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Virginia de Medeiros e a alma de bronze das mulheres que lutam por moradia em SP

Publicado em: 8 de outubro de 2019

Frame da videoinstalação Clamor, de Virginia de Medeiros, 2019.

As videoinstalações e fotografias do projeto Alma de bronze, da baiana Virginia de Medeiros, foram criadas a partir do convívio da artista com os movimentos de luta por moradia na cidade de São Paulo, mais especificamente com as mulheres das ocupações Cambridge e Nove de Julho. Primeiro trabalho do projeto, a  videoinstalação Quem não luta tá morto é composta por depoimentos de 12 militantes do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) e nasceu de “uma pergunta-chave [que] conduziu as entrevistas: você se considera uma guerrilheira? A pergunta que inicia o diálogo tinha a intenção de abrir o campo de subjetividade das colaboradoras que, contando suas histórias, impelem-nos a refletir sobre a insurgência de uma força coletiva liderada pela ascendência do feminino”, comenta Medeiros.

Desde 2016, Alma de bronze vem se desdobrando em novos trabalhos, como a série fotográfica Guerrilheiras e a videoinstalação Clamor, ambos criados a partir da vivência da artista com as militantes do MSTC. Em entrevista, Virginia de Medeiros fala da sua relação com as mulheres do movimento e das suas obras criadas nesse contexto.

 

Daniela Santos Neves, Guerrilheiras, da série Alma de Bronze, de Virginia de Medeiros, 2017. Foto de Marcos Cimardi

Como surgiu a ideia para o projeto Alma de bronze? E como foram acontecendo os vários desdobramentos a partir desse conceito inicial?

Virginia de Medeiros: O projeto Alma de bronze teve início em outubro de 2016, durante o Programa de Residência Artística Cambridge, que aconteceu dentro da Ocupação Cambridge do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro). O programa de residência deu ênfase a práticas colaborativas, desenvolvidas em diálogo com os moradores, cuja pesquisa deveria se relacionar com assuntos ligados ao cotidiano da ocupação, sua história e seus modos de inscrição e atuação nas dinâmicas da cidade. Desde o começo dos anos 2000 venho pensando no gesto artístico como uma maneira de habitar o mundo, de encontrar novas formas de relacionamento e de convívio. Em novembro de 2016 mudei-me para o 15o andar da Ocupação Cambridge, reformei o espaço que estava disponível para os residentes e pude conviver de perto com as dinâmicas internas da Ocupação. A residência de 3 meses prolongou-se por 2 anos. De 2016 a 2018 convivi no território de luta do MSTC, colaborando muitas vezes em contextos que extrapolaram o campo artístico. Conheci o movimento de dentro, pude ver que o MSTC tem na sua linha de frente mulheres trabalhadoras de baixa renda, que dividem suas vidas privadas – afazeres do lar, filhos e emprego – com a luta pela habitação saúde, educação e cultura. Através da vivência, as ideias foram surgindo espontaneamente. A primeira que surgiu foi Quem não luta tá morto, uma videoinstalação composta por depoimentos de 12 militantes do MSTC. Uma pergunta-chave conduziu as entrevistas: você se considera uma guerrilheira? A pergunta que inicia o diálogo tinha a intenção de abrir o campo de subjetividade das colaboradoras que, contando suas histórias, impelem-nos a refletir sobre a insurgência de uma força coletiva liderada pela ascendência do feminino.

O início da minha residência coincidiu com a semana do “Outubro Vermelho”, ação organizada pelo FLM (Frente de Luta por Moradia) e que busca dar visibilidade ao problema de moradia para trabalhadores de baixa renda da cidade de São Paulo. Acompanhei, filmando, a Ocupação do antigo prédio do Instituto do Seguro Social (INSS), na Av. Nove de Julho. Neste contexto, pela primeira vez, a minha a câmera funcionou como uma espécie de escudo, inibindo possíveis agressões de policiais contra os militantes. O prédio já havia sido ocupado pelo FLM em 1997 e, nesse mesmo ano, dentro da própria ocupação, a bandeira do MSTC nasceu tendo como líder Carmen Silva Ferreira. O prédio foi esvaziado na gestão de Marta [Suplicy], em 2003, com a promessa de se tornar habitação popular. O INSS tem um histórico marcado por inúmeras ocupações e reintegrações de posse, um prédio de valor simbólico para a luta por moradia e pelo direito à cidade. Esta experiência deu origem a Alma de bronze, uma videoprojeção documental de 33 minutos de duração. O vídeo foca na força do feminino através da liderança da Carmen e na ocupação do prédio Nove de Julho – os esforços coletivos para reger um espaço recém-ocupado e como, neste processo, se estabelecem e fortalecem relações de solidariedade, cooperação e apoio mútuo. Perguntei para a líder do movimento: “Carmen, como a luta despertou em você?” Ela respondeu: “Como a poesia desperta no poeta, a minha alma foi tomada de bronze.” Assim surgiu o título do projeto.

Leonice Penteado Lucas, Guerrilheiras, da série Alma de Bronze, de Virginia de Medeiros, 2017. Foto de Marcos Cimardi.

Além dos trabalhos em audiovisual, foi realizada também uma série fotográfica intitulada Guerrilheiras, composta por 12 fotografias. Contei com o apoio do fotógrafo Marcos Cimardi na execução das imagens.  O ensaio foi propositivo e conduzido pelas mulheres retratadas. Um nova pergunta foi lançada, também com o intuito de acessar o campo de imaginação e projeção de uma imagem de força que as designem: Toda guerreira tem uma ferramenta de luta, qual a sua? As mulheres retratadas entraram em ação e construíram seus retratos para câmera: do passivo de serem retratadas passam para o ativo se fazerem retratar. Guerrilheira taxista, costureira, porteira posaram ao lado da sua ferramenta de luta, quase sempre seu saber, seu trabalho, seu ofício ou com objetos que simbolizavam resistência e memória.

O movimento de luta por moradia é vivo, realizar um trabalho de arte engajado é tentar responder ao tempo presente. Este é o desafio do novo desdobramento do Alma de bronze – a videoinstalação Clamor, 2019. Clamor propõe-se como espaço para debates, com programação definida de acordo com as demandas do MSTC. Somente durante essas conversas, os tambores cederão o volume em favor das vozes presentes neste espaço circular. Clamor é o ato de comunicar um forte desejo, uma necessidade imprescindível. Até o momento tivemos três ativações: “Ato”, “A Terra prometida”, “Atravessado deserto e bem-aventuranças”. 

Generosa Maria dos Santos, Guerrilheiras, da série Alma de Bronze, de Virginia de Medeiros, 2017. Foto de Marcos Cimardi.

 

Em Guerrilheiras vemos retratos fotográficos de mulheres da Ocupação Cambridge. Já em Clamor, você optou por exibir os retratos dessas mulheres em uma videoinstalação. O que levou você a experimentar essa mudança de suporte no seu trabalho? 

VM: Com o trabalho finalizado, percebi que havia uma imagem-síntese que traduzia o Alma de bronze: o retrato em vídeo das militantes encarado, em silêncio, a câmera ao som dos tambores da Beth Beli e da Jackie Cunha. Beth é mestra de tambor e fundadora do “Ilu Obá de Min: mãos femininas que tocam tambores”, grupo que pesquisa as culturas de matrizes africana e afro-brasileiras e trabalha o empoderamento das mulheres através do toque de tambor. Estas imagens fazem parte da videoinstalação Quem não luta tá morto, compõe os depoimentos. A exposição no Tomie Ohtake me possibilitou experimentar esta montagem. Gosto muito do resultado!

 

Frame da videoinstalação Clamor, de Virginia de Medeiros, 2019.

Nos seus projetos, como é constituído o “lugar de encontro” entre a fotógrafa/artista e as pessoas retratadas?

VM: É no espaço da vulnerabilidade que o lugar do encontro é construído. Estar vulnerável é estar, antes de tudo, susceptível a ser tocado. É um exercício de tirar qualquer armadura de proteção, de correr riscos, de fazer coisas sem garantia e de abrir-me para a experiência. Acredito que este sentimento fortalece “o lugar de encontro” – as relações com as pessoas, comigo mesma e com o mundo. É no território da amizade que tudo acontece. O lugar de encontro é construído pela amizade.

É importante colocar que no “lugar do encontro” eu sou sempre o Outro – o de fora. Desconstruir meus estigmas é o primeiro passo para o encontro. 

A representação do corpo político é algo presente em seus projetos. Trabalhando em diferentes contextos – com travestis, prostitutas e agora com mulheres que lutam pelo direito à moradia – quais diferenças e similaridades você enxerga na sua abordagem? 

VM: Cada trabalho exige uma abordagem, uma ética, uma forma de contunda que será intuída, construída e acordada na tentativa de dizer sempre a mesma coisa: estamos ligados uns aos outros. A vida é sempre uma vida compartilhada.

Videoinstalação Clamor, de Virginia de Medeiros, 2019, no Instituto Tomie Ohtake.

Na conjuntura política atual, marcada pela intolerância e criminalização à luta por moradia digna, o que aprendeu com as mulheres do MSTC? 

VM: Aprendi muito sobre consciência cívica e sobre políticas públicas, sobre especulação imobiliária e direito a cidade, sobre as raízes históricas da escravidão e as cidades brasileiras. Aprendi que a legislação urbanística da Constituição de 1988 é muito avançada para uma realidade tão atrasada. Aprendi que é preciso lutar de forma engajada por justiça social. Aprendi que os movimentos sociais são o coração do nosso país. Aprendi acima de tudo sobre resiliência – a capacidade dessas mulheres do MSTC de lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos, resistir à situações adversas sem entrar em surto psicológico, emocional ou físico.

Você está trabalhando em novos desdobramentos do projeto Alma de bronze?

VM: Clamor está ativo, em desdobramentos. ///

 

Virginia de Medeiros (1973) é Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia. Recebeu em 2015 os prêmios PIPA Júri e Voto Popular e a 5a Edição do Marcantonio Vilaça. Seus trabalhos foram expostos em importantes instituições, como o MAR – Museu de Arte do Rio, a 31a Bienal de São Paulo e o Museu Serralves (Porto, Portugal), entre outros.

 

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