É um dos galhos…
Isso, um dos ramos. O que me agrada é que tanto as atividades, ações e projetos, como os grupos que estão aqui não são concorrentes. Não há esse clima de oposição ou confronto. Acima de tudo, somos parceiros de uma cena cultural, de uma cena pela fotografia, com a fotografia.

Pode-se dizer que praticamente todo mundo que trabalhou com fotografia em Belém a partir dos anos 1980 passou por esses grupos, por essa discussão… É muito imantado esse projeto de vocês, não?
Considerando esse trio, que na verdade coexistiu – FotOficina, FotoPará e FotoAtiva –, pode-se dizer que praticamente todos dessa geração da década de 80 para 90 passaram por ele. Se não passaram diretamente organizando ou participando de ações, passaram porque foram envolvidos nesse processo, foram convidados, enfim, integraram momentos mesmo que de forma mais pontual. Agora, avaliar de que forma esse momento pesou para cada um, aí é uma questão mais complicada…

De que forma esse processo coletivo, de caráter educativo, têm reflexos sobre sua produção pessoal? Até que ponto ela paga um preço por esse engajamento na coletividade e até que ponto ganha uma força particular exatamente pelo coletivismo?
Eu diria que há mais ganhos do que perdas. Pensando um pouco sobre o meu deslocamento nesse processo, entre o que eu vinha fazendo, lá no início dos anos 70, na França, e o que faço hoje, eu colocaria a ênfase sobre a descoberta de um campo absolutamente incrível de possibilidades, de potência absurda plantada naquilo que é a natureza da própria luz como matriz desse processo. Tanto do ponto de vista da ideia, do pensamento, da criação, quanto da parte física dela, da materialidade da luz. Venho da fotografia e, num dado momento, começo a trabalhar com a imagem. Imagem entendida como algo que está além ou aquém do registro feito por um dispositivo ótico, pela câmara fotográfica que seja; imagem como algo que você constrói. Independente de ser fotógrafo ou não, você tem essa memória de imagem, uma experimentação que vem não só do dispositivo ótico do olho, mas do campo do sensorial. Essa força que vai também pro campo mesmo místico.

Filosófico, físico, místico…Tudo conflui num projeto de caráter educativo?
É, tudo! Acabo trabalhando hoje nessa perspectiva de pensar as atividades humanas enveredando pelo caminho da educação. Apesar de a minha formação não ter nada disso a priori, constituí esse percurso que se volta para essa relação ensino-aprendizado. Acabo entrando cada vez mais nesse campo da educação, pensando que o que importa acima de tudo não é a formação do fotógrafo, mas a formação do ser humano. É o ser humano que sustenta o fotógrafo. Quando falo hoje de lugar, de matriz, de início, de processo, de gênesis do processo da imagem como algo físico, ainda mergulho nesse lugar da representação. Não há prejuízo porque se você for olhar um pouquinho o que eu tenho colocado na cena como produção artística, daquilo que expressa meu pensamento, meu sentimento, fica claro que o trabalho bebe muito nessa fonte. Obras como Urublues (2004) e Hagakure (2003) são experimentações. Quando por exemplo eu furo a imagem do olho no Hagakure, lá está plantada toda essa referência a um código de conduta, aos escritos dos samurais e de certa maneira remete ao culto à morte…

 

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E ao mesmo tempo está intimamente vinculado à técnica do pinhole, vital em sua trajetória, não?
Acabei herdando a técnica do pinhole de uma ação em que a Regina Alvarez desenvolveu aqui em Belém no início dos anos 1980. Comecei a praticar e não parei mais. Parto daí para refletir sobre esse lugar da luz, sobre a imagem que se constitui única e exclusivamente pela natureza da luz passando por um furinho. Achei isso de uma poética, de uma potência absurda. Acabo concluindo que esse furo é o lugar para o qual tenho que olhar com mais atenção, que tenho que sentir com mais profundidade.

Hagakure congrega praticamente tudo, não? A cada volta surge uma nova camada de leitura, a peça tem um poder de síntese muito forte, de todos os aspectos de sua produção. Parece que isso está fundido ali numa única peça, o que é bastante raro…
Exatamente. Foi um momento importante decidir fazer aquilo como um ato simbólico que poderia ter ficado só pra mim, furar o olho. É até possível fazer uma associação com o mundo atual, já que a gente vive uma situação bastante cruel, na qual o ser humano enfrenta esse volume absurdo de informações. São terabytes e terabytes de informação, não apenas visuais, que não estamos conseguindo processar… Exercitar o pinhole remete em contrapartida ao fato de que, quanto menor o tamanho do furo feito, melhor, mais perfeita a imagem captada. Trata-se de um exercício de reduzir o tamanho da janela, de reduzir o tamanho quantitativo de informação para que efetivamente nos aproximemos da perfeição de imagem, da clareza. Era como falar assim: precisamos usar o pinhole mais como exercício espiritual, de consciência, e não apenas para a produção física da imagem. É necessário pensar que naquele momento em que você está abrindo um furo para a luz entrar, você está diante de um exercício muito profundo. Para mim tudo isso está ali dentro desse ato, trata-se de um momento de reflexão, de poética mesmo.

Você continua fotografando?
Eu continuo fotografando, mas não com a mesma intensidade. Se você me visse nos anos 1980, jamais me veria sem a câmera fotográfica. Hoje isso não me preocupa muito. Esse desejo, essa obsessão de registrar se diluiu nesse processo de fotografar de outra maneira. Continuo a trabalhar com fotografia, e muito intensamente, todo o tempo, mesmo que não necessariamente produzindo imagens. Em outras palavras, estou muito entranhado com a fotografia, mas numa outra dimensão, numa outra perspectiva, que importa mais do ficar só fotografando. Porque já se faz demais. Produzir imagem hoje é uma coisa absolutamente banal: não precisa nem pensar nada, é só apertar o botão e a coisa acontece. Não tenho nenhum problema que toda essa parafernália tecnológica exista, mas me preocupo sim com sua apropriação inadequada. Acabamos sendo vítimas por não termos esse lugar da prática de mergulho.

 

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Ficamos reduzidos a uma repetição de clichês? Ao mesmo tempo que a gente tem uma tecnologia muito avançada, parece que a produção acaba se reduzindo a poucos truques?
Talvez o grande desafio, o grande nó a ser desatado, seja a própria formação do educador, que não consegue fazer uma apropriação mais crítica, mais criativa desse lugar da produção da imagem facilitada por esses dispositivos. Acho incrível que o educando possa pegar o celular e sair por aí fotografando. A questão é que não há preparo do educador. E o problema não é ele, porque ele está no problema, também faz prática de uma problemática de formação. Não vejo nenhuma abordagem que deixe a fotografia, e ,sobretudo esse lugar onde as coisas começam a acontecer, como lugar de potência pedagógica. Isso é deficiência de formação.

O pinhole é então um instrumento de desconstrução? Quer dizer, ele permite descobrir o que há de estranho nessa naturalização da imagem?
É mais do que isso. Porque, ao mesmo tempo que desconstrói, ele ajuda a entrar em contato com esse lugar de potência máxima que eu falo, que é da gênese do processo. Vou dar um exemplo: hoje, trabalhando com os educadores, o que importa não é a construção da câmara escura para ver imagem. O que importa é saber que para construir a câmara obscura você vai trabalhar com as mãos, que é o corpo. O que são corpo, dedos e mãos, hoje tão subutilizados por saberem apenas teclar? Não precisamos mais fazer para criar, para sentir o mundo. Parece que tudo está na ponta do dedo. Isso é cruel porque a gente está se distanciando do nosso ser, entende? Então, quando a pessoa pega uma folha de papel cartão para dobrar e transformar naqueles visores de imagem do modelito de câmara obscura, importa sim o resultado. É uma câmara mágica, uma caixa mágica, mas importa também o reconhecimento do papel, de onde ele vem, quem o inventou, como podemos trabalhá-lo, que técnica precisamos para “dominá-lo”. São estes lugares que precisam ser resgatados nesse processo. Não dá mais pra ficar olhando para a coisa como um fim. Sobretudo na educação, o percurso é a coisa mais importante. É no percurso que se constitui o conhecimento. E quando digo percurso quero dizer um percurso vivenciado, não um percurso dito, algo que sei que é assim porque alguém disse que é.

Não de forma passiva, né?
Isso, não é uma coisa passiva. É um processo ativo, no qual a pessoa possa se sentir efetivamente integrada, de corpo e alma. Acho que é o lugar que a educação tem que plantar hoje. Não dá pra esquecer que somos seres sensíveis e é fundamental trabalhar essa questão da sensibilidade nesse campo do próximo, do físico. Não tenho nada contra toda a questão da tecnologia. O problema é a apropriação. E nos apropriamos muito mal porque temos uma formação péssima, deficiente. Olhamos tudo como um objeto do desejo.

Além dos projetos educativos, que outras questões estão te mobilizando ultimamente?
Há essa questão da morte que é muito presente. Eu penso que temos um problema sério de formação de valores que é ver a morte como algo negativo sempre. As culturas e povos primitivos mais ancestrais têm uma relação mais amigável com a morte, mas nós temos um medo terrível. No entanto, lutar contra a morte não acrescenta nada. Nessa experiência do Hagakure aprendi, e tento exercitar, que tenho o lugar da morte como uma coisa mais inspiradora, que trago para um campo espiritual e poético. A vida toda tentamos aprender a viver. Temos que aprender a morrer, valorizar a morte como algo belo e bonito. Que bom que você vai morrer um dia. É doloroso, mas não há como evitar. Questão que pra mim pelo menos se planta mais na matéria, na valorização de um sistema. Acumula tanto, tanto e isso não serve de nada. Dois anos atrás comecei a trabalhar um pouco com esse termo, com a expressão “Motai Nai”, palavra chave da cultura japonesa que significa “desperdício”. Era um termo que ouvia várias vezes ao dia e que ficou adormecido. Fui refletir um pouco sobre seu significado mais recentemente. Motai quer dizer essência (dos fatos ou das coisas, tanto animadas ou inanimadas) e Nai significa “negação”. De uma certa maneira, mergulhar na potência da luz seria tentar não desperdiçar a essência daquilo que me foi dado a conhecer. É importante pensar que essa experiência com a fotografia, com a pinhole, me levou a esse lugar, de reconhecimento primeiro da potência física e depois da potência simbólica da luz. Compartilhar isso com as pessoas seria o mínimo. De uma certa maneira, para mim, hoje esse é o lugar: fazer essas conexões do meu passado mais remoto, da minha infância, onde tanto essa palavra já foi dita e ficou guardada.

 

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