Por Trás da Foto

O caos de Eustáquio Neves

Eustáquio Neves Publicado em: 21 de setembro de 2016
Eustáquio Neves, da série "Caos urbano", 1993

Eustáquio Neves, da série “Caos urbano”, 1993

Na novíssima seção Por Trás da Foto no site da ZUM, fotógrafos contam as histórias e os bastidores de fotos importantes de suas carreiras. 

 

No começo de 1993, uma ocupação dos Sem-Teto em uma periferia entre o município de Vespasiano e a cidade de Belo Horizonte me chamou a atenção. Havia naquele local um grande número de pessoas, famílias inteiras que habitavam as centenas de barracas de lona de plástico preto. Passei um tempo em uma barbearia improvisada, como tudo ali, e ouvi as conversas do barbeiro e de seus clientes. Era um sábado, os diálogos giravam sempre em torno de trabalho: tempo de serviço, rescisão, contratação, tempo de experiência em determinado ramo e o sonho do momento, que era receber uma daquelas casinhas que estavam sendo construídas ali ao lado no âmbito de um desses programas do governo, obviamente em um número bem menor do que a quantidade de famílias que aguardavam.

Eu era uma espécie de street photographer interessado em temas e questões sociais, usava uma inseparável Minolta SRT, toda mecânica. Não fiz nenhuma foto, só ouvi as conversas e continuei minha incursão por aquele cenário caótico, margeei um rio poluído que transbordava uma espuma densa, volumosa e de odor desagradável, certamente advinda de indústrias poluentes dos arredores. Eu me locomovia com o cuidado de quem anda em campo minado; o lugar era um sanitário a céu aberto.

Fim de tarde, já de saída, deparei com a cena da foto em questão. Estava usando um Tri-X, com a fotometragem do meu sistema de zonas intuitivo, até porque o fotômetro da câmera nem funcionava (mas mesmo assim eu fazia o que chamamos de cercar a exposição, isto é, a leitura que o fotômetro dá mais uma exposição acima e uma abaixo dessa fotometragem).

O fato de eu usar uma lente 28mm quase sempre me coloca muito perto da cena. Dos três fotogramas que fiz, o bom era o primeiro; no segundo o cachorro já havia me visto e no terceiro todos estavam olhando para mim.

Deixei o filme no arquivo, como faço muitas vezes, até que alguns dias depois li no jornal uma manchete que chocou a mim e a muitos: a da Chacina da Candelária, no dia 23 de julho de 1993. Lembrei-me imediatamente desse negativo, fui para o laboratório e construí esta imagem, como uma espécie de homenagem às vítimas, imbuído de muita indignação pelo fato ocorrido.///

 

Eustáquio Neves, fotógrafo autodidata, recebeu os prêmios de fotografia Marc Ferrez (Funarte, 1994) e Porto Seguro (2004), entre outros. Alguns de seus trabalhos estão reunidos em Eustáquio Neves (Cosac Naify, 2005). Obras suas integram as coleções Pirelli/Masp, MAM-SP, Itaú Cultural, Museu Afro Brasil, entre outras.

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