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Imagens em chamas – Calvino, Farocki, Carver e a Notre-Dame de Paris

Ronaldo Bressane Publicado em: 3 de maio de 2019

Fumaça em volta do altar dentro da Catedral de Notre-Dame, em Paris, noite de segunda-feira, 15 de abril de 2019. Crédito da foto: Philippe Wojazer/ The New York Times/ Fotoarena

Por que uma imagem ainda tem o condão de nos deixar maravilhados, horrorizados, fascinados? Tendo em vista que só no Instagram 50 bilhões de imagens sobem todo ano, como maravilhar, horrorizar, fascinar? Pensava nisso enquanto chapava no registro de Philippe Wojazer do interior da catedral de Notre-Dame depois do devastador incêndio de abril. Wojazer centrou seu ponto de fuga na cruz de ouro, mais brilhante no contraste com escombros e fumaças. “Milagre”, crédulos lacrimejaram; “ciência”, os doutos delataram, lembrando que o ouro, para derreter, necessita 1.064 graus celsius, acima do pico do fogo onde estava a cruz.

Outras imagens incendiárias – algumas nem tanto – mesmerizaram os olhos do mundo. Viralizou também a imagem captada pela câmara instalada em um drone, passando por cima da catedral em chamas. Traz consigo o dado da inovação tecnológica: o olho humano cada vez mais perto da catástrofe. Queremos ser íntimos do apocalipse, tomar café com bolinhos, cerrar uma cerveja, jogar xadrez com a morte. Em tempo real, eu via a catedral arder nas redes e, quando o dia se foi, mantive as luzes apagadas para curtir o crepitar das chamas a bruxulear pela sala. A catedral queimando na tela virou lareira. Quão confortável é assistir ao apocalipse à distância. Nossos olhos pós-modernos nem ardem com o gás carbônico; sequer choram suas próprias lágrimas – choram pelo choro alheio.

Reprodução: Imagem feita por um drone da polícia francesa e compartilhada no © Twitter

Imediatamente um fenômeno surgiu nas redes: milhares de fotos de beijos, risos, poses e balões coloridos em frente à Notre-Dame sobre legendas emocionadas pela perda do “maior cartão-postal do Ocidente”. No circuito turístico do desastre, tendência tão afeita ao nosso narcísico zeitgeist, é preciso comprovar que carimbamos o passaporte momentos antes da turnê do fim do mundo passar pelo GPS da desgraça da vez.

A morte e a morte do Museu Nacional do Rio de Janeiro

Na Notre-Dame a história ardia em chamas e traziam outras histórias. Como  a heroína francesa Joana D’Arc, minha memória pegava fogo, chamando outras chamas. No fascínio da reconfortante lareira onde queimava a “civilização ocidental”, queimava também o conhecido amor da nossa espécie pela autodestruição.

Todo brasileiro que via a Notre-Dame em chamas se lembrou da madrugada que passou assistindo na TV ao Museu Nacional consumir os 20 milhões de itens que narravam nossa história comum. Foi como revisitar um trauma recente – ou revisitar os próprios traumas. Eu mesmo me penitenciei por jamais ter ido ao Museu Nacional do Rio de Janeiro ao vê-lo derreter naquele fatídico setembro. Mas estive em Notre-Dame no longínquo domingo de Páscoa de 1996 – exatamente 23 anos antes de finalizar este ensaio –, realizando um velho desejo do meu pai, que havia morrido bem no domingo pascoalino do ano anterior: assistir a uma missa na catedral francesa.

Enquanto via a Notre-Dame arder em chamas e lembrava do antigo sonho do meu pai, lembrei também que havia sido destruída por um incêndio a igrejinha onde meus pais se casaram, em Glória de Dourados, Mato Grosso do Sul, fins dos anos 1960. Todos revivemos quando assistimos juntos ao momento da nossa autodestruição. Não há mais imagens da igreja onde meus pais se casaram. Só pude vê-la de verdade quando vi a Notre-Dame queimar.

 

Reprodução: Brooke Windsor © Twitter

A calma antes da catástrofe

Entre tantas fotos, uma sem nada de especial viralizou: o fotógrafo Brooke Windsor captou a imagem feliz de um pai girando sua filha pelos braços bem em frente à catedral, e, após o incêndio, postou-a no Twitter em busca dos personagens – o clique foi retuitado cerca de 500 mil vezes até o momento. A foto não teria viralizado se não tivesse sido preenchida de conteúdo histórico – foi feita às 17h30 de 15 de abril, exatamente uma hora antes de a catedral pegar fogo. Destituída desta informação, ela só funciona como a imagem idílica em que pai e filha brincam em frente a um cartão-postal europeu. Com a legenda, incorpora a ideia de “calma antes da catástrofe”, de inocência, de ingenuidade etc.

O registro do pai brincando com a filha uma hora antes do incêndio, os registros dos amigos flanando em frente à catedral, são imagens de fora do incêndio enquadrado, que só ganharam significado na medida em que foram salvas da destruição. Valorizam-se pela sua possibilidade de serem únicas, de aspirarem à aura dos objetos autênticos, por se referirem diretamente a um objeto que escapou da morte, conforme Walter Benjamin formula em seu eterno A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica.

Não fosse o incêndio, teriam sucumbido ao incessante processo de criação e multiplicação de imagens. Como se fosse necessária a consciência da destruição para recuperar histórias arrasadas pelo massivo processo de consumo de imagens. Como se para impor às imagens o cabestro de sua importância, fossem necessárias narrativas.

Em 2019, para ser imagem, não basta nascer; a imagem precisa ser imaginada.

 

Reprodução: Instagram da conta @world_record_egg

O dilúvio de imagens de Calvino

No longínquo 1985, ano central para a geração millenial, primeira geração que já nasceu digital, Italo Calvino se preocupava com o excesso de multiplicação de imagens – até então, hiperpopulando a mídia de massa, ainda não formada pela internet. Em um de seus últimos textos, “Exatidão”, uma das famosas Seis Propostas Para o Próximo Milênio, Calvino, que morreria naquele ano, escrevia: “Vivemos sob uma chuva ininterrupta de ima­gens; a mídia toda-poderosa não faz outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos — imagens que em grande parte são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar toda imagem, como forma e como significado, como força de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis.”

Sempre fico imaginando se Calvino subitamente despertasse de seu sono e, 34 anos depois, descobrisse que, a cada minuto, 147 mil fotos sobem para o Facebook, onde 8 bilhões de vídeos são vistos todo dia; 300 horas de vídeo sobem para o YouTube por minuto; no Instagram, onde 40 bilhões de imagens foram postadas, a cada dia as fotos são curtidas 4 bilhões de vezes – a imagem mais curtida na história é a de um ovo: 53,3 milhões de likes. “Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamen­te como os sonhos que não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e mal-estar”, diria Calvino, enquanto decide se curte ou não o maldito ovo.

Em um conto dos anos 1950, anterior ao mal-estar de Calvino com a multiplicação de imagens, o escritor de Turim já captava, com perspicácia, alguns dilemas atuais. Em “A aventura de um fotógrafo” (de Os Amores Difíceis), o personagem Antonino, de tanto ficar incomodado com as pessoas obcecadas por fotografia, se torna, ele próprio, um fotógrafo. O conto, como muita coisa que Calvino escreveu, inscreve-se na tradição do conto-ensaio, subgênero preconizado pelo argentino Jorge Luis Borges, grande influência sobre o círculo literário do OuLiPo – a Oficina de Literatura Potencial, movimento literário dos anos 1960 que congregava Calvino, Raymond Queneau e Georges Perec, entre outros artistas interessados em investigar a literatura por um viés racionalista e afeito a jogos e restrições.

Narrado na terceira pessoa, o enredo conta que os fotógrafos dos anos 1950 “somente quando põem os olhos nas fotos parecem tomar posse tangível do dia passado, somente então aquele riacho alpino, aquele jeito do menino com o baldinho, aquele reflexo do sol nas pernas da mulher adquirem a irrevogabilidade daquilo que já ocorreu e não pode mais ser posto em dúvida. O resto pode se afogar na sombra incerta da lembrança.”

Calvino parece intuir que, neste procedimento, o virtual passa a estruturar o real: somente quando a imagem se torna simulacro é que o acontecimento se realiza (“O passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos parece bonita e a realidade que nos parece bonita na medida em que foi fotografada é curtíssimo”). O exasperado Antonino – que, por ser o único solteiro da turma, não caiu no vício dos amigos, todos fotografando obsessivamente seus filhos – parece falar direto ao bilhão de usuários do Instagram: “Se você fotografa Pierluca enquanto ele está fazendo um castelo de areia, não há razão para não fotografá-lo chorando porque o castelo desmoronou, e depois enquanto a ama o consola fazendo-o encontrar no meio da areia uma casquinha de concha. É só você começar a dizer a respeito de alguma coisa: ‘Ah, que bonito, tinha era que tirar uma foto’, e já está no terreno de quem pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido, e que então para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso ou viver de um modo o mais fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida. O primeiro caminho leva à estupidez, o segundo à loucura.”

Bem, já estamos em plena loucura – ela se chama Stories, a funcionalidade do Instagram em que é possível narrar um dia inteiro através da fotografia. Excusado dizer que o subgênero mais usado para a fotografia é a selfie, o autorretrato: pois, relendo Calvino, “se tudo o que não é fotografado é perdido e é como se não tivesse existido, para viver de verdade é preciso se autofotografar o maior número de vezes possível.” Daí é que a Notre-Dame só passa a se incinerar de verdade quando demonstramos aos nossos seguidores que já estivemos lá, quando a catedral ainda estava inteira.

A hiper-história: o real só se realiza via virtual

O filósofo italiano Luciano Floridi defende a tese de que sociedades hiperconectadas vivem a transição da história para a hiper-história, a nova era em que as categorias de pensamento e do exercício da política são refundadas. Não há mais distinção entre o real e o virtual, entre offline e online, e já não se confia nas instituições, mas nos perfis das redes sociais. A história começa a acontecer quando podemos dizer ao futuro o que está acontecendo hoje – através da tecnologia da escrita, por exemplo.

Para Floridi, a tecnologia é algo que sempre está entre: assim como a sandália está entre o pé e a areia, o tear entre o tecido e as mãos humanas. Mas o que acontece quando uma tecnologia não usa um humano como intermediário? Como, por exemplo, um computador controla um robô que constrói um carro: uma tecnologia interage com outra tecnologia que interage com outra tecnologia, sem a intervenção do homem. Quando o registro da história passa a ser feito não pelo homem, mas diretamente pela tecnologia – pelo algoritmo –, passamos à hiper-história. É então que a informação virtual, criada através da tecnologia, desvincula-se diretamente da informação real.

Na hiper-história, o virtual age sobre o real. Ou melhor: o virtual realiza o real. Segundo Floridi, é neste estágio em que estamos. Só este raciocínio algorítmico explica o fato de um ovo anônimo ser a imagem mais popular no mundo encantado do Instagram. Já estamos sendo lidos pelos algoritmos das inteligências artificiais: só supercomputadores podem dar conta de ler os zilhões de imagens que subimos todos os dias para a nuvem.

 

Cena do filme Fogo inextinguível, de Harun Farocki, minuto 25, 1969 © Harun Farocki GbR

Cena do filme Fogo inextinguível, de Harun Farocki, minuto 25, 1969 © Harun Farocki GbR

Meter a mão no fogo pelo Vietnã

No prólogo de Desconfiar das Imagens, do cineasta alemão Harun Farocki, o filósofo francês Georges Didi-Huberman reflete: Como abrir os olhos? Como compartilhar um conhecimento com alguém que se nega a conhecer? Como desarmar as defesas, as proteções, os estereótipos, a má vontade, as políticas de avestruz de quem não está nem aí? “É com esta pergunta sempre em mente que Farocki considera o problema de seu curta Fogo Inextinguível [em exposição no IMS Rio]. É com esta pergunta em mente que seu olhar se volta à lente da câmera e Farocki passa à ação (…)  Tomar uma posição na esfera pública (ainda que isso signifique intervir no próprio corpo e sofrer) é a sacada que, em 1969, representa este curta em que o artista combina ação, paixão e pensamento”, analisa o filósofo.

Um curta organizado ao redor de um gesto surpreendente: o punho de Farocki descansa na mesa à espera de uma ação (em que toma posição), mas não está aquiescente em sua fúria. Primeiro Farocki lê em voz alta o depoimento em que Thai Bihn Dan, nascido en 1949, redigiu para o Tribunal Internacional sobre Crimes de Guerra de Estocolmo: “Em 31 de março de 1966, às sete da tarde, enquanto lavava os pratos, escutei aviões se aproximando. Corri até o porão, mas fui pego de surpresa por uma bomba de napalm, que explodiu muito perto. As chamas e o calor insuportável me envolveram e perdi a consciência. O napalm me queimou o rosto, os dois braços e ambas as pernas. Minha casa também se incendiou. Fiquei inconsciente por treze dias, até despertar na cama do hospital da Frente Nacional de Libertação”.

Em seguida, Farocki se dirige ao espectador, olhando diretamente a câmera: “Como mostrar a vocês o napalm em ação? Como podemos mostrar o dano causado pelo napalm? Se mostramos fotos dos danos causados pelo napalm vão fechar os olhos. Primeiro fecham os olhos para as fotos; em seguida fecham os olhos para a memória; e logo fecham os olhos ao que aconteceu; logo fecham os olhos às relações que existem entre eles. Se mostramos uma pessoa com queimaduras de napalm, vamos ferir os seus sentimentos. Se ferimos seus sentimentos, vão se sentir como se tivéssemos provado o napalm sobre vocês, à sua custa. Só podemos dar uma frágil demonstração de como funciona o napalm.”

Diz o roteiro do curta: “CÂMARA na mão esquerda de Farocki apoiada sobre a mesa. Sua mão direita se estende fora da tela para pegar um cigarro aceso e logo apagá-lo contra o lado de dentro de seu braço esquerdo, entre o punho e o cotovelo (3.5 segundos). Narrador off: ‘Um cigarro queima a 200 graus. O napalm queima a 1.700 graus'”.

“Elevar o próprio pensamento até a fúria. Elevar a própria fúria até o ponto de queimar-se a si mesmo. Para melhorar, para denunciar serenamente a violência do mundo. A expressão ‘pôr as mãos no fogo’ significa um compromisso moral ou político, a responsabilidade que se assume como própria quando se está frente a um conteúdo verdadeiro. ‘Pôr as mãos no fogo’ para entender melhor, para ler melhor este mundo à custa do qual sofremos — este mundo de que devemos afirmar, repetir, declarar que é a partir dele que estamos sofrendo — e assim, nos negamos a sofrer”, reflete o filósofo.

Para realizar sua fúria, para realizar o sofrimento no espectador, não basta apresentar uma imagem. É preciso fazer o espectador imaginar a imagem: a imagem de ele mesmo queimando no fogo. É preciso que o como se da ficção se torne realidade. Para fazer isso, o artista, em seu compromisso com o espectador, se torna seu avatar.

Vamos glorificar a destruição: porque o fim nos traz uma história

No desfecho de “A aventura de um fotógrafo”, Calvino enquadra o pobre Antonino, recém-largado por Bice, a quem fotografou de todas as maneiras, tentando encontrar uma imagem “essencial” de sua musa. “Era uma Bice invisível que queria possuir, uma Bice sozinha, uma Bice cuja presença pressupunha a ausência dele e de todos os outros.”

Antonino observa as dezenas de chapas que tirou e revelou de sua namorada, tanto em imagens posadas quanto nos “tempos mortos” em que buscava captar sua essência distraída, e resolve destruí-las. “Pôs-se a reduzir a pedaços as fotos com Bice ou sem Bice acumuladas nos meses de sua paixão, a arrancar as tiras de provas presas nas paredes, a despedaçar o celulóide dos negativos, a furar os diapositivos, e amontoava os resíduos dessa metódica destruição sobre jornais estendidos no chão.”

Entendeu que essa afinal era a imagem que buscava: uma fotografia de fotos destruídas. Uma foto em que se pudessem “reconhecer as imagens despedaçadas e ao mesmo tempo se sentisse sua irrealidade de sombras, e ao mesmo tempo ainda sua concretude de objetos carregados de significado, a força com que se agarravam à atenção que tentava expulsá-las.”

É então que me recordo da primeira imagem deste ensaio: o flagrante de Philippe Wojazer do interior da catedral de Notre-Dame depois do devastador incêndio. Nunca a catedral de Notre-Dame foi tão ela mesma quanto no retrato de sua ruína.

O bombardeio de imagens, que Calvino percebia já em 1985, o fazia sentir que uma epidemia tinha atingido toda a humanidade em sua faculdade mais característica: no uso da palavra. Essa superabundância de imagens pré-fabricadas “faz com que em nossa memória se depositem mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo”. Se você se lembrou de todas as imagens diárias de pratos de comida, gatos, cães, crianças, ocasos, pés na areia, selfies e outros clichês sem nenhuma força, é disso que o escritor italiano está falando.

“Essa peste consiste numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias”. Sim, o automatismo tem nome: é o chamado lugar-comum. Uma peste que corrói a faculdade de pensar.

“Mas talvez a inconsistência não esteja somente na lingua­gem e nas imagens: está no próprio mundo”, prossegue Calvino. “O vírus ataca a vi­da das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, fortuitas, confusas, sem princípio nem fim. Meu mal-estar advém da perda de forma que constato na vida, à qual pro­curo opor a única defesa que consigo imaginar: uma ideia da literatura.”

A literatura seria um antídoto contra a peste da linguagem, que faz repetir e modular as construções monolíticas da realidade e se relaciona à língua técnica, demagógica e publicitária que a sociedade impôs. Calvino estava interessado nas possibilidades de salvação: para ele, talvez somente a literatura pudesse criar anticorpos para coibir a expansão desse flagelo linguístico.

Daí que a solução para ressignificar a Notre-Dame seja justamente… destruí-la.

“Uma obra de arte não é uma obra de arte se não pode ser destruída, e portanto ser fantasiada e imaginada – se não puder existir no museu imaterial do desejo, se sua perda não puder justificar seu luto”, refletiu o filósofo espanhol Paul Preciado a respeito do incêndio da catedral.

“Porque os que clamam pela sua reconstrução não param um segundo para seu funeral? Destruidores do planeta e aniquiladores da vida, preferimos construir sobre nossas próprias ruínas ecológicas. Por isso tememos ver a Notre-Dame destruída. Contra a Frente dos Construtores é necessário criar uma Frente Para a Defesa da Nossa Senhora das Ruínas. Não devemos reconstruir Notre-Dame. Vamos honrar a floresta queimada e as pedras enegrecidas. Vamos fazer dessas ruínas um monumento punk, o último de um mundo que termina e o primeiro de um outro mundo que começa”, pede o filósofo.

Pós-fim: uma catedral invisível

Existe um conto de Raymond Carver chamado “Catedral”, do livro de mesmo nome (póstumo, de 1989), que, como em várias outras histórias do norte-americano minimalista, contém algum mistério aparentemente incomunicável – mas que de algum modo conversa com as chamas deste texto. Aqui, como em uma catedral, existe uma conversa, ou melhor, uma comunhão entre o humano e o divino. E não é para isso que servem as catedrais?

O narrador (talvez o próprio Carver) conta que a mulher tem um velho amigo cego. Ele nunca conheceu ninguém cego e fica fascinado pelo tema. O cego acabou de perder a mulher, com quem foi casado uns dez anos. Ele nunca a viu, diz a mulher do narrador. Para superar a melancolia, o cego vem passar uns tempos com o casal. Na primeira noite, têm um jantar grandioso; antes de comer até estourar, o narrador brinca que vai puxar uma oração – “que o telefone nunca toque e nossa comida nunca esfrie”. Depois vão para a sala beber uísque, fumar e ver TV, e a mulher adormece, o roupão desabotoado mostrando suas belas pernas, deixando o narrador desconfortável. A conversa entre o narrador e o cego não se desenvolve. A mulher acorda e sobe para o quarto. O narrador enrola dois baseados; o cego nunca tinha fumado maconha e gosta. Ficam amigos.

Outra noite, “veem” um programa na TV sobre catedrais. Surge uma igreja em Lisboa, outra na Itália, a Notre-Dame de Paris. “Você nunca viu uma catedral?”, pergunta o narrador, e o cego diz que não. Então o narrador põe-se a descrever as igrejas para o cego. “São altas, querem tocar Deus, muito largas, janelas enormes”, etc. O cego confessa que não faz a menor ideia de uma catedral. Pergunta ao narrador se tem alguma religião. O narrador revela que não acredita em nada e que catedrais não significam nada para ele, “são uma coisa pra ficar vendo na TV de noite.”

Afinal o cego tem uma ideia: pede que o narrador desenhe uma catedral. Ambos se sentam no tapete, e, enquanto o narrador vai fazendo as linhas de uma grande catedral num papel, o cego segura sua mão. “Nunca imaginou que uma coisa assim lhe poderia acontecer, não, camarada? A vida é estranha mesmo”. A mulher acorda e surpreende os dois desenhando juntos. O cego pede uma coisa fora do comum: “Agora feche os olhos”. Os dedos do cego guiam os dedos do narrador, que pede que ele veja o que estão fazendo. Mas o narrador sente que precisa manter seus olhos cerrados.

“Meus olhos ainda estavam fechados. Eu estava na minha casa. Sabia disso. Mas tinha a sensação de não estar dentro de nada. ‘É mesmo incrível’, falei.”///

 

Ronaldo Bressane é escritor e jornalista. Publicou o romance Escalpo (Reformatório, 2017), entre outros.

 

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