Radar

A cara na capa

Alexandre Matias Publicado em: 26 de dezembro de 2019

Fotografia e música sempre caminharam juntas. E logo encontraram um recanto comum nas capas de discos. Originalmente funcionando como rótulos que mostravam o rosto dos artistas em coletâneas dos antigos compactos, as capas evoluíram com o próprio LP, que deixou de ser mera compilação para ganhar ares de obra completa, como um filme ou um livro.

Mesmo nunca tendo sido abandonada pelos artistas como escolha para suas capas, a fotografia voltou a ganhar espaço na medida em que a música digital miniaturalizou as capas e os discos de vinil voltaram à prateleira. No primeiro caso, por mais detalhes que o artista quisesse incluir na capa, eles eram reduzidos a poucos pixels, obrigando seus autores a pensar na melhor imagem que lhes fosse representar naquele momento da carreira para além da capa, reforçando a importância de um projeto visual que se expandisse para o palco, as fotos de divulgação e as redes sociais, quase sempre com fotografias como seus principais veículos. Já a volta do LP, por outro lado, resgatou o sentimento de admiração artística de se apreciar a capa como uma obra artística, destacando os detalhes pouco visíveis das capas de CD.

Selecionamos alguns destaques da produção nacional lançados em 2019 e conversamos com seus autores sobre as suas escolhas para ilustrar as obras que apresentaram este ano.

 

 

Besta Fera, de Jards Macalé. Foto: Cafi

Besta Fera, de Jards Macalé – foto: Cafi 

“Eu tenho uma história profunda com isso, todas as capas dos meus discos têm foto na capa, desde o primeiro. E eu sempre escolho o fotógrafo”, lembra Jards Macalé, que a princípio não iria aparecer na capa do disco para utilizar os desenhos de um dos produtores, o guitarrista paulistano Kiko Dinucci. Mas dois outros fotógrafos conhecidos de Jards se prontificaram a fotografá-lo para a divulgação do disco – o carioca Leo Aversa e o pernambucano Cafi, este último autor de mais de 200 capas de discos brasileiros, entre elas as clássicas capas do Clube da Esquina, do primeiro disco solo de Lô Borges, do disco de 1984 de Chico Buarque (que traz “Vai Passar”), o Amor de Índio de Beto Guedes e o primeiro de Cássia Eller. Segundo Jards, Leo fez mais de trinta fotos enquanto Cafi, que já havia fotografado o músico e compositor carioca nas capas de seus outros trabalhos O Q Faço é Música e Amor Ordem e Progresso, estava com conjuntivite nos dois olhos e fez apenas três cliques. “Aí o Cafi me mandou uma delas e falou: ‘Tem que ser esta’ e todos concordamos, inclusive o Leo”, lembra Jards. A capa sela o final da obra do fotógrafo, falecido no primeiro dia de 2019.

 

Boa Sorte, de Teago Oliveira. Foto: Azevedo Lobo

Boa Sorte, de Teago Oliveira – foto: Azevedo Lobo

Em seu primeiro disco solo, Teago Oliveira, vocalista do grupo baiano Maglore, não pensou em meios termos – quis colocar seu rosto na capa mesmo não se considerando fotogênico. “Tinha que ser uma foto que me represente como eu estou agora”, lembra, citando o segundo disco solo de John Lennon, o clássico Imagine, como uma de suas inspirações. “Aí o Azevedo Lobo pegou uma câmera 35mm analógica e fez uma foto minha em casa, com a janela atrás. Como eu tenho muito pavor de fotos, de estar com a cara ali na frente, ele completou com a dupla exposição de outra foto que ele já tinha tirado de pessoas na rua. E misturou as duas. Os efeitos meio fantasmagóricos no meu rosto são pessoas, placas e prédios que compuseram a capa do disco.” E conversam com a temática cronista do ótimo Boa Sorte, uma das boas surpresas de 2019. 

 

AmarElo, de Emicida. Foto: Claudia Andujar

AmarElo, Emicida – foto: Claudia Andujar 

“Tem criança de oito anos sendo baleada pelo Estado. Ter três crianças indígenas na capa, num período em que estão vendo a sua cultura e o seu modo de vida ameaçados, é colocá-las para encarar o Brasil dizendo: ‘sério mesmo? vai acontecer tudo de novo?’”, explicou o rapper logo ao lançamento de seu novo disco ao colocar na capa uma foto de Claudia Andujar – ele conheceu o trabalho da fotógrafa indigenista em uma exposição recente realizada no IMS de São Paulo e do Rio. A capa também faz referência ao clássico disco Stakes is High, do grupo norte-americano De La Soul, que optou por fazer um disco sem nenhuma referência à violência, à vida bandida e à tiração de onda como era típico de todos os clichês do rap no início dos anos 90. Emicida fez o mesmo em seu novo álbum – em vez de dedo na cara, paz e amor. “O rap é compreendido por um estereótipo que é o mesmo dado às pessoas pretas, como a raiva e a pobreza. Muitas vezes, o discurso das músicas corroborou com isso. Por mais que a denúncia seja valiosa, ela achata a experiência e não faz justiça a tudo o que somos. Em AmarElo, a gente foge desse espectro previsível do que o rap pode ser”.

 

Falha Comum, de Rakta. Foto: André Penteado

Falha Comum, Rakta – foto: André Penteado 

Ao terminar seu primeiro disco com a nova formação, o antigo quarteto punk Rakta, agora uma dupla de música experimental formada por Paula Rebellato e Carla Boregas, optou por estampar uma foto com suas integrantes pela primeira vez na capa de um álbum.  “A gente pensou que seria legal chamar um artista pra desenvolver a imagem com a gente”, lembra a baixista Carla. “E eu sugeri a Karla [Girotto], uma amiga minha e com quem já colaborei em duas performances dela. Seu trabalho expressa uma força e uma profundidade que é parecida com a do nosso som.” A sugestão do fotógrafo André Penteado foi da própria Karla, com quem já trabalhava há tempos, e que também sugeriu areia como um tema visual a ser explorado. “A gente mandou o álbum pra Karla e acho que ela estava viajando por algum lugar do nordeste. E ela ficou escutando nosso som nessas paisagens áridas”, segue Boregas. “E aí veio a sugestão que a gente fotografasse na areia. A areia tem a ver com a temática do disco, que é meio sobre ruínas. E a areia é o menor grão depois da degradação intensa de uma ruína.” A foto, que parece feita num deserto, foi feita em uma obra em São Paulo. E a capa é dupla – numa delas traz Paula e Carla frente a frente, de corpo inteiro e na outra apenas um detalhe de suas mãos.

 

Macumbas e Catimbós, de Alessandra Leão. Foto: Gabriel Quintão

Macumbas e Catimbós, de Alessandra Leão – foto: Gabriel Quintão 

A reconstrução da música de terreiro em seu épico e audaz Macumbas e Catimbós, da percussionista pernambucana Alessandra Leão, pedia uma capa à altura. Alessandra começou com a descoberta da paleta de cores, a partir de uma foto que ela tirou de Dona Alaíde de Benedito Fumaça em frente ao seu terreiro, em Caruaru (PE). “Era uma casa pequena, a parede rosa, aquela textura e a sensação da cal antiga, manchada, as marcas do tempo, os musgos subindo, o contraste que poderíamos alcançar com a vegetação sobreposta a ela”, lembra Juliana Prado Godoy, diretora de arte que assina o projeto com Marcelo Gandhi, Bia Varella e a própria Alessandra. “Quando achamos que a capa estava resolvida e que seria essa a foto, a Alessandra foi mostrá-la para seus guias, como fez com tudo nesse projeto, e nos foi indicado pontos que não havíamos notado, camadas e olhares que faltavam e que eram indispensáveis. Nisso comecei a colocar sobre a foto as plantas que senti que deveriam estar presentes: alecrim, dracenas, taiobas, helicônias e tantas outras espécies que há tempos falam comigo. E conforme fui intuindo no decorrer da montagem, elas deveriam estar ali, gerando as camadas, compondo aquele espaço, que era pra se tornar um lugar encantado que não está nesse plano, mas existe. Sobre esse plano encantado ainda vieram três plantas que precisavam estar ali: a guiné, que desde que me aproximei da umbanda me guia e protege; a samambaia, que inspirou a Alessandra a fazer a música Abre a Mata, Oxóssi, e que está no disco; e a lavanda, que está sempre presente pra limpar na delicadeza e trazer a cor natural dos elementos da natureza, como os guarás que pintam a mata de vermelho.” A foto foi feita por Gabriel Quintão.

 

Escumalha, de Douglas Germano. Foto: Arnon Gonçalves

Escumalha, de Douglas Germano – foto: Arnon Gonçalves 

Autor de um dos discos mais emblemáticos – embora infelizmente pouco ouvido – de 2019, o sambista paulistano Douglas Germano mergulhou na alma brasileira para extrair um retrato cru e sem devaneios do país no ótimo Escumalha. Os fotógrafos  Xirumba Amorim, Arnon Gonçalves e Rafael Frydman, acostumados a registrar brasileiros comuns em situações comuns nos seus trabalhos, inspiraram o cantor nesta busca, a ponto de terem fotos usadas também nos shows. Dos três, a principal inspiração foi o primeiro, mas a foto que Douglas escolheu para a capa foi de Arnon. “Seu trabalho é de rara sensibilidade. Um olhar brasileiro. Uma captura precisa sobre as gentes do Brasil. Ele aplica um filtro de aumento à dignidade das pessoas e situações retratadas, um craque.” Na capa, um brasileiro sem rosto (para não estilizar a pobreza, segundo o compositor), escreve em uma parede já cheia de nomes, visto apenas por cima de seu chapéu de palha.

 

O Amor é Um Ato Revolucionário, de Chico César. Foto: José de Holanda

O Amor é Um Ato Revolucionário, de Chico César – foto: José de Holanda 

“Meu primeiro emprego, dos 8 aos 15 anos de idade, foi numa loja de discos e livros chamada Lunik e que também era uma loja de fotografia, lugar onde se fotografava e revelava, com muitas fotos na parede e cheiro de produtos químicos: revelador, fixador etc.”, recorda o paraibano Chico César. “Talvez venha daí minha ligação com a imagem fotográfica. E também o fato de conviver com capas de discos com a imagem dos artistas, quase sempre uma foto, mostrando a atual fase desse artista ou a tendência do novo trabalho através de sua própria imagem.” Tanto que ele está em todas as capas de seus discos, à exceção de Francisco Forró y Frevo. “Nesse O Amor é Um Ato Revolucionário quis mostrar essa figura latino-americana-afro-indígena-urbana, mas de origem rural, que sou. A máscara, comprada a princípio como adereço de figurino pro carnaval, mais me revela que esconde. É essa a sua função: trazer camadas de subtexto. Tem a ver com black bloc, mas num contexto de contestação lúdica, estética, um negro bloco de carnaval. Tem a ver com a luta livre mexicana, mas também com a cultura popular dos interiores de Brasil, Colômbia, Peru”, lembra, explicando que chamou o pernambucano José de Holanda para fazer a foto, o que, segundo ele “facilita e potencializa essa definição”. “A economia de elementos usados na capa pelo artista paraibano Daniel Vincent reforça a potência dessa imagem fotográfica no diálogo com o conteúdo do disco em si”, conclui. ///

 

Alexandre Matias (44) é jornalista, curador e diretor artístico e cobre cultura, mídia e tecnologia há mais de vinte anos. Seu trabalho está baseado no site Trabalho Sujo (www.trabalhosujo.com.br)

 

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